Um dos episódios
mais emblemáticos e relevantes registados pelos historiadores, passado ao
cinema e proposto à meditação dos crentes é o julgamento de Jesus
Cristo. Porém, a detenção, julgamento e condenação estão perpassados de
ilegalidades, nulidades e ofensas aos basilares princípios do Direito vigente
ao tempo, a ponto de se poder afirmar que não houve verdadeira decisão
condenatória transitada em julgado, mas verdadeiro assassinato perpetrado pelo
poder religioso e político tendo como pano de fundo o veredicto ditado na praça
pela multidão exaltada depois de industriada pelos líderes judaicos.
A base
jurídica do povo hebreu era a Torah (o Pentateuco bíblico) e a Mishnah (a
primeira grande redação na forma escrita da tradição oral judaica). Os juízes aplicadores do Direito compunham o
Sinédrio, mas, ao tempo, era o governador (ou procurador) romano Pôncio Pilatos quem possuía o “ius
gladii”, ou seja, o poder
da vida e da morte.
Jesus foi,
pois, sujeito a dois julgamentos: religioso, perante os sinedritas; e o
político, perante Pilatos. As acusações de índole religiosa tinham a ver com a
sua assunção do estatuto de filho de Deus e a alegada profanação do Sábado; e
as políticas eram: sedição, declarar-se rei, incitar o povo a não pagar os impostos
a César e, pela assunção como filho de Deus, equiparar-se ao Imperador romano,
considerado filho dos deuses. Ora, como o Sinédrio não tinha o poder para
decretar a pena capital, Jesus foi acusado a Pilatos de ter instigado o povo à
revolta, sedição, incitando-o a não pagar o tributo a César e de ter-se
proclamado rei (crimen laesae majestatis).
O processo da
morte de Jesus começa com a sua detenção, que ocorreu na noite de quinta-feira,
véspera da Páscoa, sem qualquer mandado. Judas Iscariotes, que traiu o seu
Mestre por 30 moedas de prata, entregou-o àqueles serventuários dos sacerdotes
que O queriam ver morto. E, de imediato foi conduzido à casa de Anás (cf Jo
18,13.19-23), que já não
era o sumo sacerdote, após o que foi levado a Caifás, o sumo sacerdote naquele
ano, que O interrogou diante de alguns sinedritas e funcionários, não no Templo
e ante o Sinédrio prévia e atempadamente convocado.
Dos textos
bíblicos infere-se que a acusação consiste em não ter o devido temor e respeito ao nome de Deus, ter sido movido e
seduzido por Belzebu, ter proclamado, falsa e repetidamente, na cidade e noutros
locais, autoridade e poderes que não possuía, ter blasfemado, ter profanado o
Templo e o Sábado, ter alterado, subvertido e mudado a lei, ter tentado
insurreição por meio de várias declarações e ações contra o Templo e contra o governo
temporal.
Todavia, em nenhum
momento Jesus cometeu o crime de blasfémia presente no Mishnah 7.5. Foram as
suas afirmações de ser o Cristo e de
que todos veriam o Filho do Homem sentado à direita de Deus Poderoso que
provocaram a decisão da blasfémia contra Ele, como o evangelista Mateus relata (cf Mt 26,59-65). Porém, segundo a lei judaica a segunda afirmação não caraterizaria a
blasfémia, pois não configura a negação do princípio fundamental do monoteísmo,
que não admitia outro ser divino além de Deus. Dizer-se sentado ao lado de Deus
é afirmação de posição privilegiada e não afronta à unicidade de Deus. E, mesmo quando Caifás, o sumo sacerdote que dirigia o julgamento,
Lhe perguntou se Ele era filho de Deus, para tentar caraterizar a blasfémia,
Jesus respondeu que quem estava dizendo isso era o próprio Caifás:
“Ergueu-se
e disse-lhe: ‘Não respondes coisa
alguma ao que estes depõem contra ti?’. Jesus, porém, guardava silêncio. E,
insistindo o sumo sacerdote, disse-lhe: ‘Conjuro-te pelo Deus vivo que nos
digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus’. Disse-lhe Jesus: ‘Tu o disseste; digo-vos, porém, que
vereis em breve o Filho do homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vindo
sobre as nuvens do céu’.” (Mt 26,62-64).
Então, para
o sumo sacerdote e demais julgadores, Jesus confessou o crime de blasfémia:
“O sumo
sacerdote rasgou as suas vestes, dizendo: ‘Blasfemou; para que precisamos ainda
de testemunhas? Eis que bem ouvistes agora a sua blasfémia. Que vos parece?’. E
eles responderam: ‘É réu de morte’. Então cuspiram-Lhe no rosto e davam-Lhe
punhadas, e outros esbofeteavam-No.” (Mt 26,65-67).
