quinta-feira, 13 de maio de 2021

Um mundo que está às escuras, que sofre, mas que sonha

 

Assim caraterizou o mundo o Cardeal Tolentino de Mendonça, que, tendo chegado a pé à Cova da Iria, presidiu à peregrinação aniversária internacional destes 12 e 13 de maio, sob o tema “Louvai o Senhor, que levanta os fracos”, celebrada com um máximo de 7.500 peregrinos por força das restrições ditadas pelo contexto da pandemia.

Na conferência de imprensa em que intervieram os responsáveis máximos pela Peregrinação, Tolentino Mendonça vincou a importância dos Santuários – sublinhando a força de Fátima – como lugares de encontro com a dimensão espiritual e com Deus, num âmbito que julga essencial para a reconstrução do mundo no pós-pandemia.

Ao revelar ter cumprido, na manhã do dia 12, parte do caminho a pé até à Cova da Iria e porfiando a sua ligação e proximidade a Fátima, disse o responsável pelo Arquivo Apostólico do Vaticano e Bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana:

Como português e católico, Fátima tem um significado profundo, que me deixa cheio de alegria poder participar com todos os peregrinos nestas jornadas intensas de oração e espiritualidade”.

Ao frisar o “papel fundamental que os Santuários desempenham” no mundo atual, perspetivou Fátima como lugar onde se “faz uma síntese entre a religiosidade tradicional e a modernidade, por ser, para muitos, o lugar de um primeiro contacto com a fé cristã e com a experiência da peregrinação”. E observou:

Mesmo num período de pandemia, os peregrinos abrem o seu coração à experiência espiritual da peregrinação e de Deus. Fátima oferece essa possibilidade de encontro porque é uma grande praça que não tem portas e onde todos podem entrar. Essa força de Fátima é algo que, neste tempo de pandemia, precisamos de redescobrir.”.

Dizendo trazer uma reflexão sobre os desafios do “percurso que o mundo está a viver” e que permite “repensar os instrumentos de reconstrução dum mundo que vive uma crise poliédrica”, para “salvaguardar a esperança” a partir do foco na “dimensão da espiritualidade”, sublinhou:

A dimensão espiritual é uma dimensão chave de reconstrução. Por isso, Fátima, a Igreja, as religiões são aliadas do reencontro do Homem com a esperança. (…) A pandemia pode chegar e ir embora sem modificar o nosso coração… E toda esta dor pode ter servido para pouco. É preciso que possamos partir deste momento para sociedades e modelos de vida eticamente qualificados, mais humanos, fraternos e espirituais.”.

E considerou o “património de perguntas” que deriva do existencialismo humano como “uma dádiva que devemos colocar no alforge como bússola para o futuro que aí vem”.

Por seu turno, o Cardeal António Marto começou por se congratular com “a luz ao fundo do túnel” que representa o facto de se “estar a caminhar a passos largos para a imunidade de grupo”. E reiterou a importância dum acesso generalizado à vacina, que “deveria considerar-se um bem comum universal”, com o cuidado de esta não se “transformar numa arma geopolítica”.

Falando da crise sanitária e das limitações que impõe à vida das pessoas, agradeceu o “comportamento exemplar dos peregrinos de Fátima” e vincou o cuidado dos cristãos na celebração da fé, em atitude que elogiou como grande contributo para o controlo da pandemia.

Sobre as consequências da pandemia na vida da Igreja em Portugal, com o encerramento dos espaços de culto, o prelado de Leiria-Fátima apontou a resiliência da Igreja, que tem alimentado os fiéis pela oração, pela Palavra, pelas celebrações transmitidas e vem assistindo os pobres e mais necessitados através de redes de solidariedade. E observou:

Neste momento histórico, o amor fraterno deve fazer a diferença na nossa vida e na caminhada das nossas comunidades, manifestando-o através da entreajuda e do cuidado recíproco”.

Estendendo a análise à crise económica e social subjacente à crise sanitária gerada pela pandemia, o Cardeal Marto advertiu para a “exigência de se ter uma atenção própria, que respeite a dignidade das pessoas e o direito a um trabalho digno”, lembrando o apelo recente do Papa para a promoção duma nova regulamentação financeira mais justa, inclusiva e sustentável.

