segunda-feira, 17 de maio de 2021

A questão da reforma do comando superior das Forças Armadas

O Conselho de Ministros aprovou, no passado dia 8 de abril, duas propostas de lei que visam a reforma do comando superior das Forças Armadas, que implica uma nova Lei Orgânica das Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), aliada à alteração da Lei de Defesa Nacional (LDN) em vigor, para dar continuidade às reformas anteriores, procurando garantir as condições para que as FA sejam capazes de responder aos desafios atuais e futuros, gerando ganhos de eficácia no seu produto operacional.

Os diplomas, atempadamente apresentados à Assembleia da República e que serão debatidos na generalidade no dia18 de maio, vêm reforçar o papel do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) e do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) no comando das FA em todos os assuntos de natureza militar. 

Os Chefes de Estado-Maior mantêm-se como conselheiros do Ministro da Defesa Nacional, no âmbito do CSM (Conselho Superior Militar) e relacionam-se diretamente com o Ministro nos aspetos relacionados com a execução de projetos no âmbito da LPM (lei de programação militar) e da LIM (lei de infraestruturas militares) e nas matérias administrativas e de execução orçamental que resultem da lei. O tema foi tratado expressamente em reuniões do CSM, que lhe deu o aval, embora com reservas, no CSDN (Conselho Superior de Defesa Nacional) e no Conselho de Estado, onde se registou só a discordância bem crítica de Ramalho Eanes.

Segundo os críticos, uma das alterações mais relevantes concentra no CEMGFA mais poderes, esvaziando competências das altas patentes dos três ramos: marinha, exército e força aérea.

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Entretanto, surgiu uma carta de 6 páginas, crítica da reforma da estrutura superior das FA Armadas e do setor, subscrita pelo ‘Grupo dos 28’ ex-chefes militares dos três ramos – com a exceção do general Valença Pinto (Exército) e assinada à cabeça pelos mais antigos de cada ramo, o ex-Presidente da República general Eanes (Exército), o almirante Fuzeta da Ponte (Armada) e o general Brochado Miranda (Força Aérea). E contam-se no grupo 6 antigos CEMGFA a expressar apreensão e a lançar um aviso: a “perturbação provocada no ambiente das Forças Armadas obriga-nos a isto”.

A mensagem foi enviada, no dia 13 de maio, ao Presidente da República, ao Primeiro-Ministro, ao Ministro da Defesa e aos grupos parlamentares. O documento, de marcado cariz político, mercê do prestígio público dos que a subscrevem, contesta a linguagem do Ministro Cravinho, uma “novilíngua” que está a “atingir proporções inusitadas”, e manifesta críticas ao método de decisão e ao conteúdo da reforma do comando superior das FA

O Ministro, que em março classificou as resistências dos militares na reforma como “interesses corporativos”, voltou à carga recentemente contra “uma agremiação de antigos chefes militares” que tenta “perpetuar a influência” nas FA. A referência visa o GREI (grupo de oficiais-generais do Grupo de Reflexão Estratégica Independente) de oficiais-generais, que tem movido influências, ao mais alto nível, contra a reforma em curso e que enviou um “estudo” contra a reforma ao Presidente da República. E Cravinho avisou que, “em democracia, não é assim que as coisas funcionam”, acusando os velhos generais e almirantes de “manobras escusas” pelas quais não se deixa “intimidar”. Assim, os 28 ex-chefes de Estado-Maior, sem terem o GREI como chapéu, acusam o Ministro da Defesa de “tentativa de imposição de pontos de vista únicos”, por vezes, sob “pressão implícita de ‘desqualificação’ e ‘destruição’ da reputação de quem discorde”.

Ora, Cravinho disse, no dia 11, que a revisão das leis em causa é “matéria de debate político” e que é na Assembleia da República que “a discussão será feita entre as diferentes forças partidárias”. Na carta, os 28 observam que “não se deve estranhar que, na sociedade civil, se manifeste uma pluralidade de opiniões acerca das decisões“ numa matéria tão “sensível”.

Os antigos chefes militares contestam o processo, lembrando que, em 2009 e 2014, nas mesmas circunstâncias, “foi sendo acolhida” a opinião dos chefes dos ramos, o que não consideram ter sucedido agora. E da reforma em si, que dizem ser ”assumida solidariamente pelo Governo com base em projetos de terceiros”, recomendam uma “adequada prudência e reflexão” e classificam a “ação política” do Ministro como “apressada” e “não convencional”. E acusam:

Começou-se da pior maneira e de forma pouco prometedora, uma espécie de exercício político e administrativo degradado”.

Os generais reformados lamentam não terem sido revelados “quaisquer estudos justificativos” da reforma do comando e acusam o Governo e o atual CEMGFA de inverterem prioridades:

Deixaram-se por resolver inúmeros problemas, públicos e notórios, que se prendem com a não coincidência dos recursos disponibilizados com os objetivos definidos”.