E, além da
blasfémia, também foi acusado de profanar o Sábado e ser um falso profeta.
Ora, para ser
condenado à morte, além de passar pelo julgamento religioso, teria de ser
presente a julgamento político perante o governador romano Pôncio Pilatos,
visto que Roma dominava a região de Jerusalém e impunha o seu Direito. Só que, no
Direito Romano, não havia lugar a acusações de índole religiosa. Assim, tinham
de encontrar outra acusação.
Como refere
Gustavo Zagrebelsky (in “A
crucificação e a democracia”, Ed. São Paulo: Saraiva, 2011), aos membros
do Sinédrio interessava o envolvimento de Pilatos, por não terem o poder de
mandar Jesus para a morte e por lhes ser essencial o aval da autoridade romana devido
a motivos de política interna por causa do temor duma rebelião por ocasião da
Páscoa. Por isso, era preciso deslocar o assunto do plano teológico para o
plano político, relevante para os romanos. Assim, Jesus foi acusado de ter
instigado o povo à revolta incitando-o a não pagar o tributo a César e de Ele
mesmo Se ter proclamado rei: crimen laesae majestatis”.
Encaminhado para
Pilatos, este, num primeiro momento, enviou Jesus ao rei Herodes para
julgamento, pois era da sua jurisdição por ser galileu. Herodes devolveu-O sem
sentença (cf Lc 23,
6-12). Assim, à falta de acusação
sustentável e prisão ilegal acresce o juiz incompetente.
Pilatos
propiciou a escolha multidão (privilegium paschale), segundo o direito consuetudinário de soltar um preso
na época da Páscoa, uma amnistia parcial (cf Jo 18,39-40). Estava
preso por sedição Barrabás, um homem conhecido. Quando a multidão se reuniu,
Pilatos perguntou-lhe quem queriam que soltasse, Barrabás ou Jesus. Por
aclamação escolheram Barrabás, pois os chefes dos sacerdotes e líderes judeus
convenceram a multidão a pedir ao governador soltasse Barrabás e condenasse
Jesus. E Pilatos perguntou o que fazer àquele a quem chamavam de Messias, tendo
obtido como resposta que O crucificasse. Então, lavou as mãos e disse ao povo: “Estou inocente do sangue deste justo; fique
o caso convosco!” (Mt 27,24).
Na execução
da sentença, um soldado romano foi o executor de Jesus, cravou os pregos nas
mãos e pés, cumprindo ordens, sem se prever sepultura. No mundo romano, a morte
sem sepultura era a maior desonra, pois a exposição dum corpo aos olhares de
todos e ao pasto de animais significava destruição da identidade. Assim, depois
de Pilatos ter entregado Jesus para a crucificação, os atos de execução foram
cruéis: Jesus foi obrigado a cruz até ao monte onde seria crucificado, no que
foi ajudado pelo cireneu; foi crucificado e alçado na cruz, ente dois
malfeitores; e, para garantir a morte, o exactor mortis dirigiu
a lança para o lado de Jesus, fazendo com que atravessasse suas costelas e
chegasse ao coração (cf Jo 19,17-37).
Eis, segundo
alguns, as principais nulidades ocorridas no maior erro do judiciário na
história da humanidade: julgamento ilegal, sem observância das formalidades das
leis judaica e romana, sem apresentação de acusação delimitada e
circunstanciada, sem direito a defesa, a contraditório e a recurso e com
atribuição de pena não correspondente ao crime imputado.
