domingo, 30 de maio de 2021

O que implica na prática “dizer” pela fé “Deus uno e trino”

 

Celebrar o mistério da Santíssima Trindade neste Ano B não postula a compreensão do mistério de Deus uno e trino ou triuno, que é inacessível à nossa inteligência limitada. Não obstante, a relação de Deus ao longo da História, mais explicitada e aprofundada com a incarnação do Filho de Deus, que pregou a Boa Nova e deu testemunho do Deus que é Amor, e iluminada quotidianamente pelo Espírito Santo, dá-nos a perceção suficiente para sabermos como celebrar a Solenidade e agir na vida em conformidade.

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Já o trecho do livro do Deuteronómio (Dt 4,32-34.39-40), tomado para 2.ª leitura na liturgia da Solenidade, nos leva à contemplação do Deus uno, não só o maior, mas o único. Na verdade, o livro em referência é o “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18.° ano do reinado de Josias (622 a.C. cf 2Rs 22). Aí os teólogos deuteronomistas, originários do Norte, mas refugiados no Sul após as derrotas dos reis do Norte pelos assírios, garantem a existência de um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém), pois amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna. Por seu turno, o Povo de Deus deve ser um único Povo e propriedade pessoal do Senhor, pelo que não têm sentido as questões que levaram o Povo à divisão político-religiosa, após a morte de Salomão.

O livro compagina um conjunto de três discursos de Moisés, proferidos nas planícies de Moab, como o testamento espiritual que Moisés, pressentindo a proximidade da morte, Moisés legou ao Povo lembrando-lhe o compromisso assumido para com Deus e convidando-o a renovar a aliança com Ele. E o trecho ora em apreço insere-se no 1.º discurso de Moisés (cf Dt 1,6-4,43). Na primeira parte do discurso (cf Dt 1,6-3,29), o hagiógrafo põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, da estada no Horeb (Sinai) à chegada ao monte Pisga (Transjordânia); e, na parte final (cf Dt 4,1-43), resume, em modo exortativo, o teor da Aliança e das suas exigências. Com efeito, a ação de Deus ao longo da caminhada do Povo deve conduzir ao compromisso.

Será de frisar que o capítulo 4 do livro foi redigido na fase final do exílio na Babilónia. Perdido em terra estrangeira, imerso numa cultura estranha, hostilizado ao afirmar a fé no Senhor e celebrá-la pelo culto e impressionado com o esplendor ritual e solenidades do culto babilónico, o Povo bíblico tentava-se a trocar Javé pelos deuses Babilónicos. É, pois, neste contexto que os teólogos se veem na urgência de instar o Povo a rever a sua história e ali redescobrir a presença salvadora e amorosa de Javé e a recomprometer-se com Deus e com a Aliança.

Assim, no trecho que a liturgia põe à nossa consideração, vemos o teólogo a convidar Israel à contemplação da história desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra, com o contínuo empenho de Javé em oferecer ao seu Povo a vida e a salvação. Toda esta história é uma história extraordinária de relação, em que ressalta a manifestação do amor de um Deus empenhado em estabelecer comunhão e familiaridade com o seu Povo. Ou seja, Javé escolheu Israel de entre todos os povos da terra, veio ao seu encontro, falou-lhe ao coração e realizou gestos destinados a levar o Povo ao encontro da vida. De muitos modos, Deus fez ouvir a sua voz, indicou caminhos e conduziu o seu Povo da escravidão para a liberdade.

Por consequência, na ótica do teólogo deuteronomista, Israel deve, antes de mais, reconhecer que “só o Senhor é Deus e que não há outro”. D’Ele e só d’Ele brotam a vida e a salvação, o que postula que o Povo não coloque a sua esperança noutros deuses ou noutras propostas ilusórias e enganadoras. Depois, Israel deve cumprir as leis e os mandamentos de Deus, pois essas leis e mandamentos são o caminho seguro para a felicidade. Mais: este caminho dos crentes de Israel é indicado aos crentes de todas as épocas e lugares. Não é um caminho de dependência e servidão, mas de felicidade. Deus não se imiscui na vida dos homens para os fazer dependentes, mas para os libertar e os levar à vida e felicidade plenas.

