É uma das
pertinentes asserções de António Joaquim Piçarra, Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça (STJ), no passado
dia 13 de maio aquando da inauguração da requalificação
das instalações daquele Supremo Tribunal, que volta a funcionar na Praça do
Comércio, após três anos de afastamento nas Escadinhas de São Crispim, n.º 7.
Considerando
que terá sido este “o período mais alargado de funcionamento do Tribunal fora
do seu espaço natural”, todavia, sustenta que “a
instituição sempre funcionará, onde quer que se encontre”. Não obstante, não
olvidou o simbolismo do local em que agora é reinstalado. A designação de Praça
do Comércio sucede à de Terreiro do Paço, mas teimando esta em persistir. E o Terreiro
do Paço, embora “apontado negativamente como representação do centralismo de
poder”, concentra, “a nível imagético”, o essencial
do Estado português, pois, tendo sido “lugar de residência real”, “foi e é
lugar de edifícios de poder” e ali “permanece o referencial máximo do poder da capital” e
está ali “o símbolo máximo do poder judicial em Portugal”.
Não sendo o
STJ “o único tribunal supremo do país”, nem até “mais importante que os outros
tribunais supremos”, no entanto, “ocupa este lugar histórico de representante
da cúpula do poder judicial no espaço triangular do poder nesta praça”, sendo
que, “nos projetos de reconstrução de Lisboa do Marquês de Pombal e de Manuel
da Maia”, se previu “a instalação de um tribunal supremo nesta praça”, embora,
na aproximação do último quartel do século XVIII, estivéssemos a muitas décadas
do liberalismo e longe da criação do STJ. Porém, já vingavam os ideais iluministas
da separação de poderes, que induziam a colocação do mais Alto tribunal do país
“no centro do poder em Portugal”. E, observando ser este “um momento
particularmente difícil das instituições da justiça”, sublinha que “estas
instituições já passaram muitas tormentas” e que, não obstante, “seguem e
permanecem como bastiões de estabilidade e de paz social”.
Depois,
seleciona “duas circunstâncias que sobrelevam neste momento”.
Uma é a
pandemia que nos afeta que “parece começar a dar-nos sinais visíveis de alívio
e esperança na futura ultrapassagem” e reforçou o tolhimento duma instituição que
estava “tolhida pelo afastamento do seu lugar de funcionamento habitual”.
Todavia, o STJ “adaptou-se e acelerou um processo de transição digital que já
iniciara”. Continuou “a fazer justiça e assegurar as suas atribuições legais e
sociais”. E agora as pessoas precipitam-se “para estas renovadas instalações
procurando vê-las, reconhecê-las e ocupá-las”, o que manifesta “a vontade, que
é de todos, de retomar a sua vida normal e voltar aos lugares que se conhecem”.
Como a
pandemia não passou e, “quando passar, “a vida será diferente”, havendo “um maior
grau de trabalho à distância”, todavia, é essencial “haver pontos de referência”.
E o STJ reinstalado na sede habitual permanece como “um ponto referencial da
instituição e de toda a justiça portuguesa”, referência para quem ali trabalha
e, sobretudo, para o país.
A seguir,
evocou a sua condição de próximo septuagenário, cessando funções como magistrado
judicial e deixando os atuais cargos, mas confessando a sua enorme satisfação
pela possibilidade de “assistir a este regresso nos últimos dias como juiz no
ativo” e Presidente do STJ.
***
Aponta,
pois, como novo símbolo o “renovado Supremo Tribunal de Justiça”, “uma renovada
instituição” e “representação duma “justiça mais clara, mais aberta e mais
transparente”. Com efeito, o STJ está doravante sediado em casa mais ampla, em
resultado do protocolo celebrado pelo Conselheiro Noronha do Nascimento com o
Município de Lisboa, que “permitiu a restituição do Arco da Rua Augusta à cidade”
e confiou ao STJ “novos espaços do edificado”.
