sábado, 15 de maio de 2021

A justiça não é para satisfação pessoal dos que nela trabalham

 

 

É uma das pertinentes asserções de António Joaquim Piçarra, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no passado dia 13 de maio aquando da inauguração da requalificação das instalações daquele Supremo Tribunal, que volta a funcionar na Praça do Comércio, após três anos de afastamento nas Escadinhas de São Crispim, n.º 7.

Considerando que terá sido este “o período mais alargado de funcionamento do Tribunal fora do seu espaço natural”, todavia, sustenta que “a instituição sempre funcionará, onde quer que se encontre”. Não obstante, não olvidou o simbolismo do local em que agora é reinstalado. A designação de Praça do Comércio sucede à de Terreiro do Paço, mas teimando esta em persistir. E o Terreiro do Paço, embora “apontado negativamente como representação do centralismo de poder”, concentra, “a nível imagético”, o essencial do Estado português, pois, tendo sido “lugar de residência real”, “foi e é lugar de edifícios de poder” e ali “permanece o referencial máximo do poder da capital” e está ali “o símbolo máximo do poder judicial em Portugal”.

Não sendo o STJ “o único tribunal supremo do país”, nem até “mais importante que os outros tribunais supremos”, no entanto, “ocupa este lugar histórico de representante da cúpula do poder judicial no espaço triangular do poder nesta praça”, sendo que, “nos projetos de reconstrução de Lisboa do Marquês de Pombal e de Manuel da Maia”, se previu “a instalação de um tribunal supremo nesta praça”, embora, na aproximação do último quartel do século XVIII, estivéssemos a muitas décadas do liberalismo e longe da criação do STJ. Porém, já vingavam os ideais iluministas da separação de poderes, que induziam a colocação do mais Alto tribunal do país “no centro do poder em Portugal”. E, observando ser este “um momento particularmente difícil das instituições da justiça”, sublinha que “estas instituições já passaram muitas tormentas” e que, não obstante, “seguem e permanecem como bastiões de estabilidade e de paz social”.

Depois, seleciona “duas circunstâncias que sobrelevam neste momento”.

Uma é a pandemia que nos afeta que “parece começar a dar-nos sinais visíveis de alívio e esperança na futura ultrapassagem” e reforçou o tolhimento duma instituição que estava “tolhida pelo afastamento do seu lugar de funcionamento habitual”. Todavia, o STJ “adaptou-se e acelerou um processo de transição digital que já iniciara”. Continuou “a fazer justiça e assegurar as suas atribuições legais e sociais”. E agora as pessoas precipitam-se “para estas renovadas instalações procurando vê-las, reconhecê-las e ocupá-las”, o que manifesta “a vontade, que é de todos, de retomar a sua vida normal e voltar aos lugares que se conhecem”.

Como a pandemia não passou e, “quando passar, “a vida será diferente”, havendo “um maior grau de trabalho à distância”, todavia, é essencial “haver pontos de referência”. E o STJ reinstalado na sede habitual permanece como “um ponto referencial da instituição e de toda a justiça portuguesa”, referência para quem ali trabalha e, sobretudo, para o país.

A seguir, evocou a sua condição de próximo septuagenário, cessando funções como magistrado judicial e deixando os atuais cargos, mas confessando a sua enorme satisfação pela possibilidade de “assistir a este regresso nos últimos dias como juiz no ativo” e Presidente do STJ.

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Aponta, pois, como novo símbolo o “renovado Supremo Tribunal de Justiça”, “uma renovada instituição” e “representação duma “justiça mais clara, mais aberta e mais transparente”. Com efeito, o STJ está doravante sediado em casa mais ampla, em resultado do protocolo celebrado pelo Conselheiro Noronha do Nascimento com o Município de Lisboa, que “permitiu a restituição do Arco da Rua Augusta à cidade” e confiou ao STJ “novos espaços do edificado”.
E segue a parte que reputo mais substanciosa para as questões que preocupam os cidadãos.

A remodelação das instalações do STJ reveste-se de eloquente significado “para toda a justiça portuguesa” e “para toda a comunidade nacional”.

O STJ fica preparado para o século XXI com a clareza que o branco das paredes simboliza, com a abertura de nova biblioteca, que será acessível ao público, com um novo espaço, a Galeria, onde o STJ estará permanentemente aberto à sociedade e à visita de quem a quiser fazer, e com o Salão Nobre, “agora liberto do peso carmim das alcatifas e dos cortinados, para permitir o arejamento da luz” – “pequenos sinais representativos de uma justiça mais arejada para o futuro”. Tudo isto, porque “estes são tempos em que o povo, que é o dono da justiça e desta Casa, quer vê-la e compreendê-la”, como são tempos em que terminou “uma justiça carregada, escura e opaca terminaram”.

E vêm, a seguir, asserções lapidares: “a justiça não é para satisfação pessoal dos que nela trabalham”, porque “a justiça e os lugares onde se realiza são da comunidade são do povo em nome de quem ela se realiza” e, porque “o povo quer uma justiça clara, transparente e que saiba comunicar, é isso que as instituições da justiça devem ter a capacidade de ser”.

