É a pertinente
convicção de Luísa Schmidt, pioneira da Sociologia do Ambiente em Portugal, manifestada
em entrevista do dia 23 de maio à
Renascença e à Ecclesia, em que assume a ‘Laudato si’,
sobre o cuidado da casa comum ou ecologia integral, como uma referência e o
Papa Francisco um interlocutor indispensável na próxima Cimeira do Clima, em
Glasgow.
Maria
Luísa de Carvalho de Albuquerque Schmidt, socióloga especialista nas áreas
da comunicação e do ambiente, jornalista, é professora e
investigadora principal do ICS (Instituto
de Ciências Sociais) da UL (Universidade de
Lisboa) e trabalha sobre temas conexos com o ambiente, educação e educação
ambiental. Faz parte da equipa que introduziu em Portugal a Sociologia do
Ambiente, tanto na investigação e no ensino como na articulação entre academia
e sociedade.
Alia, desde cedo, a investigação à
promoção da cultura científica e à sensibilização das populações para
as políticas públicas na área do ambiente.
Integra o Conselho Consultivo da
APREN (Associação Portuguesa das Energias Renováveis) e, desde 2009,
o Comité Científico do Programa Doutoral em “Alterações Climáticas e
Políticas de Desenvolvimento Sustentável”, resultante de parceria entre a Universidade
de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa e com a colaboração da Universidade
de East Anglia, da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenou o
grupo de trabalho no âmbito da Comissão Nacional da UNESCO para a Década
da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (2005-2014).
Desde 2019 é
Vice-Presidente da Mesa do Conselho Científico Internacional do Instituto de
Estudos Avançados em Catolicismo & Globalização, em
Portugal. E, desde 2018, participa nas investigações dos projetos “People & Fire – As Pessoas e o Fogo:
Reduzir o Risco, Conviver com o Risco” e “RIVEAL – Riparian Forest Values and Ecosystem Services in Uncertain
Freshwater Futures and Altered Landscapes / Valores e serviços
dos ecossistemas fluviais e das florestas ripárias em
paisagens fluviais alteradas e futuros climáticos incertos” – ambos financiados
pela FCT (Fundação para a
Ciência e a Tecnologia).
***
Considerando a progressiva
atenção dada à crise climática, aborda o papel que a Igreja tem tido
e pode ter na mudança de mentalidade, com impacto global. Pensa que “a Igreja pode ter um papel importantíssimo na mudança de
mentalidade” e nas mudanças que urge pôr em prática, inspiradas na
encíclica ‘Laudato si’, pois esta contém
aspetos que “chegam às pessoas todas” e hoje “são muito valorizados na
sociedade”. E releva dois pontos: a questão científica e a da equidade e
justiça ambiental. É importante a encíclica ser muito bem baseada em factos
científicos, já que o quotidiano é cada vez mais modelado pela ciência, o que
se torna ainda mais evidente na pós-pandemia. Ora, a assunção da vertente
científica por parte da encíclica releva a importância dos factos científicos e
constitui um exemplo de audição dos cientistas e da premência do papel que eles
podem desempenhar. No atinente à equidade e justiça ambiental, salienta como da
pandemia se concluiu pela cada vez mais clara necessidade de as fazer chegar a
toda a gente, tal como outros bens, pois “vivemos num mundo interdependente”,
não valendo a pena dizer que estamos “muito seguros num lado”, se não houver
segurança generalizada. O mesmo se diga da questão central das alterações
climáticas.
Assegura que perspetiva
social com que o Papa aborda estas temáticas é uma chave leitura “fundamental, absolutamente central e muito inovadora”. Com efeito,
Francisco acrescenta aos estudos teóricos atinentes à justiça ambiental e à
justiça climática “uma ênfase especial”, deveras importante. Fala muito na
dívida dos países do Norte aos países do Sul, mercê da exploração excessiva de
recursos, do abuso dos recursos naturais e das emissões de gases com efeito de
estufa (produzidas
sobretudo pelos países do Norte, mas sendo os países do Sul quem sofre). Chama a atenção para esta dívida Norte-Sul, extremamente
atual. E Schmidt
explica:
“No acordo de
Paris, uma das questões essenciais a partir de agora, de 2021 (…) é a
transferência de verbas avultadas, 100 mil milhões de dólares por ano, para os
países em desenvolvimento poderem adaptar-se às alterações climáticas. Porque o
que temos hoje é, de facto, uma grande injustiça, temos eventos extremos,
tempestades, que nos países que não estão adaptados, os países pobres, provocam
danos enormes e tragédias imensas, com muitos mortos, quando a mesma
intensidade de tempestade ou de evento extremo num país do Norte, organizado e
preparado, tem muito menos impacto.”.