E segue a parte que reputo mais substanciosa para as questões que preocupam os
cidadãos.
A
remodelação das instalações do STJ reveste-se de eloquente significado “para
toda a justiça portuguesa” e “para toda a comunidade nacional”.
O STJ fica
preparado para o século XXI com a clareza que o branco das paredes simboliza,
com a abertura de nova biblioteca, que será acessível ao público, com um novo
espaço, a Galeria, onde o STJ estará permanentemente aberto à sociedade e à
visita de quem a quiser fazer, e com o Salão Nobre, “agora liberto do peso
carmim das alcatifas e dos cortinados, para permitir o arejamento da luz” – “pequenos
sinais representativos de uma justiça mais arejada para o futuro”. Tudo isto,
porque “estes são tempos em que o povo, que é o dono da justiça e desta Casa,
quer vê-la e compreendê-la”, como são tempos em que terminou “uma justiça carregada,
escura e opaca terminaram”.
E vêm, a
seguir, asserções lapidares: “a justiça não é para satisfação pessoal dos
que nela trabalham”, porque “a justiça e os lugares onde se realiza são
da comunidade são do povo em nome de quem ela se realiza” e, porque “o
povo quer uma justiça clara, transparente e que saiba comunicar, é isso que as
instituições da justiça devem ter a capacidade de ser”.
Ora, do meu
ponto de vista, com estas asserções colidem a justiça-espetáculo, a justiça
como ajuste de contas com detentores do poder político e até com operadores da
justiça, bem como como o suposto objetivo de agendamento político partidário da
parte dalguns operadores judiciários, com a justiça demorada, excessivamente
garantista e dilatória, com a justiça opaca, com a justiça na praça pública,
com os megaprocessos, com a proliferação de crimes imputados aos arguidos e com
a distonia, tantas vezes incompreensível, entre decisões judiciais.
Mas o
Conselheiro Piçarra prossegue nos ditames que devem enformar a justiça: “a
matriz da integridade e da independência são, e têm que ser sempre, intocáveis”,
pois “são o tronco central da justiça”. E adverte:
“Integridade, transparência e
comunicação não são valores incompatíveis. Muito pelo contrário. Essa ideia de
que a justiça, quando se mostra, está a expor-se a um fogo que a pode consumir
está completamente errada. Isso é ideia passadista e insustentável no mundo
atual. A abertura da justiça não equivale a perder a pureza do caráter.”.
E advoga a
capacidade de comunicação e a sujeição ao escrutínio:
“Quem não quiser ou não souber
comunicar e ser escrutinado publicamente será consumido na voragem dos
acontecimentos de um mundo acelerado e tantas vezes irracional; e quem se
fechar à sociedade arriscar-se-á a ser responsável, consciente ou inconsciente,
por alterações que ponham verdadeiramente em causa a independência e a
integridade da justiça.”.
Ora, se o
povo é dono da justiça, como de todo o poder político, “quer saber e quer
conhecer uma coisa que é sua”. Por isso, “a justiça tem que se dar a conhecer com
transparência, elevação e profissionalismo”, bem com “com as suas forças e as
suas fraquezas”. Assim, “a justiça tem que ser transparente e tem que saber
comunicar”, sempre “de forma transparente, segura, serena e profissional”, mas “nunca
por vaidade ou como forma de promoção de qualquer agente” e, muito menos, “de
forma errática, emotiva ou irracional”, pois é isto que “o titular da sua
legitimidade exige”, pelo que será isso o que “o povo deve ter”.