Lembrou ainda a comemoração do 40.º aniversário do atentado à vida do Papa São João Paulo II e o 75.º aniversário da coroação da Imagem de Nossa Senhora, venerada na Capelinha das Aparições, lembrando, a propósito desta efeméride, a insistência “profética” do Papa Pio XII em que a Imagem fosse coroada com o título de Rainha da Paz e do mundo, “sublinhando o núcleo central e a dimensão universal da Mensagem de Fátima”.

Sobre o desejo de Francisco vir a Fátima aquando da Jornada Mundial da Juventude de 2023, revelado pelo próprio ao cardeal, em audiência privada, confessou:

O Santo Padre disse-me textualmente que não faria sentido nenhum vir a Portugal sem ir a Fátima… ‘Fátima é a alma de Portugal’, disse-me. (…) A vinda do Papa enfatiza a importância deste lugar, da mensagem de Fátima; renova a ligação forte entre o Papa Francisco e Fátima; e sublinha a importância de Fátima para a juventude, o que implica o compromisso do Santuário na preparação e acompanhamento da Jornada Mundial da Juventude.”.

E o reitor do Santuário de Fátima afirmou a intenção do Santuário de, à luz do tema pastoral definido para este ano, dedicar, com ações concretas, “especial atenção à questão da fragilidade humana, à luz da fé cristã e da mensagem de Fátima”, designadamente: no acolhimento (a retomar) dos peregrinos em situação de fragilidade ou sofrimento, em particular os doentes e os idosos, que tiveram sempre lugar muito especial no Santuário; no arranque do centro de escuta e de atendimento, para as pessoas que precisam de apoio espiritual para enfrentarem as situações da vida; e na atenção aos jovens, “que se contam também entre os mais frágeis, não já por motivos de saúde, mas de condições sociais e até de falta de horizontes e de esperança.

Ao evocar as consequências sociais do agravamento da situação económica, o Padre Cabecinhas revelou “o aumento exponencial, a partir de meados de 2020, da procura de ajuda junto do Serviço de Ação Social do Santuário”, pedidos a que a instituição tem respondido através de: apoios à saúde (consultas, medicação, ajudas técnicas, etc.); distribuição de alimentos, vestuário, roupa de casa e calçado; e ajuda no pagamento da renda de casa/quarto, faturas de água, eletricidade e gás e documentação de legalização junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

E terminou lembrando a participação do Santuário na maratona de oração pelo fim da pandemia que o Papa lançou a 30 santuários do mundo para o mês de maio e que se concretizaria (como aliás se concretizou), na Cova da Iria, às 17 horas deste dia 13, na Capelinha das Aparições, com a recitação do Rosário sob a presidência do Cardeal António Marto, com uma intenção especial pelos reclusos que se encontram detidos nas prisões de todo o mundo.

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Na Celebração da Palavra da noite do dia 12, o Presidente da Peregrinação exortou os peregrinos a não transformarem a crise pandémica numa crise de esperança, mas “que todo este sofrimento nos torne melhores”, 

Como observou, a pandemia tem disseminado sofrimento, pois “condicionou sociabilidades, isolou-nos uns dos outros, acentuou solidões”, ativou outras crises “no campo social, na precarização do trabalho, no agravamento das dificuldades económicas, na pobreza que cresce sobretudo os segmentos considerados mais frágeis, na debilitação do campo escolar, na diminuição de presenças nas comunidades cristãs  e na incerteza que pesa sobre a vida a tantos”.

Acentuando que “de maio passado a este vivemos um ano difícil”, especificou:

Experimentamos uma vulnerabilidade que desconhecíamos. A pandemia em curso ceifou vidas e alastrou lutos. De repente, sentimo-nos reportados à época dos santos pastorinhos Francisco e Jacinta Marto, quando a pandemia da febre espanhola fazia milhões de vítimas.”.