Concorda com os entrevistadores que lembram ser esta a lógica do discurso do Papa, que convocou o ano
especial ‘Laudato si’ para ouvir “o grito da Terra e o grito dos
pobres”, acabando por ser central neste discurso “a questão da dívida
ecológica”. Todavia, chama a atenção para a necessidade de percebermos que,
“enquanto não resolvermos esses problemas, o securitário Norte também não está
seguro”, como a pandemia deixou entrever: “ninguém
está seguro, porque justamente a globalização trouxe-nos esta interdependência
em que todos vivemos”. Considera “também uma questão de inteligência e
pragmatismo por parte do Norte” (mesmo que não seja a questão ética, que é fundamental
no Papa e para si também) “que se
resolva este problema pensando na adaptação dos países do sul, na transferência
de tecnologia, mas que seja uma tecnologia adaptada”. E avisa:
“Não vale a
pena continuarmos a transferir tecnologia para os países em desenvolvimento e
depois não haver pessoas com capacitação para a gerirem. O mundo está cheio
disso, infelizmente, muitas destas organizações internacionais fazem isso, e
temos países pobres e em desenvolvimento com cemitérios de tecnologias que não
são utilizadas. Não é isso que se pretende.”.
Outra das áreas caras para o Papa é a capacitação. É certo que outros
economistas também a consideram, mas Francisco releva aqui uma componente
importante: “a pobreza e o ambiente estão interligados”, não valendo a
pena pensar-se que “vamos conseguir resolver os problemas ambientais” mantendo
“esta pobreza extrema, esta desigualdade enorme”.
Observa que se ganhou, com
a encíclica, mais consciência da relação direta entre a pobreza e o ambiente. E coloca a par a tríade de eventos muito
interessante em 2015: a assinatura do Acordo de Paris; o lançamento dos ODS (Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável) para todo o
mundo pelas Nações Unidas; e a encíclica papal. É uma tríade que “traz para a
agenda pública e política todo este problema visibilidade da questão das
alterações climáticas, da justiça socioambiental e da necessidade de nos
entendermos para conseguirmos todos continuar aqui”.
Sobre a grande mobilização
dos mais novos, de que são exemplo as greves climáticas e a intervenção da
Greta Thunberg, entende que é importante e tem contribuído para o aumento da
consciência global. Porém, frisa que isso vem já depois da ‘Laudato si’
e do Acordo de Paris. Na verdade, foi em 2018, na cimeira da Polónia,
que surgiu a figura da Greta Thunberg e todo o movimento jovem ligado à
greve climática e aos Friday For Future,
movimento interessante, por configurar uma chamada de atenção das gerações
novas para este problema intergeracional, o de “um planeta imprestável”. Ora,
como escreve o Papa na encíclica, “não podemos
deixar esta herança absolutamente imprestável às gerações futuras”.
Depois, a importância destes fenómenos juvenis decorre do facto de os
jovens de hoje serem muito ouvidos e esta geração estar
particularmente preparada. Com efeito, “se olharmos para os indicadores da
educação, nunca tivemos uma geração jovem com tanta formação como agora existe
em todos os sítios do mundo”; e, no nosso país, talvez esta seja a geração com
maior formação que existe, “mesmo em termos internacionais”. Ademais, é “uma
geração muito preparada em termos mediáticos, dos novos media, comunica entre
si com uma grande facilidade”; geração muito sensível, pois viveu várias
crises: a crise financeira, a crise climática e ambiental e a crise
pandémica, o que a faz atenta à necessidade de mudança.
A propósito destas crises e
de tantos outros sinais preocupantes, a entrevistada considera este compromisso
das novas gerações como um sinal de otimismo, pois são os jovens quem decidirá amanhã o que se vai passar. E aproveita o ensejo para
desmontar a ideia de que os jovens não se interessam pela política, ao invés,
assegurando que “estão interessadíssimos na política” e com “preocupação sobre
o que se passa a vários níveis, desde logo o nível ambiental e todo o problema
das alterações climáticas e da perda de biodiversidade”, outro problema
gravíssimo “a que eles estão particularmente atentos”, referindo os relatórios que
a situação se agravou.
São, pois eles que “vão levar muito mais a sério todas estas medidas de que
o Papa, aliás, fala”.
Depois, salienta como um dos dados interessantes da encíclica a sua
abrangência, pois “vai desde os problemas todos elencados até às soluções, até
à ideia de que todos nós temos aqui um papel, o papel individual e coletivo”, o
que é deveras importante.
Sendo-lhe lembrado que a
biodiversidade é interessante, porque Francisco fala de qualquer pequeno organismo,
não apenas do ser humano, Schmidt aduz que “não podemos desarticular a questão
climática da crise da biodiversidade”, como a pandemia tornou claro. E,
como a pandemia nitidificou que “o excesso de
intrusão na natureza” pode ter – e está a ter – “consequências catastróficas”, é preciso
acabar com esse excesso de intrusão.