E, a
completar esta reflexão sobre a justiça que os cidadãos exigem, o Presidente do
STJ avança considerando que estes tempos são atribulados, em geral, para os
poderes públicos e, em especial, para as instituições da justiça, em
particular. Com efeito, “para o povo há só uma justiça”. Porém, frisa que a
arquitetura constitucional do sistema de justiça dispõe de “duas ordens de
tribunais e distintos órgãos de gestão e disciplina dos respetivos juízes”,
sendo cada um “apenas responsável por aquilo que, dentro do sistema, pode
controlar e gerir”. Por isso, apenas sente legitimidade para falar só dos tribunais
judiciais. E explana:
A situação
geral dos tribunais judiciais (23 comarcas, 5 Relações e STJ), mesmo com a situação de pandemia, é estável, o que
pode ser verificado pelo Relatório Anual que o Conselho Superior da
Magistratura (CSM) entregou, no passado dia 11, à
Assembleia da República, que demonstra que a ação disciplinar do CSM tem sido
cada vez mais efetiva. Isto, apesar de a pandemia ter trazido atrasos e
dificuldades, o que não obstou a que a situação se mantenha equilibrada, ainda
que com debilidades em certas áreas, havendo “condições para uma recuperação
rápida”.
Recorda a
redução de pendências para níveis que não havia há 25 anos, mas aponta como o
grande problema o da “comunicação e perceção”. Depois, há problemas diversos a
que se vai obviando, ora com maior facilidade, ora e ali com menor facilidade.
No entanto,
a grande dificuldade reside no facto de o sistema não conseguir tratar de forma
eficiente realidades como “a gestão dos processos especialmente complexos,
especialmente na área criminal”, o que revela “a grande impotência do sistema”
e constitui “falta grave que põe em causa o funcionamento de toda a justiça,
afeta seriamente a sua credibilidade e motiva a desconfiança dos cidadãos”, tal
como põe em causa “o sistema democrático”.
Na verdade,
como “o sistema de justiça é da comunidade”, não se trata de “um problema só
dos tribunais”, mas de “um problema de soberania” e de “cidadania”. Por isso, “todos
os órgãos de soberania, e não apenas os tribunais, têm que encontrar caminho
para o resolver”.
Observa que
uma parte muito substancial das dificuldades da justiça se associa ao fenómeno
da corrupção. E, embora se trate de “conjuntos que não coincidem completamente”,
têm, sem dúvida, “áreas de sobreposição importantes”. Assim, as dificuldades de
gestão do sistema de justiça em processos especialmente complexos não se referem
só aos processos de corrupção”, mas a “dificuldades de prevenir e combater a
corrupção certamente que não se esgotam com as dificuldades do sistema judicial
em lidar com o fenómeno”.
Com base na
ideia de que “a justiça é sempre a ultima
ratio”, sustenta que a justiça “está sempre no fim da linha”, pelo que “esperar
que o fim da linha resolva todos os problemas é impor-lhe uma exigência muitas
vezes irrealizável”. Não obstante, adverte que “é possível fazer muito mais e
muito melhor”, isso “em toda a gestão pública e privada” e “também na justiça”.
Assim,
preconiza a melhoria na legislação e na gestão e organização do sistema. Anota que,
a nível legislativo, além de alterações no combate à corrupção, tem havido
amplos debates públicos sobre a tipificação de novo ilícito criminal e a
alteração na estrutura do TCIC (Tribunal Central de Instrução Criminal). E, apesar de não ser “este o momento nem o lugar
para desenvolver estes temas” deixa o apelo a “uma análise profunda,
estruturada e consequente” e o apelo “contra as soluções inconsequentes e
erráticas”, uma vez que “o país não consente mais soluções esparsas ou
miríficas” e exige “consistência na avaliação e coerência nas respostas”.