Assim, as
ilegalidades processuais foram: Jesus foi julgado e executado durante o Pessach
(Páscoa), a mais importante festa judaica, o que não era
lícito face à Lei Oral Hebraica (Halaká); não foi
apregoada no Templo qualquer notícia pública sobre o caso; não se observou o
tempo mínimo de aviso, imposto por lei, para anunciar a ocorrência de modo que
todos os que o desejassem fazer comparecessem ao julgamento; não se buscou
qualquer testemunha para depor em seu favor; não foi enviada notificação escrita à fortaleza Antonia, o que
teria permitido ao procurador exercer o direito de enviar ao tribunal judaico
um assessor e decidir se havia ou não necessidade de intervir; a detenção
aconteceu uma hora antes da meia-noite de quinta-feira, em total desrespeito
aos costumes e preceitos legais judaicos, pelo que foi detido ilegalmente; foi
ilegalmente interrogado, porque Anás, não sendo sumo sacerdote não dispunha de
poder para o interrogar, o tribunal não podia ser reunido à noite, nem o
direito judaico admitia o julgamento noturno; as testemunhas foram arroladas
pelo próprio juiz e eram falsas; faltou o facto típico punível, tendo sido
processado e condenado sem imputação de crime, o que ofende o princípio do nullum
crimen sine lege; verificou-se a falta de indiciamento, pois nenhuma ordem
foi emitida por qualquer autoridade competente, ficando desrespeitando o código
criminal romano; o interrogatório
na residência particular de Caifás contrariou a lei, pois o lugar legítimo para
tais atos de processo era o Templo; os juízes eram suspeitos e com interesse na
causa; a prisão foi ilegal, pois desrespeitou o horário estipulado para o ato e
a inviolabilidade de domicílio, bem como ocorreu sem a existência de mandado e com
a ausência dos institutos de prisão provisória e preventiva; o julgamento hebraico
não foi público, não tendo sido observado o princípio da publicidade; não se
apresentou prova para condenação (um tribunal penal não admitia que
alguém fosse declarado culpado pela confissão; só poderia ser considerado
culpado mediante o depoimento de, pelo menos, duas testemunhas; o julgamento não
teve oitiva legal); Jesus não
teve direito a qualquer defesa, tendo havido cerceamento do direito de defesa; Jesus
foi traído por Judas, pelo preço de 30 moedas, em troca da delação, quando a
lei mosaica proibia a acusação mediante traição; contrariamente à lei, a sentença
foi proferida no mesmo dia, não o podendo ser por se tratar de pena capital; a
pena foi equivocada, já que nenhum dos alegados crimes era punível com morte,
muito menos com crucificação; não houve denúncia, quando um processo só se iniciava
por ação movida por um cidadão romano, a delatio crimini, e o
acusado teria o seu nome lançado na tábua do rol de culpados, aguardando-se o
prazo de 30 dias para colheita de provas; não se formou júri (juízes
eleitos) nem tribunal coletivo; não havia
nenhuma prova contra Jesus; a prisão foi equivocada, visto que o direito romano
exigia indiciamento criminal formal antes da detenção do acusado; da sentença
cabia recurso para órgão superior, appelatio,
o que não aconteceu; a crucificação era reservada ao crime de sedição e Jesus
não foi condenado por sedição, mas por ser “Rei
dos Judeus”; Jesus Cristo não teve advogado, defensor, defesa técnica ou
mesmo autodefesa; não houve qualquer investigação preliminar; foi agredido durante
o interrogatório na presença de sinedritas; um único juiz decidiu, quando sem
pluralidade nos depoimentos incriminadores não podia haver condenação; o
julgamento foi parcial, foi ditado pela multidão.
Enfim, Jesus foi
condenado pela instância popular. Pilatos curvou-se à vontade do povo, mesmo
convicto de que Jesus não havia cometido qualquer crime e claudicou diante de
todas as ilegalidades processuais, o que faz lembrar a justiça-espetáculo dos
nossos dias em que se faz a condenação dos arguidos na comunicação social ou em
que os juízes não resistem às pressões, em vez julgarem sempre com base nas
provas dos autos, cônscios dos ditames da Justiça.
***
No
julgamento político, nem Pilatos estava
convencido da culpabilidade de Jesus. A audiência começou e o governador
indagou sobre que acusação traziam contra aquele homem (cf Jo
18,29). Como não tinham nenhum ato em
concreto, reponderam que “se este não
fosse malfeitor, não to entregaríamos” (Jo 18,30). Então Pilatos retrucou: “Levai-o vós, e julgai-o segundo a vossa lei” (Jo 18,30), a lei dos judeus e não a romana. Porém os judeus
queriam a morte de Jesus e, como pela Lei judaica isso não seria possível,
necessitavam do Direito Romano, retorquiram: “A nós não nos é lícito matar pessoa alguma” (Jo 18,31). E Pilatos interpelou Jesus, perguntando-Lhe: “Tu
és o Rei dos Judeus?”. Ao que
Jesus respondeu: “Tu dizes isso de ti mesmo ou disseram-to outros de
mim?”. (cf Jo 18,33.34). E o diálogo prosseguiu:
“Pilatos
respondeu: ‘Porventura sou eu judeu? A tua nação e os sumos sacerdotes entregaram-te a mim. Que
fizeste?’ Respondeu Jesus: ‘O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse
deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos
judeus; mas agora o meu reino não é daqui’. Disse-lhe, pois, Pilatos: ‘Logo tu
és rei?’ Jesus respondeu: ‘Tu
dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de
dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.’.
