terça-feira, 11 de maio de 2021

O processo de Jesus configura grave erro judiciário face às leis coevas

 

Um dos episódios mais emblemáticos e relevantes registados pelos historiadores, passado ao cinema e proposto à meditação dos crentes é o julgamento de Jesus Cristo. Porém, a detenção, julgamento e condenação estão perpassados de ilegalidades, nulidades e ofensas aos basilares princípios do Direito vigente ao tempo, a ponto de se poder afirmar que não houve verdadeira decisão condenatória transitada em julgado, mas verdadeiro assassinato perpetrado pelo poder religioso e político tendo como pano de fundo o veredicto ditado na praça pela multidão exaltada depois de industriada pelos líderes judaicos.

A base jurídica do povo hebreu era a Torah (o Pentateuco bíblico) e a Mishnah (a primeira grande redação na forma escrita da tradição oral judaica). Os juízes aplicadores do Direito compunham o Sinédrio, mas, ao tempo, era o governador (ou procurador) romano Pôncio Pilatos quem possuía o “ius gladii, ou seja, o poder da vida e da morte.

Jesus foi, pois, sujeito a dois julgamentos: religioso, perante os sinedritas; e o político, perante Pilatos. As acusações de índole religiosa tinham a ver com a sua assunção do estatuto de filho de Deus e a alegada profanação do Sábado; e as políticas eram: sedição, declarar-se rei, incitar o povo a não pagar os impostos a César e, pela assunção como filho de Deus, equiparar-se ao Imperador romano, considerado filho dos deuses. Ora, como o Sinédrio não tinha o poder para decretar a pena capital, Jesus foi acusado a Pilatos de ter instigado o povo à revolta, sedição, incitando-o a não pagar o tributo a César e de ter-se proclamado rei (crimen laesae majestatis).

O processo da morte de Jesus começa com a sua detenção, que ocorreu na noite de quinta-feira, véspera da Páscoa, sem qualquer mandado. Judas Iscariotes, que traiu o seu Mestre por 30 moedas de prata, entregou-o àqueles serventuários dos sacerdotes que O queriam ver morto. E, de imediato foi conduzido à casa de Anás (cf Jo 18,13.19-23), que já não era o sumo sacerdote, após o que foi levado a Caifás, o sumo sacerdote naquele ano, que O interrogou diante de alguns sinedritas e funcionários, não no Templo e ante o Sinédrio prévia e atempadamente convocado. 

Dos textos bíblicos infere-se que a acusação consiste em não ter o devido temor e respeito ao nome de Deus, ter sido movido e seduzido por Belzebu, ter proclamado, falsa e repetidamente, na cidade e noutros locais, autoridade e poderes que não possuía, ter blasfemado, ter profanado o Templo e o Sábado, ter alterado, subvertido e mudado a lei, ter tentado insurreição por meio de várias declarações e ações contra o Templo e contra o governo temporal.

Todavia, em nenhum momento Jesus cometeu o crime de blasfémia presente no Mishnah 7.5. Foram as suas afirmações de ser o Cristo e de que todos veriam o Filho do Homem sentado à direita de Deus Poderoso que provocaram a decisão da blasfémia contra Ele, como o evangelista Mateus relata (cf Mt 26,59-65). Porém, segundo a lei judaica a segunda afirmação não caraterizaria a blasfémia, pois não configura a negação do princípio fundamental do monoteísmo, que não admitia outro ser divino além de Deus. Dizer-se sentado ao lado de Deus é afirmação de posição privilegiada e não afronta à unicidade de Deus. E, mesmo quando Caifás, o sumo sacerdote que dirigia o julgamento, Lhe perguntou se Ele era filho de Deus, para tentar caraterizar a blasfémia, Jesus respondeu que quem estava dizendo isso era o próprio Caifás:

Ergueu-se e disse-lhe: ‘Não respondes coisa alguma ao que estes depõem contra ti?’. Jesus, porém, guardava silêncio. E, insistindo o sumo sacerdote, disse-lhe: ‘Conjuro-te pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus’. Disse-lhe Jesus: ‘Tu o disseste; digo-vos, porém, que vereis em breve o Filho do homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu’.” (Mt 26,62-64).