Ora, do meu ponto de vista, com estas asserções colidem a justiça-espetáculo, a justiça como ajuste de contas com detentores do poder político e até com operadores da justiça, bem como como o suposto objetivo de agendamento político partidário da parte dalguns operadores judiciários, com a justiça demorada, excessivamente garantista e dilatória, com a justiça opaca, com a justiça na praça pública, com os megaprocessos, com a proliferação de crimes imputados aos arguidos e com a distonia, tantas vezes incompreensível, entre decisões judiciais.      

Mas o Conselheiro Piçarra prossegue nos ditames que devem enformar a justiça: “a matriz da integridade e da independência são, e têm que ser sempre, intocáveis”, pois “são o tronco central da justiça”. E adverte:

Integridade, transparência e comunicação não são valores incompatíveis. Muito pelo contrário. Essa ideia de que a justiça, quando se mostra, está a expor-se a um fogo que a pode consumir está completamente errada. Isso é ideia passadista e insustentável no mundo atual. A abertura da justiça não equivale a perder a pureza do caráter.”.

E advoga a capacidade de comunicação e a sujeição ao escrutínio:

Quem não quiser ou não souber comunicar e ser escrutinado publicamente será consumido na voragem dos acontecimentos de um mundo acelerado e tantas vezes irracional; e quem se fechar à sociedade arriscar-se-á a ser responsável, consciente ou inconsciente, por alterações que ponham verdadeiramente em causa a independência e a integridade da justiça.”.

Ora, se o povo é dono da justiça, como de todo o poder político, “quer saber e quer conhecer uma coisa que é sua”. Por isso, “a justiça tem que se dar a conhecer com transparência, elevação e profissionalismo”, bem com “com as suas forças e as suas fraquezas”. Assim, “a justiça tem que ser transparente e tem que saber comunicar”, sempre “de forma transparente, segura, serena e profissional”, mas “nunca por vaidade ou como forma de promoção de qualquer agente” e, muito menos, “de forma errática, emotiva ou irracional”, pois é isto que “o titular da sua legitimidade exige”, pelo que será isso o que “o povo deve ter”.

E, a completar esta reflexão sobre a justiça que os cidadãos exigem, o Presidente do STJ avança considerando que estes tempos são atribulados, em geral, para os poderes públicos e, em especial, para as instituições da justiça, em particular. Com efeito, “para o povo há só uma justiça”. Porém, frisa que a arquitetura constitucional do sistema de justiça dispõe de “duas ordens de tribunais e distintos órgãos de gestão e disciplina dos respetivos juízes”, sendo cada um “apenas responsável por aquilo que, dentro do sistema, pode controlar e gerir”. Por isso, apenas sente legitimidade para falar só dos tribunais judiciais. E explana:

A situação geral dos tribunais judiciais (23 comarcas, 5 Relações e STJ), mesmo com a situação de pandemia, é estável, o que pode ser verificado pelo Relatório Anual que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) entregou, no passado dia 11, à Assembleia da República, que demonstra que a ação disciplinar do CSM tem sido cada vez mais efetiva. Isto, apesar de a pandemia ter trazido atrasos e dificuldades, o que não obstou a que a situação se mantenha equilibrada, ainda que com debilidades em certas áreas, havendo “condições para uma recuperação rápida”.

Recorda a redução de pendências para níveis que não havia há 25 anos, mas aponta como o grande problema o da “comunicação e perceção”. Depois, há problemas diversos a que se vai obviando, ora com maior facilidade, ora e ali com menor facilidade.

No entanto, a grande dificuldade reside no facto de o sistema não conseguir tratar de forma eficiente realidades como “a gestão dos processos especialmente complexos, especialmente na área criminal”, o que revela “a grande impotência do sistema” e constitui “falta grave que põe em causa o funcionamento de toda a justiça, afeta seriamente a sua credibilidade e motiva a desconfiança dos cidadãos”, tal como põe em causa “o sistema democrático”.

Na verdade, como “o sistema de justiça é da comunidade”, não se trata de “um problema só dos tribunais”, mas de “um problema de soberania” e de “cidadania”. Por isso, “todos os órgãos de soberania, e não apenas os tribunais, têm que encontrar caminho para o resolver”.

Observa que uma parte muito substancial das dificuldades da justiça se associa ao fenómeno da corrupção. E, embora se trate de “conjuntos que não coincidem completamente”, têm, sem dúvida, “áreas de sobreposição importantes”. Assim, as dificuldades de gestão do sistema de justiça em processos especialmente complexos não se referem só aos processos de corrupção”, mas a “dificuldades de prevenir e combater a corrupção certamente que não se esgotam com as dificuldades do sistema judicial em lidar com o fenómeno”.