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O Povo bíblico veterotestamentário tinha a noção do Deus Único e do seu desvelo pelos homens, mas não a ideia da Trindade de Deus na Unidade. Esta é revelada por Jesus, como se pode ver compulsando várias passagens do Novo Testamento, de que o trecho (Mt 28,16-20), tomado para proclamação e meditação orante na liturgia da Solenidade, é um bom exemplo.  

Estamos na Galileia, após a ressurreição de Jesus (sem dizer se é muito ou pouco tempo após a visão do túmulo vazio – cf Mt 28,1-15). Segundo Mateus, pouco antes da prisão, Jesus marcara encontro com os discípulos na Galileia (cf Mt 26,32); e, na manhã da Ressurreição, o anjo que apareceu às mulheres no sepulcro (cf Mt 28,7) e o próprio Jesus, vivo e ressuscitado (cf Mt 28,10), mandam recado para que os discípulos, ora irmãos, se dirijam à Galileia, que lá O encontrarão.

Recorde-se que a Galileia, região setentrional da Palestina, era próspera e povoada, de solo fértil e cultivado. A situação geográfica fazia da região ponto de encontro de muitos povos, pelo que um número significativo de pagãos integrava a sua população. Ora, a coabitação de populações pagãs e judias fazia com que os judeus da Galileia vivessem a religião de maneira diferente dos judeus de Jerusalém e da Judeia: a presença diária dos pagãos levava os galileus a suavizar a prática da Lei e a interpretar amplamente as regras conexas com ela, por exemplo, no atinente às impurezas rituais contraídas pelo contacto com os não judeus. E isto fazia com que os judeus de Jerusalém desprezassem os galileus e considerassem que da Galileia “não podia sair nada de bom” (cf Jo 1,46). Todavia, foi na Galileia que Jesus viveu quase toda a sua vida e foi ali que Ele começou a anunciar o Evangelho do Reino e a reunir à sua volta um grupo de discípulos (cf Mt 4,12-22). Para Mateus, este facto sugere, desde logo, que o anúncio libertador de Jesus tem uma dimensão universal: destina-se a judeus e pagãos.

Mateus situa o encontro final entre Jesus ressuscitado e os discípulos, num “monte que Jesus lhes indicara”, impossível identificar geograficamente, mas que talvez se ligue com a montanha da tentação (cf Mt 4,8) e com a da transfiguração (cf Mt 17,1). Seja como for, é certo que o monte é sempre, no Antigo Testamento, o lugar onde Deus Se revela aos homens.

Para Dom António Couto, Bispo de Lamego, a montanha é aqui a analepse das montanhas que afloram no Evangelho mateano: da tentação (Mt 4,8), das bem-aventuranças (Mt 5,1), da oração (Mt 14,23), das curas (Mt 15,29) e da Transfiguração (Mt 17,1). O prelado mui sabiamente considera esta página evangélica a condensação e resumo de todo o Evangelho mateano, bem como o termo de abertura de “novos e insuspeitados horizontes” aos “discípulos e irmãos do Ressuscitado”. E surpreende-nos a evidenciar as notas essenciais do texto, qual “átrio sempre entreaberto do Evangelho para o mundo”: a autoridade soberana e nova de Jesus, assente, não na distância, mas na proximidade e familiaridade; a missão universal confiada a uma Igreja discipular, reunida à volta dum único Mestre e Senhor; o mandato do ensinamento pelos discípulos (só aqui é dito que os discípulos devem, por sua vez, ensinar), mas não se transformando os discípulos em mestres, devendo permanecer discípulos; o ensinamento de nada de próprio nem por conta própria, mas só de “tudo o que Eu vos mandei” (“pánta hósa eneteilámên hymîn”); e a presença nova e permanente, ou seja, “todos os dias” (“pásas tàs hêméras”) do Ressuscitado na comunidade dos discípulos.

O trecho em referência divide-se em duas partes.