E, dirigiu-se à “Mãe da consolação”, a quem “colocamos os nossos corações nesta hora”:

Em especial Te rogamos, Senhora de Fátima, que a crise que vivemos não se torne numa crise da esperança. (…) Queremos hoje pedir, Senhora de Fátima, que ilumines a dor de todos, sem fronteiras nem distinções, que ilumines a dor de próximos e distantes, de crentes e não crentes, como se fosse uma só. Que escutes no silêncio desta noite a fadiga e o esforço, a solidão e as lágrimas, o cansaço e as necessidades de todos. Que veles pela grande família humana ferida. E nos mobilizes a todos para o desafio urgente de consolar, de cuidar e de reconstruir. (…) Tu, Mãe da Esperança, fortalece a nossa esperança. Tu que em momentos tão tormentosos da história do século XX foste um pilar de Esperança, ajuda-nos a atravessar este século XXI movidos pela esperança. (…) Lembra-Te, Senhora de Fátima, de que hoje especialmente precisamos de encontrar, no teu Imaculado Coração, refúgio e caminho!”.

Salientou que a esperança é necessária “para olhar para diante, para ganhar confiança e repartir”; e que precisamos dela “para transformar os obstáculos em caminhos e os caminhos em novas oportunidades”, “para nos unirmos mais, para construirmos sociedades eticamente qualificadas, sociedades que concretizem a justiça social e a fraternidade entre todos os homens”. E, por outro lado, destacou que, para lá do sofrimento, há “histórias para contar e agradecer”, entre elas “histórias de amor, de reencontro, de interajuda e solidariedade e essas histórias constituem um património que não podemos esquecer”.

Deixou, também uma palavra para a família, que “foi colocada à prova”, mas que, para muitos, esta “foi uma oportunidade para redescobrir o que significa estar em família e o tesouro humano insubstituível que a família representa”. E garantiu:

Não esquecemos o testemunho de quantos colocaram o bem dos outros acima do seu próprio bem. A generosidade de tantos que deram um passo em frente quando era mais cómodo permanecer no seu lugar. É verdade: de quantas histórias de amor cada um de nós tem sido testemunha!”.

E, concluindo que, apesar das dificuldades, estes meses “não foram em vão”, já que “a turbulência da pandemia também nos desinstalou e nos ajudou a identificar o essencial com mais clareza”, rezou:

Queremos confiar-Te, Mãe de Jesus e nossa Mãe, o caminho histórico e interior que estamos a percorrer e pedir-Te que esta dor sirva para alguma coisa, que todo este sofrimento nos torne melhores: mais espirituais, mais humanos e mais fraternos”.

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Na homilia da Missa de encerramento da Peregrinação, o Cardeal Dom José Tolentino de Mendonça convidou os peregrinos ao sonho por uma nova humanidade a partir da mensagem de Fátima, pois em Fátima ilumina-se um mundo que está às escuras, que sofre, mas que sonha, visto que Fátima é “uma alavanca da nossa humanidade, um laboratório sem portas nem muros, sempre aberto para a esperança”. E o cardeal português residente no Vaticano orou:

“Obrigado, Senhora, por fazeres deste lugar uma alavanca da nossa humanidade. Um laboratório sem portas nem muros, sempre aberto para a esperança! Em Ti, louvamos o Senhor que nos reergue de todas as fraquezas”.

Diante dum santuário cheio, com a lotação  máxima definida pelas autoridades sanitárias, e ante milhares de peregrinos que seguiram em direto as celebrações pelos meios de comunicação social e digital, Tolentino de Mendonça refletiu sobre a mensagem de Fátima  e o sentido da peregrinação à Cova da Iria. E referiu:

Muitos olhando à superfície o Santuário, veem apenas a dramática expressão de tantas lágrimas, demandas e promessas. Mas os peregrinos de Fátima experimentam que é muito mais do que isso. Aquilo que experimentamos é que chegamos aqui inquietos, vazios, divididos, irreconciliados ou sedentos, que chegamos aqui aos trambolhões como o filho pródigo, e que Maria realiza em nós – com que misericórdia, com que inesquecível doçura – o mandato de amor que recebeu de Jesus: ‘Mulher, eis aí o teu filho’, ‘eis aí os teus filhos’.”.