Então, para o sumo sacerdote e demais julgadores, Jesus confessou o crime de blasfémia:

O sumo sacerdote rasgou as suas vestes, dizendo: ‘Blasfemou; para que precisamos ainda de testemunhas? Eis que bem ouvistes agora a sua blasfémia. Que vos parece?’. E eles responderam: ‘É réu de morte’. Então cuspiram-Lhe no rosto e davam-Lhe punhadas, e outros esbofeteavam-No.” (Mt 26,65-67).

E, além da blasfémia, também foi acusado de profanar o Sábado e ser um falso profeta.

Ora, para ser condenado à morte, além de passar pelo julgamento religioso, teria de ser presente a julgamento político perante o governador romano Pôncio Pilatos, visto que Roma dominava a região de Jerusalém e impunha o seu Direito. Só que, no Direito Romano, não havia lugar a acusações de índole religiosa. Assim, tinham de encontrar outra acusação.

Como refere Gustavo Zagrebelsky (in “A crucificação e a democracia”, Ed. São Paulo: Saraiva, 2011), aos membros do Sinédrio interessava o envolvimento de Pilatos, por não terem o poder de mandar Jesus para a morte e por lhes ser essencial o aval da autoridade romana devido a motivos de política interna por causa do temor duma rebelião por ocasião da Páscoa. Por isso, era preciso deslocar o assunto do plano teológico para o plano político, relevante para os romanos. Assim, Jesus foi acusado de ter instigado o povo à revolta incitando-o a não pagar o tributo a César e de Ele mesmo Se ter proclamado rei: crimen laesae majestatis”.

Encaminhado para Pilatos, este, num primeiro momento, enviou Jesus ao rei Herodes para julgamento, pois era da sua jurisdição por ser galileu. Herodes devolveu-O sem sentença (cf Lc 23, 6-12). Assim, à falta de acusação sustentável e prisão ilegal acresce o juiz incompetente.

Pilatos propiciou a escolha multidão (privilegium paschale), segundo o direito consuetudinário de soltar um preso na época da Páscoa, uma amnistia parcial (cf Jo 18,39-40). Estava preso por sedição Barrabás, um homem conhecido. Quando a multidão se reuniu, Pilatos perguntou-lhe quem queriam que soltasse, Barrabás ou Jesus. Por aclamação escolheram Barrabás, pois os chefes dos sacerdotes e líderes judeus convenceram a multidão a pedir ao governador soltasse Barrabás e condenasse Jesus. E Pilatos perguntou o que fazer àquele a quem chamavam de Messias, tendo obtido como resposta que O crucificasse. Então, lavou as mãos e disse ao povo: “Estou inocente do sangue deste justo; fique o caso convosco!(Mt 27,24).

Na execução da sentença, um soldado romano foi o executor de Jesus, cravou os pregos nas mãos e pés, cumprindo ordens, sem se prever sepultura. No mundo romano, a morte sem sepultura era a maior desonra, pois a exposição dum corpo aos olhares de todos e ao pasto de animais significava destruição da identidade. Assim, depois de Pilatos ter entregado Jesus para a crucificação, os atos de execução foram cruéis: Jesus foi obrigado a cruz até ao monte onde seria crucificado, no que foi ajudado pelo cireneu; foi crucificado e alçado na cruz, ente dois malfeitores; e, para garantir a morte, o exactor mortis dirigiu a lança para o lado de Jesus, fazendo com que atravessasse suas costelas e chegasse ao coração (cf Jo 19,17-37).

Eis, segundo alguns, as principais nulidades ocorridas no maior erro do judiciário na história da humanidade: julgamento ilegal, sem observância das formalidades das leis judaica e romana, sem apresentação de acusação delimitada e circunstanciada, sem direito a defesa, a contraditório e a recurso e com atribuição de pena não correspondente ao crime imputado.