A primeira (Mt 16-18) descreve o encontro em que Jesus, vivo e ressuscitado, Se revela­ aos discípulos e os discípulos O reconheceram como “o Senhor” e O adoraram (“prosekýnêsan”). Depois da adoração, Mateus acrescenta a expressão “hoi dè edístasan(em latim: “quidam autem dubidauerunt”), que uns traduzem por “alguns ainda duvidaram” e outros por “eles que tinham duvidado”. São legítimas as duas traduções em termos gramaticais. Para o primeiro caso, é de ter em conta que a fé não é uma certeza científica e não exclui a dúvida; para o segundo, é de recordar a dúvida constante dos discípulos, expressa recorrentemente ao longo da caminhada para Jerusalém e que perde aqui razão de ser. Ao reconhecimento e à adoração dos discípulos, seguiu-se a manifestação do mistério de Jesus, que reflete a fé da comunidade mateana: Jesus é o Kýrios, que possui todo o poder sobre o mundo e a história; é o Mestre cujo ensinamento será a referência para os discípulos; Jesus é o Emmanuel “Deus­ connosco(“meth’ hêmôn ho Theós”), que acompanha pari passu a caminhada dos discípulos pela história.

A segunda parte (Mt 19-20) sublinha o envio dos discípulos em missão pelo mundo. A Igreja de Jesus é uma comunidade missionária, cuja missão é testemunhar, sempre e em toda a parte, a salvação que Jesus traz a toda a humanidade e que deixou no coração e nas mãos dos discípulos. A grande marca do envio dos discípulos por Jesus e do mandato que lhes dá é a universalidade: a missão dos discípulos destina-se a “todas as nações(“pánta tà éthnê”). Outra marca é a do faseamento da concretização da missão em duas etapas: o ensino catequético e o batismo. O conteúdo da catequese eram as palavras e os gestos de Jesus (o discípulo começava em catecumenato, que lhe dava as bases da doutrina). Depois, quando os catecúmenos estavam suficientemente cientes e cônscios dos conteúdos da catequese, recebiam o batismo a selar a íntima vinculação do discípulo com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E a marca mais reconfortante é da perpétua presença de Jesus com os discípulos, “até ao fim dos tempos” (“héôs tês synteleías toû aiônos”). Esta garantia de Jesus exprime a convicção, própria da comunidade mateana, de que o Ressuscitado está sempre com a Igreja, acompanhando a comunidade dos discípulos na marcha pela história, ajudando-a a superar as crises e as dificuldades da caminhada.

Dom António Couto sublinha que a soberania nova de Jesus foi preparada na cena em que o anjo reorientou os passos das mulheres do túmulo para a Galileia, dizendo-lhes:

Indo depressa, dizei aos seus discípulos (“toîs mathêtaîs autoû”) que Ele ressuscitou dos mortos e vos precede (“proágei hymâs) na Galileia” (Mt 28,7).

E Jesus apresenta-se às mulheres no caminho e reformula o recado do anjo:

Ide e anunciai aos meus irmãos  (“toîs adelphoîs mou”) que partam para a Galileia, e lá me verão” (Mt 28,10).

Meus irmãos é o precónio da nova e indestrutível familiaridade, com Jesus a apontar para nós e a envolver-nos no indizível abraço fraternal. E, chegados à Galileia, à montanha indicada por Jesus (Mt 28,16), é Ele quem toma a dianteira e Se aproxima deles e de nós (Mt 28,18); é d’Ele a iniciativa; é sempre Ele que abraça a humanidade e abre rotas à nossa fragilidade.  