Com base na ideia de que “a justiça é sempre a ultima ratio”, sustenta que a justiça “está sempre no fim da linha”, pelo que “esperar que o fim da linha resolva todos os problemas é impor-lhe uma exigência muitas vezes irrealizável”. Não obstante, adverte que “é possível fazer muito mais e muito melhor”, isso “em toda a gestão pública e privada” e “também na justiça”.

Assim, preconiza a melhoria na legislação e na gestão e organização do sistema. Anota que, a nível legislativo, além de alterações no combate à corrupção, tem havido amplos debates públicos sobre a tipificação de novo ilícito criminal e a alteração na estrutura do TCIC (Tribunal Central de Instrução Criminal). E, apesar de não ser “este o momento nem o lugar para desenvolver estes temas” deixa o apelo a “uma análise profunda, estruturada e consequente” e o apelo “contra as soluções inconsequentes e erráticas”, uma vez que “o país não consente mais soluções esparsas ou miríficas” e exige “consistência na avaliação e coerência nas respostas”.

Refere ter procurado suscitar um debate sobre a estrutura da fase facultativa do processo penal e dos megaprocessos, crendo que, “enquanto essa questão não for olhada, não se darão passos firmes de melhoria na resolução do problema dos processos especialmente complexos”. E à eventual criação novos tipos de crime, mas continuando os processos a durar 10 ou 15 e mais anos, contrapõe a ideia de que aos cidadãos “pouco interessa o ilícito ou ilícitos em causa”, pois o que lhes interessa é “uma justiça capaz e célere a investigar e a julgar os factos ilícitos e, se comprovados, a punir os seus autores”, como o exige “a verdadeira tutela dos bens jurídicos”. Portanto, como avisa, “encontrar atalhos punitivos para contornar a dificuldade de perseguir os crimes efetivamente cometidos pode não ser bom caminho”. Assim, propõe como relevante “a discussão pública de qualquer futura incriminação” pelo “valor intrínseco e substantivo das propostas” e não como substituto da incapacidade do sistema em “investigar e julgar, em tempo útil, crimes mais complexos” ou como “fenómeno de diversão tática e populista de processos judiciais concretos”. Nestes termos, “o sistema de justiça exige reformas” a nível da lei penal e da organização judiciária”, sempre no sentido da capacidade resposta e “com salvaguarda da independência dos tribunais”, nunca no sentido de “os controlar ou enfraquecer” – enfim, reformas “baseadas num conhecimento profundo do sistema”.

É assim que dever ser feita “a reforma do Estado, em qualquer setor” e obviamente na justiça.

Quanto à existência de apenas dois juízes no TCIC e a imputação que alguns se faz ao CSM de não colocar nele mais juízes, contrapõe que “esse tribunal teve, no ano de 2020, menos de 20 instruções distribuídas”, como em anos anteriores e mesmo desde a sua criação, em 1999, com apenas um juiz, quando nenhum tribunal tem números tão reduzidos ou aproximados, nem os tribunais criminais que julgarão os processos que, em fase de instrução, correm no TCIC têm números próximos destes. Isto quer dizer que “a ideia empírica de somar mais juízes a esse tribunal não tem sustentação numa lógica de boa gestão do sistema” e que o Estado “não consente mais alterações e reformas irracionais” ou “mais desperdícios de meios”, mas exige “rigor e racionalidade na gestão dos meios disponíveis”. Porém, isto não contradiz a necessidade de “alterações e mudanças”, mas exige que “sejam devidamente pensadas e trabalhadas”, para “o reforço do sistema de justiça e da sua capacidade de resposta” e “não para resolver problemas individuais” ou “esconder idiossincrasias de algum agente”.

Por fim, em jeito de balanço, diz “poder afirmar que, apesar de todas as dificuldades, a independência e a integridade do sistema se mantêm inalteradas”; e assinala que, “ao nível da União Europeia, a questão da independência da justiça e do Estado de Direito está a ser levada cada vez mais a sério”, sendo claro sinal claro disso “a negociação das linhas financeiras europeias de apoio à economia em resposta à crise pandémica.

Aponta que o desrespeito pelo Estado de Direito fez perigar a aprovação dos fundos a nível europeu, o que mostra que os valores da democracia, do Estado de Direito e do respeito pela independência da justiça no processo de construção europeia estão a fazer o seu caminho” – garantia forte numa sociedade em que o económico tantas vezes domina o democrático.

E conclui referindo que “o sistema de justiça carece de reformas sustentadas em entendimentos políticos estáveis e alargados”, pois “os cidadãos têm direito”, não a “uma justiça popular” nem a “uma justiça populista”, mas a “uma justiça forte, íntegra e independente, uma justiça séria e elevada, uma justiça que dê a todos e a cada um aquilo a que tenham direito”.

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Penso que a justiça não está apenas no fim da linha, pronunciando, julgando e condenando ou absolvendo, mas também na prevenção, com sugestões às instâncias legislativas e produção de jurisprudência (justa e equilibrada). E há que entender a justiça como poder político e não à parte. Em todo o caso, as declarações do ainda Presidente do STJ e do CSM merecem acolhimento.

2021.05.15 – Louro de Carvalho

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