Assim, as ilegalidades processuais foram: Jesus foi julgado e executado durante o Pessach (Páscoa), a mais importante festa judaica, o que não era lícito face à Lei Oral Hebraica (Halaká); não foi apregoada no Templo qualquer notícia pública sobre o caso; não se observou o tempo mínimo de aviso, imposto por lei, para anunciar a ocorrência de modo que todos os que o desejassem fazer comparecessem ao julgamento; não se buscou qualquer testemunha para depor em seu favor; não foi enviada notificação escrita à fortaleza Antonia, o que teria permitido ao procurador exercer o direito de enviar ao tribunal judaico um assessor e decidir se havia ou não necessidade de intervir; a detenção aconteceu uma hora antes da meia-noite de quinta-feira, em total desrespeito aos costumes e preceitos legais judaicos, pelo que foi detido ilegalmente; foi ilegalmente interrogado, porque Anás, não sendo sumo sacerdote não dispunha de poder para o interrogar, o tribunal não podia ser reunido à noite, nem o direito judaico admitia o julgamento noturno; as testemunhas foram arroladas pelo próprio juiz e eram falsas; faltou o facto típico punível, tendo sido processado e condenado sem imputação de crime, o que ofende o princípio do nullum crimen sine lege; verificou-se a falta de indiciamento, pois nenhuma ordem foi emitida por qualquer autoridade competente, ficando desrespeitando o código criminal romano; o interrogatório na residência particular de Caifás contrariou a lei, pois o lugar legítimo para tais atos de processo era o Templo; os juízes eram suspeitos e com interesse na causa; a prisão foi ilegal, pois desrespeitou o horário estipulado para o ato e a inviolabilidade de domicílio, bem como ocorreu sem a existência de mandado e com a ausência dos institutos de prisão provisória e preventiva; o julgamento hebraico não foi público, não tendo sido observado o princípio da publicidade; não se apresentou prova para condenação (um tribunal penal não admitia que alguém fosse declarado culpado pela confissão; só poderia ser considerado culpado mediante o depoimento de, pelo menos, duas testemunhas; o julgamento não teve oitiva legal); Jesus não teve direito a qualquer defesa, tendo havido cerceamento do direito de defesa; Jesus foi traído por Judas, pelo preço de 30 moedas, em troca da delação, quando a lei mosaica proibia a acusação mediante traição; contrariamente à lei, a sentença foi proferida no mesmo dia, não o podendo ser por se tratar de pena capital; a pena foi equivocada, já que nenhum dos alegados crimes era punível com morte, muito menos com crucificação; não houve denúncia, quando um processo só se iniciava por ação movida por um cidadão romano, a delatio crimini, e o acusado teria o seu nome lançado na tábua do rol de culpados, aguardando-se o prazo de 30 dias para colheita de provas; não se formou júri (juízes eleitos) nem tribunal coletivo; não havia nenhuma prova contra Jesus; a prisão foi equivocada, visto que o direito romano exigia indiciamento criminal formal antes da detenção do acusado; da sentença cabia recurso para órgão superior, appelatio, o que não aconteceu; a crucificação era reservada ao crime de sedição e Jesus não foi condenado por sedição, mas por ser “Rei dos Judeus”; Jesus Cristo não teve advogado, defensor, defesa técnica ou mesmo autodefesa; não houve qualquer investigação preliminar; foi agredido durante o interrogatório na presença de sinedritas; um único juiz decidiu, quando sem pluralidade nos depoimentos incriminadores não podia haver condenação; o julgamento foi parcial, foi ditado pela multidão.

Enfim, Jesus foi condenado pela instância popular. Pilatos curvou-se à vontade do povo, mesmo convicto de que Jesus não havia cometido qualquer crime e claudicou diante de todas as ilegalidades processuais, o que faz lembrar a justiça-espetáculo dos nossos dias em que se faz a condenação dos arguidos na comunicação social ou em que os juízes não resistem às pressões, em vez julgarem sempre com base nas provas dos autos, cônscios dos ditames da Justiça.

***

No julgamento político, nem Pilatos estava convencido da culpabilidade de Jesus. A audiência começou e o governador indagou sobre que acusação traziam contra aquele homem (cf Jo 18,29). Como não tinham nenhum ato em concreto, reponderam que “se este não fosse malfeitor, não to entregaríamos(Jo 18,30). Então Pilatos retrucou: “Levai-o vós, e julgai-o segundo a vossa lei(Jo 18,30), a lei dos judeus e não a romana. Porém os judeus queriam a morte de Jesus e, como pela Lei judaica isso não seria possível, necessitavam do Direito Romano, retorquiram: “A nós não nos é lícito matar pessoa alguma(Jo 18,31). E Pilatos interpelou Jesus, perguntando-Lhe: “Tu és o Rei dos Judeus?”. Ao que Jesus respondeu:Tu dizes isso de ti mesmo ou disseram-to outros de mim?”. (cf Jo 18,33.34). E o diálogo prosseguiu:

Pilatos respondeu: ‘Porventura sou eu judeu? A tua nação e os sumos sacerdotes entregaram-te a mim. Que fizeste?’ Respondeu Jesus: ‘O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui’. Disse-lhe, pois, Pilatos: ‘Logo tu és rei?’ Jesus respondeu: ‘Tu dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.’. Disse-lhe Pilatos: ‘Que é a verdade?’ E, dizendo isto, tornou a ir ter com os judeus e disse-lhes: ‘Não acho nele crime algum.’. (cf Jo 18,35-37).