“Indo (“poreuthéntes), fazei discípulos (“mathêteúsate) de todas as nações” (Mt 28,19) é um segmento textual que espelha a missão sem fim que nos é posta ante os olhos, pois todas as nações são todos os corações. E “ir” é o inverso dinâmico do ficar à espera aqui ou ali. É ir pelo imensurável caminho abraâmico que se abre para nós e cuja bitola é a nossa eleição por Deus, a sublimidade da bênção e a grandeza da missão. E não estamos sozinhos neste caminho, porque Ele está connosco todos os dias. Com efeito, o seu nome e identidade são estar connosco. É assim que termina o Evangelho “Eu convosco sou todos os dias até ao fim dos tempos(“Egô meth’ hymôn eimi pásas tàs hêméras héôs tês synteleías toû aiônos: Mt 28,20), quase como vem no início: “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho, e chamá-lo-ão Emanuel, que se traduz: “Deus connosco(“meth’ hêmôn ho Theós”: Mt 1,23), mas no final do Evangelho com a explícita garantia da perpetuidade. Aliás, é assim todo o Evangelho, segundo Dom António Couto, como indica a figura da inclusão literária, em paralelismo ou em confronto, que vai, por exemplo, da Galileia onde se inicia a pregação messiânica (Mt 4,12-17) à Galileia onde os discípulos se reuniram com o Ressuscitado (Mt 28,16); da visão da estrela pelos magos (Mt 2,11) à visão de Jesus pelos discípulos (Mt 28,17); da adoração dos magos e da exigida a Jesus pelo diabo (Mt 2,11; 4,9) à adoração dos discípulos (Mt 28,17), do poder que o diabo daria a Jesus (Mt 4,9) ao poder dado a Jesus Pelo Pai (Mt 28,18).

E o “ensinando” (“didáskontes) discipular, não magistral – continua o Bispo de Lamego – “apela mais à nossa fidelidade do que à nossa autoridade e criatividade”. Tanto assim é que o Senhor deixa bem nítido o teor deste ensino: “tudo o que Eu vos mandei(“pánta hósa eneteilámên hymîn”: Mt 28,20), como já foi referido. Só permanecendo discípulo fiel é que o apóstolo exerce a missão, pois discípulo é quem segue com fielmente o Senhor que nos guia e precede.

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Por tudo isto, na Solenidade da Santíssima Trindade, o crente e a Igreja dos crentes exprimem a sua alegria celebrando o mistério e adorando o Deus Triuno – um só Deus em três Pessoas iguais e distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A pari, renovam e reforçam o peculiar compromisso que assumiram, através de Jesus, Deus Filho, com Deus Pai e com a sua obra, guiados por Deus Espírito Santo. Como seres discipulares e comunidade discipular, devem assumir com fidelidade o ónus e a alegria da missão universal, conforme ao mandato que receberam, sentindo a presença companheira do Senhor e dando testemunho do Deus que é Amor, do Deus que é para nós, do Deus uno e único e que é família em intimidade e comunhão.

Depois, à semelhança de Deus que é unidade de natureza na diversidade de pessoas, há que respeitar, promover e garantir a diversidade e diferenças entre pessoas, povos e culturas, mas fazer vingar a certeza de que devemos caminhar para a unidade a que somos chamados, porque filhos do Pai comum, a começar por Jesus Cristo que, redimindo-nos, Se fez nosso irmão e nos alçou à condição de filhos com Ele, Nele e por Ele.

Por fim, há que almejar a plena comunhão e intimidade de todos com e na Santíssima Trindade, percurso que se inicia neste mundo e nele se alimenta com a Oração, a Palavra, o Testemunho e o Sacramento da Eucaristia. É um dinamismo de filiação divina, prerrogativa conferida à condição humana, que pretende não deixar ninguém para trás; é a perspetiva da fraternidade universal porque todos, na diversidade de dons, serviços, culturas, comungamos da mesma natureza humana e, pela fé, formamos um só compro, recebemos um só batismo, temos um mesmo Senhor e Mestre, somos vivificados e conduzidos pelo mesmo Espírito, que nos leva a clamar “Abba, ó Pai!”.

Segundo a Carta aos Romanos (Rm 8,14-17), a condição de filhos equipara-nos a Cristo. Somos “herdeiros de Deus e herdeiros com Cristo”, herdamos a vida eterna. O nosso Deus é o Deus da relação, apostado em vir ao encontro de todos os homens e mulheres a oferecer a vida, a integrá-los na sua família, a amá-los com amor de Pai, a torná-los herdeiros da vida plena e definitiva.

2021.05.30 – Louro de Carvalho

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