quarta-feira, 19 de maio de 2021

O ridículo ou a falibilidade duma lei que devia ser importante

 

Obviamente mantém-se em vigor a Lei n.º 46/2005, de 29 de agosto, que estabelece limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais.

Esta lei, que deve ter dado então uma carga de trabalhados aos negociadores por parte do PS, liderado por José Sócrates, e do PSD, liderado por Marques Mendes, só tem dois artigos.

O art.º 1.º é desdobrado em três números, em que o n.º 1 estipula que “o presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos, salvo se no momento da entrada em vigor da presente lei tiverem cumprido ou estiverem a cumprir, pelo menos, o 3.º mandato consecutivo, circunstância em que poderão ser eleitos para mais um mandato consecutivo”. Por sua vez, o n.º 2 acautela que as personalidades constituídas em exceção pela norma anterior, concluídos os mandatos por ela referidos, “não podem assumir aquelas funções durante o quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo permitido”. E o n.º 3 estabelece que, em caso de renúncia ao mandato, “os titulares dos órgãos referidos nos números anteriores não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia”.

E o art.º 2.º determina que, apesar de a presente lei ter sido publicada em 29 de agosto, “entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2006”.

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Desde logo, se o legislador pretendia evitar que a acumulação de capital de relação por força do conhecimento haurido em resultado da permanência nos cargos políticos, deveria, de forma similar, ter estabelecido para os vereadores em regime de permanência. Doutro modo, não cria hiato político e administrativo que impeça o jogo de influências, pois, ao fim do eclipse durante três mandatos, o titular pode muito bem ser eleito, se o não tiver sido ao fim dum eclipse de um ou de dois mandatos. Isto quer dizer que a mesma câmara ou a mesma junta pode ser dirigida por três personalidades da mesma equipa durante 36 anos. Já houve longevidade maior no poder executivo! Foram vários os casos na Monarquia e um caso em República (Estado Novo).

Porém, ao abrigo desta lei, dita restritiva de direitos e, por isso, de interpretação restritiva, como o julgou o Tribunal Constitucional, uma personalidade pode deixar de ser presidente duma câmara municipal ou duma junta de freguesia e candidatar-se, com êxito ou não, à liderança de outro município ou de outra junta. Mais: o presidente da junta pôde candidatar-se à presidência da junta da união de freguesias em que se integra a freguesia que liderava dantes. Creio que, a haver reversão da reforma administrativa de 2012/2013, o mesmo presidente da junta da união de freguesias poderá candidatar-se à liderança da junta da freguesia que for desmembrada dessa união. Já agora, poderiam os órgãos municipais e de freguesia propor à Assembleia da República a alteração dos limites do território municipal e de freguesia, respetivamente, ou caraterizar de outro modo a sede do concelho ou a freguesia (passar de aldeia a vila e vice-versa ou de vila a cidade e vice-versa) para os respetivos titulares do poder local poderem recandidatar-se indefinidamente.  

Obviamente, o legislador sabia que uma lei restritiva de direitos tem interpretação restritiva. Por isso, deveria ter acautelado o país de algumas das práticas bizarras a que temos assistido. Mas não o fez. E porque não o fez? Talvez, para que, mudando alguma coisinha, tudo ficasse quase na mesma e se mantivessem o compadrio e o caciquismo na esfera do poder local, criando, mantendo e reforçando dependências e promovendo promiscuidades.

Já tínhamos visto, num determinado concelho do distrito de Viseu, um presidente de junta de freguesia, que não podendo candidatar-se por ter expirado o cumprimento dos mandatos em conformidade com a lei, foi em 2.º lugar na lista do cônjuge varoa, tendo este permitido que, na prática, fosse o marido a liderar a freguesia. Passados 4 anos, voltou a candidatar-se com êxito.

No mesmo concelho, o presidente da câmara municipal fez uma pausa de 4 anos em relação à presidência, mas foi eleito para o executivo, pois ia em 2.º lugar. Agora, alegadamente porque o presidente em termo de mandato não pretendeu recandidatar-se, apesar de o seu partido o haver proposto, o agora ex-vereador em regime de permanência é candidato aceite pelo seu partido.

Entretanto, estes dias brindam-nos com um outro caso. No site do PSD pode ler-se:   

Ultrapassado o período de silêncio e de respeito que nos mereceu o inesperado falecimento do Presidente da Câmara de Viseu, António Almeida Henriques, a direção nacional do PSD, em estreita articulação com as comissões políticas distrital e concelhia, decidiu homologar o nome de Fernando Ruas para candidato à Câmara Municipal de Viseu

Fernando Ruas foi Presidente da Câmara de Viseu entre 1989 e 2013, Presidente da Associação Nacional de Municípios tendo, entretanto, exercido o cargo de eurodeputado e, atualmente, de Presidente da Comissão de Administração Pública, Modernização Administrativa, Descentralização e Poder Local

O candidato é economista, nasceu e viveu sempre em Viseu, mantendo-se fiel às suas raízes, razão pela qual decidiu regressar para se candidatar à autarquia que liderou durante mais de duas décadas com grande sucesso.”. 

A este respeito, Paulo Neto, no seu “Rua Direita”, comenta:

Fernando Ruas encarna bem a falibilidade da lei da limitação dos mandatos, pois com quase três dezenas de anos à frente da autarquia, reciclado, volta em triunfo aos ombros de Rio e Alves. Quase como o seu correligionário do Sátão, Alexandre Vaz, que ora é presidente, ora é vice-presidente, ora é candidato a presidente. Abençoados ‘missionários’.”.

Rio e Alves de que fala o texto de Paulo Neto são, respetivamente Rui Rio, líder nacional do PSD, e Pedro Filipe Santos Alves, presidente da comissão política distrital de Viseu.

Resta acrescentar o nome de João Paulo Lopes Gouveia, presidente da comissão política concelhia de Viseu, a que alude o comunicado plasmado no site do partido.

Enfim, estamos no jogo do aparece e do eclipse ou do sobe e desce, dançando as cadeiras.

No caso do município de Viseu, não se percebe como terras do Cavaquistão não conseguem produzir, de momento, outras personalidades com perfil socialdemocrata para liderar os negócios do concelho. Como é que a atual presidente em exercício não serve, nem nenhum membro dos órgãos concelhios? Como é que não se aproveita uma equipa que, a não ser que se prove o contrário, tem dado boa conta do recado na administração municipal? E como se entendem as palavras de Ruas por ocasião do falecimento de Almeida Henriques sobre o seu putativo desejo de que a questão da candidatura não passasse pela sua pessoa?

Nada tenho a dizer contra o atual candidato, antes pelo contrário. No entanto, se a sua candidatura tiver êxito, espero que não volte a aconselhar os presidentes da junta a correr à pedrada os fiscais do Ministério do Ambiente, como o fez em tempos numa sessão da Assembleia Municipal.

Por outro lado, há que referir que não se lhe conhecem ligações com o futebol a nível de jogador nem de treinador; não foi condenado nem se quer arguido; e não manifesta ideias próprias de Ventura e quejandos.   

Mas, quanto à renovação partidária de que Rio se tornou pregoeiro, estamos conversados, a não ser que se entenda a renovação num quadro noético de nostalgia restauradora, de que fala Anne Applebaum no seu livro “o crepúsculo da democracia”. Com efeito, quando a atualidade não oferece, em democracia, soluções diversas e novas, algo vai mal no reino das liberdades.

2021.05.19 – Louro de Carvalho

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