Pilatos, convicto da inocência de Jesus, disse: ‘NÃO ACHO NELE CRIME ALGUM”.

E, mais uma vez, tentou soltar Jesus, visto que não viu nenhum crime, mas a pressão da multidão levou-o a um comportamento contrário, como se vê pelo seguinte passo evangélico:

Saiu outra vez e disse-lhes: ‘Vou trazê-lo cá fora para saberdes que não acho nele crime algum. Saiu, pois, Jesus fora, levando a coroa de espinhos e roupa de púrpura. E disse-lhes Pilatos: ‘Eis aqui o homem’. Vendo-o, pois, os príncipes dos sacerdotes e os servos, clamaram, dizendo: ‘Crucifica-o, crucifica-o’. Disse-lhes Pilatos: Tomai-o vós e crucificai-o; porque eu nenhum crime acho nele. Responderam-lhe os judeus: Nós temos uma lei e, segundo a nossa lei, deve morrer, porque se fez Filho de Deus. E Pilatos, quando ouviu esta palavra, mais atemorizado ficou. E entrou outra vez na audiência e disse a Jesus: ‘De onde és tu?’. Mas Jesus não lhe deu resposta. Disse-lhe, pois, Pilatos: ‘Não me falas a mim? Não sabes que tenho poder para te crucificar e para te soltar?’. Respondeu Jesus: ‘Nenhum poder terias contra mim, se de cima não te fosse dado; mas quem me entregou a ti maior pecado tem’. Desde então Pilatos procurava soltá-lo; mas os judeus clamavam: ‘Se o soltas, não és amigo de César; qualquer que se faz rei é contra César.’.” (Jo 19,4-12).

Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomou água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: “Estou inocente do sangue deste justo. Isso é convosco”. E todo o povo respondeu: “O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos(Mt 27,24-25). E Pilatos lavou as mãos sobre a condenação de Jesus – atitude de cobardia e irresponsabilidade.

Contrariando a lei judaica (vd Dt 19,15), que estabelece que uma só testemunha contra alguém não dá para o acusar de qualquer iniquidade ou pecado, seja qual for o pecado que cometeu, mas só pela boca de duas ou de três testemunhas se estabelecerá o facto.

A única testemunha, que não aduziu qualquer facto (apenas entregou o Mestre), foi Judas Iscariotes, corrompido por de 30 moedas de prata (cf Mt 26,14-16.48-49; Mc 14, 10-11.44-45).

A verdade é que por ocasião da páscoa, os príncipes dos sacerdotes e os escribas procuravam o modo de matar o Rei dos Judeus sem causar alvoroço, pois Jesus tinha-se alegadamente tornado inimigo do Estado e da Religião. E entrou Satanás em Judas a propor-lhe como O entregaria: diria aos soldados onde Jesus se encontrava e, ao chegar lá, beijá-Lo-ia, indicando-lhes assim quem era o Rei dos Judeus. E isso aconteceu como previsto:

E, estando ele ainda a falar, surgiu uma multidão; e um dos doze, que se chamava Judas, ia adiante dela, e chegou-se a Jesus para o beijar. E Jesus lhe disse: ‘Judas, com um beijo trais o Filho do homem?’.” (Lc 22,47-48).

O próprio Judas arrepende-se e entrega as moedas aos sacerdotes confessando que tinha entregado um homem inocente:

Então Judas, o que o traíra, vendo que fora condenado, trouxe, arrependido, as 30 moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: ‘Pequei, traindo o sangue inocente’. Eles, porém, disseram: ‘Que nos importa? Isso é contigo.’. E ele, atirando para o templo as moedas de prata, retirou-se e foi-se enforcar.” (Mt 27,3-5).

Pilatos entendera o motivo: “sabia que por inveja o entregaram(Mt 27,18; cf Mc 15,10).

Em suma, assassinado, não devidamente julgado nem condenado judicialmente. Deus perdoe!

2021.05.11 – Louro de Carvalho

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