Refere ter
procurado suscitar um debate sobre a estrutura da fase facultativa do processo
penal e dos megaprocessos, crendo que, “enquanto essa questão não for olhada,
não se darão passos firmes de melhoria na resolução do problema dos processos
especialmente complexos”. E à eventual criação novos tipos de crime, mas continuando
os processos a durar 10 ou 15 e mais anos, contrapõe a ideia de que aos
cidadãos “pouco interessa o ilícito ou ilícitos em causa”, pois o que lhes
interessa é “uma justiça capaz e célere a investigar e a julgar os factos
ilícitos e, se comprovados, a punir os seus autores”, como o exige “a verdadeira
tutela dos bens jurídicos”. Portanto, como avisa, “encontrar atalhos punitivos
para contornar a dificuldade de perseguir os crimes efetivamente cometidos pode
não ser bom caminho”. Assim, propõe como relevante “a discussão pública de
qualquer futura incriminação” pelo “valor intrínseco e substantivo das
propostas” e não como substituto da incapacidade do sistema em “investigar e
julgar, em tempo útil, crimes mais complexos” ou como “fenómeno de diversão
tática e populista de processos judiciais concretos”. Nestes termos, “o sistema
de justiça exige reformas” a nível da lei penal e da organização judiciária”,
sempre no sentido da capacidade resposta e “com salvaguarda da independência
dos tribunais”, nunca no sentido de “os controlar ou enfraquecer” – enfim,
reformas “baseadas num conhecimento profundo do sistema”.
É assim que
dever ser feita “a reforma do Estado, em qualquer setor” e obviamente na
justiça.
Quanto à existência
de apenas dois juízes no TCIC e a imputação que alguns se faz ao CSM de não
colocar nele mais juízes, contrapõe que “esse tribunal teve, no ano de 2020,
menos de 20 instruções distribuídas”, como em anos anteriores e mesmo desde a
sua criação, em 1999, com apenas um juiz, quando nenhum tribunal tem números
tão reduzidos ou aproximados, nem os tribunais criminais que julgarão os processos
que, em fase de instrução, correm no TCIC têm números próximos destes. Isto quer
dizer que “a ideia empírica de somar mais juízes a esse tribunal não tem
sustentação numa lógica de boa gestão do sistema” e que o Estado “não consente
mais alterações e reformas irracionais” ou “mais desperdícios de meios”, mas
exige “rigor e racionalidade na gestão dos meios disponíveis”. Porém, isto não
contradiz a necessidade de “alterações e mudanças”, mas exige que “sejam
devidamente pensadas e trabalhadas”, para “o reforço do sistema de justiça e da
sua capacidade de resposta” e “não para resolver problemas individuais” ou “esconder
idiossincrasias de algum agente”.
Por fim, em
jeito de balanço, diz “poder afirmar que, apesar de todas as dificuldades, a
independência e a integridade do sistema se mantêm inalteradas”; e assinala que,
“ao nível da União Europeia, a questão da independência da justiça e do Estado
de Direito está a ser levada cada vez mais a sério”, sendo claro sinal claro
disso “a negociação das linhas financeiras europeias de apoio à economia em
resposta à crise pandémica.
Aponta que o
desrespeito pelo Estado de Direito fez perigar a aprovação dos fundos a nível
europeu, o que mostra que os valores da democracia, do Estado de Direito e do
respeito pela independência da justiça no processo de construção europeia estão
a fazer o seu caminho” – garantia forte numa sociedade em que o económico tantas
vezes domina o democrático.
E conclui
referindo que “o sistema de justiça carece de reformas sustentadas em
entendimentos políticos estáveis e alargados”, pois “os cidadãos têm direito”, não
a “uma justiça popular” nem a “uma justiça populista”, mas a “uma justiça forte,
íntegra e independente, uma justiça séria e elevada, uma justiça que dê a todos
e a cada um aquilo a que tenham direito”.
***
Penso que a
justiça não está apenas no fim da linha, pronunciando, julgando e condenando ou
absolvendo, mas também na prevenção, com sugestões às instâncias legislativas e
produção de jurisprudência (justa e equilibrada). E há que entender a justiça como poder político e não à parte. Em todo o
caso, as declarações do ainda Presidente do STJ e do CSM merecem acolhimento.
2021.05.15 – Louro de Carvalho
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