Segundo os signatários da carta, a “situação é hoje muito pior” que dantes:

Degradação de efetivos e do sistema de forças, impossibilidade de cumprir o dispositivo e algumas missões, menosprezo pela condição militar, assimetrias remuneratórias com outros corpos de servidores do Estado”.

Garantem que, se o poder reincidir “nesse tipo de erros, as consequências serão em cada vez em maior número e mais graves”. E admitem que os efeitos da nova estrutura superior das FA dependerão “do uso que os titulares dos cargos de chefia militar vierem a dar às suas competências”. Porém, acusam a Defesa de não ter esclarecido “as reais repercussões da reforma no futuro imediato, para não falar nos efeitos no longo prazo, que ninguém pode prever” e advertem que se devia ter adotado a metodologia tradicional começando pela revisão do conceito estratégico de defesa nacional e dos documentos “estruturantes” que daí derivam.

Mais entendem que o Governo devia promover um debate alargado à sociedade civil, com o envolvimento de especialistas, academia e partidos, para “refletir e ponderar” as questões de Defesa Nacional, mas, sobretudo, que devia “preservar a transparência institucional” e manter os “graus e níveis intermédios de comando e administração da estrutura das Forças Armadas”.

E o grupo coloca outras questões deixando suspeitas em relação aos negócios da Defesa.

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Também o ex-Presidente da República Cavaco Silva, em declarações à Lusa, no dia 16, defendeu que é “um erro grave” a reforma das FA que o Ministro da Defesa pretende, afirmando que seria para si chocante ver o PSD aprová-la, já que tal reforma põe em causa “o equilíbrio na distribuição de competências entre o Ministro, o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e os chefes de Estado-Maior dos ramos”.

Cavaco Silva criticou a posição do seu partido sobre as propostas de lei, considerando que o apoio do PSD à reforma, que disse ver veiculado pela comunicação social, é “um equívoco a tempo de ser corrigido”, e que “seria chocante ver deputados socialdemocratas seguirem esse caminho”. Para o antigo PR, a posição socialdemocrata em relação à proposta de lei só pode resultar da ignorância da realidade das FA ou concordância com o discurso de desconsideração e desqualificação do Ministro “em relação a chefes militares a quem o país muito deve”.

Contudo, dirigentes do PSD, como o ex-governante Ângelo Correia e a deputada Ana Miguel Santos, têm-se manifestado grosso modo favoráveis às medidas idealizadas pelo executivo socialista, algo essencial à aprovação das iniciativas, que necessita de maioria qualificada de dois terços dos deputados no hemiciclo. Ao invés, Cavaco aduz que é uma reforma não exigida pelas prioridades do presente nem pelos desafios do futuro e que a legislação em vigor já garante a unidade de comando das FA “aos níveis estratégico e operacional”. Considera isso provado nos “elogios internacionais” aos militares portugueses que participam em missões no estrangeiro. E aponta que as reformas da estrutura superior que acompanhou, em 2009 e 2014, como Chefe de Estado e comandante supremo das Forças Armadas, “foram preparadas com o envolvimento ativo e o acordo dos Chefes de Estado-Maior dos ramos”.

É de recordar que, em meados de março, o PSD apresentou um documento com propostas para a reforma das FA, entre as quais a necessidade de maior investimento, mas também a constituição do CEMGFA como “chefe do Estado-Maior de Defesa”, passando os chefes dos ramos (Exército, Marinha e Força Aérea) para a sua “efetiva dependência direta”, em termos operacionais.

Em conferência de imprensa, Ângelo Correia, coordenador do CNE (Conselho Estratégico Nacional) socialdemocrata para a Defesa, admitiu que o conceito de PS e PSD para o setor “é o mesmo”, o que julgou “muito bom”. E afirmou que os diplomas que aí vêm tocam apenas uma questão que é o problema da organização, a reorganização e reforço duma ideia de reforma do comando das FA, na área operacional, defendendo “uma solução em que a coordenação operacional” atribua responsabilidades mais claras ao CEMGFA.

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Por seu turno, o presidente do PSD adiantou que a reforma consta dos programas do partido “desde o tempo de Durão Barroso” e que “os parâmetros” previstos então eram “mais ou menos” os mesmos que Gomes Cravinho quer agora ver aprovados. É “uma questão de coerência” o apoio do PSD à reforma das FA, em linha com o que o partido “prometeu fazer sempre que apresentou programas”. “Aliás”, como sublinhou Rio, “também no meu programa de Governo nas eleições de 2019”, a reforma “esteve presente, é transversal”. E disse que “não podemos entrar em contradição”. Desta feita, disse, estão em causa propostas de Cravinho de alteração à LDN e à LOBOFA, centralizando competências no CEMGFA e alterando a estrutura superior de comando. E, para Rio, não faz sentido que o partido esteja contra “só porque [a reforma] é do PS”, até porque “amanhã podia ser ao contrário”. E “assim o país não anda para a frente”. No entanto, o líder do PSD não afasta alterações. E observou:

Não quer dizer que, alínea a alínea, artigo a artigo, depois, quando sair em votação final global, fique na mesma.