Disse-lhe Pilatos: ‘Que é a verdade?’ E, dizendo isto, tornou a ir ter com os
judeus e disse-lhes: ‘Não acho
nele crime algum.’.” (cf
Jo 18,35-37).
Pilatos,
convicto da inocência de Jesus, disse: ‘NÃO ACHO NELE CRIME ALGUM”.
E, mais uma
vez, tentou soltar Jesus, visto que não viu nenhum crime, mas a pressão da
multidão levou-o a um comportamento contrário, como se vê pelo seguinte passo
evangélico:
“Saiu
outra vez e disse-lhes: ‘Vou trazê-lo cá fora para saberdes que não acho nele crime algum. Saiu,
pois, Jesus fora, levando a coroa de espinhos e roupa de púrpura. E disse-lhes
Pilatos: ‘Eis aqui o homem’. Vendo-o, pois, os príncipes dos sacerdotes e os
servos, clamaram, dizendo: ‘Crucifica-o, crucifica-o’. Disse-lhes Pilatos: Tomai-o vós e crucificai-o; porque eu nenhum
crime acho nele. Responderam-lhe os judeus: Nós temos uma lei e,
segundo a nossa lei, deve morrer, porque se fez Filho de Deus. E Pilatos,
quando ouviu esta palavra, mais atemorizado ficou. E entrou outra vez na
audiência e disse a Jesus: ‘De onde és tu?’. Mas Jesus não lhe deu resposta.
Disse-lhe, pois, Pilatos: ‘Não me falas a mim? Não sabes que tenho poder para
te crucificar e para te soltar?’. Respondeu Jesus: ‘Nenhum poder terias contra
mim, se de cima não te fosse dado; mas quem me entregou a ti maior pecado tem’. Desde então Pilatos procurava soltá-lo; mas os
judeus clamavam: ‘Se o soltas, não és amigo de César; qualquer que se faz rei é
contra César.’.” (Jo 19,4-12).
Então
Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomou água, lavou as mãos diante da multidão,
dizendo: “Estou inocente do sangue deste
justo. Isso é convosco”. E todo o povo respondeu: “O seu
sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27,24-25). E Pilatos lavou as mãos sobre a condenação de Jesus –
atitude de cobardia e irresponsabilidade.
Contrariando
a lei judaica (vd Dt 19,15), que
estabelece que uma só testemunha contra alguém não dá para o acusar de qualquer
iniquidade ou pecado, seja qual for o pecado que cometeu, mas só pela
boca de duas ou de três testemunhas se estabelecerá o
facto.
A única
testemunha, que não aduziu qualquer facto (apenas entregou o Mestre), foi Judas Iscariotes, corrompido por de 30 moedas de
prata (cf Mt
26,14-16.48-49; Mc 14, 10-11.44-45).
A verdade é
que por ocasião da páscoa, os príncipes dos sacerdotes e os escribas procuravam
o modo de matar o Rei dos Judeus sem causar alvoroço, pois Jesus tinha-se
alegadamente tornado inimigo do Estado e da Religião. E entrou Satanás em Judas
a propor-lhe como O entregaria: diria aos soldados onde Jesus se encontrava e,
ao chegar lá, beijá-Lo-ia, indicando-lhes assim quem era o Rei dos Judeus. E isso
aconteceu como previsto:
“E,
estando ele ainda a falar, surgiu uma multidão; e um dos doze, que se chamava
Judas, ia adiante dela, e chegou-se a Jesus para o beijar. E Jesus lhe disse: ‘Judas,
com um beijo trais o Filho do homem?’.” (Lc 22,47-48).
O próprio
Judas arrepende-se e entrega as moedas aos sacerdotes confessando que tinha
entregado um homem inocente:
“Então Judas, o que o traíra, vendo
que fora condenado, trouxe, arrependido, as 30 moedas de prata aos príncipes
dos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: ‘Pequei, traindo o sangue
inocente’. Eles, porém, disseram: ‘Que nos importa? Isso é contigo.’. E ele, atirando para o templo as moedas de
prata, retirou-se e foi-se enforcar.” (Mt 27,3-5).
Pilatos entendera
o motivo: “sabia que por inveja o entregaram” (Mt 27,18;
cf Mc 15,10).
Em suma,
assassinado, não devidamente julgado nem condenado judicialmente. Deus perdoe!
2021.05.11 – Louro de Carvalho
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