Deplora as coisas más que vêm ocorrendo desde 2015 até agora, entre as
quais destaca a administração Trump e a forma como travou a continuidade duma
série de medidas ligadas ao Acordo de Paris. Mas não esquece as coisas
interessantes que também ocorreram, como o Pacto Ecológico Europeu, em 2019,
direcionado para a regeneração da natureza, a crise climática, a transição
energética e ecológica e a economia circular, vincando que nunca a Europa tinha
assumido como seu plano e programa um pacto ecológico, uma questão central,
muito inovadora e esperançosa, agora que temos nova gestão nos EUA, com Biden
muito preocupado com o Green Deal (uma das
primeiras coisas que fez foi reintroduzir os EUA no acordo de Paris). Sublinha que, apesar dos problemas que decorrem a
outros níveis, há uma conjuntura particularmente interessante, com o Secretário-Geral
da ONU (António
Guterres) com mais força, o qual “tem chamado
muito a atenção para estes temas”. E enfatiza que, nos últimos 5 anos, muitas
tecnologias ficaram maduras e que tudo o que se liga com as energias renováveis
é muito mais barato. Por exemplo, um painel solar, baixou quase 60% nos últimos
7 anos.
E, considerando que há uma série de condições muito propícias para que
muitas das medidas pensadas na ‘Laudato si’
possam fazer o seu caminho, entende que se abriu um novo capítulo, com
apetência e sensibilidade diferentes por parte das populações, por via da
pandemia, em relação ao que se prende com a biodiversidade. Isto, a par duma
certa visão do consumismo excessivo e da “cultura do descarte”, que o Santo
Padre vem denunciando. Com efeito, o consumismo excessivo, porque é predatório,
tem de ser travado.
Que as pessoas estão muito mais sensíveis, devido à pandemia, vê-se através
dos inquéritos do “Observatório de
Ambiente, Território e Sociedade”, que mostram que as pessoas têm
muito maior sensibilidade às questões da natureza, aos espaços verdes, a uma
vida cívica mais ativa, mas também mais interativa com esses espaços. E exigem
isso pela necessidade da relação da natureza com o lazer e, sobretudo, por se
tratar duma “questão de saúde, mental ou física”.
Está convicta de que não se
trata de reação transitória, mas de “coisas que
vieram para ficar”. Di-lo estribada num inquérito lançado logo no rescaldo da crise
financeira em Portugal, de que resultou a perceção de que “as pessoas, cada vez
mais, procuravam espaços verdes, públicos, de uso gratuito”, o que se reforçou
e alargou “substancialmente com a crise pandémica”. E um dos indicadores
que seleciona “é que nunca houve tantos movimentos em Portugal” – “um país onde
as pessoas, civicamente, não se mexem muito, não participam” – “por espaços
livres, contra determinado tipo de obras que podem ser lesivas do espaço
natural”, o que indicia mudança de paradigma e mostra que “nunca a ‘Laudato si’ esteve tão atual. Na
verdade, como afirma, o que se passou nos últimos 5 anos dá razão, força e
realce a alguns dos aspetos que o Papa considera centrais na necessidade de
mudança.
Tem como ótimo exemplo de mobilização
a existência, no país, da Rede ‘Cuidar da Casa Comum’, ligada à Igreja
Católica, que promove a ecologia integral e estilos de vida mais
sustentáveis. E evoca a memória de Manuela Silva, a sua iniciadora, para enfatizar esta ligação entre movimentos, que “pode
criar uma dinâmica importantíssima, em Portugal, no sentido da mudança que
todos precisamos de fazer”.
Quanto à nova cimeira de Glasgow, em novembro próximo, julga fundamental
que o Papa venha a participar, pois ele, que
participou no encontro promovido pela administração Biden, uma espécie de
pré-cimeira, neste momento, é a grande figura política, o líder
político da investigadora, por ter conseguido algo que estava em falta na
Igreja, esta ligação às pessoas. Na verdade, como critica, e bem, a Igreja
Católica estava afastada, do que pode ser o maior sintoma a proliferação de “Igrejas”
em vários sítios. Porém, este Papa “chama a atenção para a importância dos
católicos na vida ativa, na vida quotidiana, na vida política, na intervenção
política”, no sentido mais nobre do termo, que é o sentido em que ele o utiliza
sempre. E é deste ponto de vista que a entrevistadora o considera um líder
político.
E, falando da diplomacia, Schmidt releva que Biden trouxe de volta uma América interessada
na diplomacia ambiental, o que é muito importante, com a tal pré-cimeira. E, a pari, diz que a diplomacia do
Papa é central aqui, tendo ele um papel consensual, sem ter de
fazer milagres. Por isso, a sua participação na cimeira de Glasgow, um
encontro tão importante, seria grande mais-valia e grande esperança para
chegarmos a bom porto, pois “temos pouco tempo”.
Por fim, destaca um conjunto de variáveis que propiciam a conjuntura de
esperança: vontade de exercício da diplomacia ambiental; uma geração nova muito
preparada e com vontade de intervir e alcançar compromissos a este nível; a UE
com o Pacto Ecológico Europeu, a querer a mudança de fundo, não deixando ninguém
para trás; e o exercício da diplomacia da UE com os países que são mais próximos,
na África, promovendo este modelo, para “conseguir integrar e levar mudanças,
tecnologias apropriáveis e apropriadas a outros países”. De facto, é de não
esquecer que “África é particularmente importante no nosso contexto português”.
***
Requer-se, pois, forte mudança de mentalidade e hábitos, sendo os líderes,
entre os quais o Papa, o grande motor, para o que se há de mobilizar toda a
sociedade, mormente os mais novos.
2021.05.29 –
Louro de Carvalho
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