Porém, entende que o voto contra seria “uma contradição muito grande do PSD”. E frisou:

Nós há tantos anos que defendemos uma reforma neste sentido e agora, porque ela é apresentada pelo PS, contradizemo-nos a nós mesmos e vamos votar contra só porque é do PS, só porque não é do nosso Governo”.

De resto, insistiu, “a linha de fundo” esteve nos “programas de Durão Barroso, de Santana Lopes, até nos programas de Passos Coelho” e é o que o partido quis “sempre levar a cabo”.

Questionado sobre a carta muito crítica da reforma subscrita por 28 ex-chefes militares dos três ramos das FA, Rio afirmou que “obviamente” a missiva dá que pensar. E declarou:

Não vamos ignorar. São pessoas altamente respeitáveis, pessoas que conhecem bem as Forças Armadas, apesar de estarem já retiradas do ativo, e isso naturalmente tem de ser tido em conta. Temos de ponderar tudo aquilo que esses antigos chefes militares dizem, a começar naturalmente, desde logo, pelo senhor general Ramalho Eanes, por quem eu e penso que todos nós temos imenso respeito.”.

E assegurou que “tudo isso vai ser tido em linha de conta no debate na especialidade”. 

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Nos últimos meses, como comandante supremo, Marcelo teve um papel na suavização das arestas que mais incomodavam as chefias militares na reforma do comando superior das FA. As cedências de Cravinho são reconhecidas em Belém e uma fonte próxima do Presidente admite que “tem vindo a haver avanços em relação ao ponto de partida”, resta “ver qual será o ponto de chegada”, uma vez que no Parlamento ainda pode haver alterações” na fase de apreciação dos diplomas na especialidade.

Marcelo, que desdramatizou, na tarde do dia 14, a carta dos 28 como parte de “um amplo debate próprio e salutar em democracia”, lembrou o facto de ter convocado o CSDN (Conselho Superior de Defesa Nacional) para apreciar a matéria e de ter aberto uma “exceção” para levar a ‘reforma Cravinho’ ao Conselho de Estado, apresentada pelo próprio Ministro da Defesa, que entrou como convidado especial e procedeu, depois, a algumas alterações.

Mas a perceção é a de que a reforma não deverá andar para trás, até porque o entendimento na Presidência é que o ponto de viragem já aconteceu em 2014, quando o CEMGFA passou a ter poder hierárquico sobre os chefes dos ramos e passou a ser o comandante operacional.

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Algumas arestas acabaram por ser limadas: o Ministro deixou cair o “recurso hierárquico” das decisões e atos dos chefes, que era possível na versão anterior, e recuou na questão relacionada com a nomeação dos comandantes da componente operacional, que passarão para a dependência do CEMGFA. Se, na primeira versão, o CEMGFA nomeava tais comandantes apenas ouvindo as chefias, na proposta final estes passam a ser nomeados e exonerados pelo Ministro da Defesa, sob proposta dos chefes dos ramos (e apenas ouvindo o CEMGFA). No atinente ao despacho dos chefes dos ramos com o Ministro, Cravinho acrescentou as “matérias administrativas e de execução orçamental que resultem da lei”, mantendo o despacho relativo à execução da Lei de Programação Militar (compra de equipamentos) e da Lei de Infraestruturas Militares (gestão de edificado), mas não em relação à sua conceção.

Já no quadro de competências do Conselho de Chefes do Estado-Maior não manteve os poderes deliberativos, mas mudou a semântica: na última versão do articulado, as chefias passam a dar “parecer” em vez de serem apenas “ouvidas”.

O Presidente sublinhou, nas declarações que fez no dia 14, à saída do Banco de Portugal, que as posições das partes, apesar destas mexidas, permanecem “as mesmas”, o que Marcelo conhece bem, pois recebeu um estudo com mais de 30 páginas do GREI, que antes do ‘Grupo dos 28’ tinha sido dos mais ativos a mover influências contra a reforma do Ministro e do CEMGFA.

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Se as alterações são suficientes para o Presidente promulgar – já que o PSD até tinha uma posição inicial mais radical que o Governo –, isso só se vai saber no fim do processo legislativo.

No entanto, a reforma é necessária, embora expurgável de alguns iniciais absurdos. E não parece curial que ex-chefes, não percebendo que o seu tempo já passou, condicionem a reforma das FA, que têm de se ajustar à dimensão do corpo de efetivos e da diferença de missões e assemelhar-se quanto possível às FA de países de similar dimensão, garantindo a sua ágil operacionalidade e a sua real eficácia.

É certo que Aníbal Cavaco Silva, como PR, respeitou e prestigiou as FA, mas não podemos esquecer quanto as desprestigiou enquanto Primeiro-Ministro, à revelia do próprio Dr. Soares.

Não vejo como a reforma prevista comporte maior governamentalização da FA que a atual, nem que valha argumentar que outras reformas nas FA ficam para trás, antes importando promovê-las e urgi-las. Obviamente isto levanta desconfianças e indicia interesses. Mas não é inédito…

2021.05.17 – Louro de Carvalho


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