Reiterou que “a Fátima, nós peregrinos, chegamos sempre de mãos vazias”, mas que “de Fátima levamos, acordado dentro de nós, um sonho”, pois “Fátima ensina, assim, como se ilumina um mundo que está às escuras”. E voltou a falar de Fátima como um ‘lugar’ donde se pode iniciar um “novo começo”, que se impõe no pós-pandemia, e desafiou os presentes a transformar “a crise em oportunidade” e “a calamidade em esperança”, uma vez que “o amor é o mais verdadeiro, o mais profético, o mais necessário desconfinamento”.

Sublinhando as restrições ainda impostas pela pandemia, o cardeal referiu que a fé transforma a experiência da crise em “ocasião para relançar a vida”. E indicou:

Olhando para a cruz poderíamos pensar que Jesus estava brutalmente confinado. E estava. Mas o verdadeiro desconfinamento é aquele que o amor opera em nós.”.

Este cardeal da Cúria Romana, íntimo colaborador do Papa,  evocou a experiência de sofrimento de Jesus, que “ensina a transformar as crises em laboratórios de esperança” e defendeu a necessidade de um “relançamento espiritual” para o pós-pandemia, que ultrapasse a “expressão material da vida”, pois, “numa hora de encruzilhada da história como esta que vivemos, não podemos fazer coincidir o relançamento da esperança unicamente com o cuidado pela expressão material da vida”. Depois, explicitou:

Sem dúvida que é urgente garantir o pão e esse trabalho exigente – fundamentalmente de reconstrução económica – deve unir e mobilizar as nossas sociedades. Mas as nossas sociedades precisam também de um relançamento espiritual. Sem o pão não vivemos, mas não vivemos só de pão. Os maiores momentos de crise foram superados infundindo uma alma nova, propondo caminhos de transformação interior e de reconstrução espiritual da nossa vida comum.”.

O cardeal, considerando que o mundo enfrenta “um imenso desafio a renascer”, por causa da crise provocada pela covid-19, disse:

Este é chamado a ser também um momento de revisão crítica do caminho que realizámos até aqui, de fazer uma espécie de balanço interior que avalie os nossos estilos de vida. (…) Não basta voltarmos exatamente ao que éramos antes: é preciso que nos tornemos melhores. É preciso um suplemento de alma. É preciso que desconfinemos o nosso coração.”.

O arquivista e bibliotecário da Santa Sé convidou todos a um “balanço interior” sobre estilos de vida e modelos de desenvolvimento, transformando-os no sentido de “uma verdadeira e criativa hospitalidade da vida”. E, citando o pensamento do Papa Francisco, desafiou:

Não tenhamos dúvidas: a reconstrução pós-pandemia depende do modo como encararmos a fraternidade”.

Dom José Tolentino Mendonça falou em particular aos jovens portugueses que se preparam para acolher, no verão de 2023, a Jornada Mundial da Juventude, pedindo que “em vez de ter medo, tenham sonhos”. Efetivamente, como declarou, “o mundo fatigado por esta travessia pandémica que ainda dura, e que pede a cada um de nós vigilância e responsabilidade, não tem apenas fome e sede de normalidade: precisa de novas visões, de outras gramáticas, precisa de que arrisquemos ter sonhos”.

O presidente da celebração evocou ainda o 40.º aniversário do atentado contra São João Paulo II, na Praça de São Pedro, e a primeira viagem do Papa polaco a Fátima, em maio de 1982, para “agradecer à Divina Providência, neste lugar, que a Mãe de Deus parece ter escolhido de modo tão particular”, por lhe ter poupado a vida. Aliás, o cálice utilizado nesta celebração foi oferta de João Paulo II no 10.º aniversário do atentado, no âmbito da 2.ª viagem à Cova da Iria.

***

E o Santuário continua no seu esforço de cumprimento das missões e funções típicas dum santuário e dum santuário mariano numa linha de espiritualidade, religiosidade, evangelização, ação pastoral, social e cultural. Que este dinamismo integral aproveite ao maior número possível de pessoas e comunidades para bem de todos e transformação do mundo.

2021.05.13 – Louro de Carvalho  

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