segunda-feira, 31 de maio de 2021

Incoerência, défice de comunicação, heterofagia, oportunismo

 

O Governo, as entidades que o pressionam e as que têm o dever cívico e institucional de com ele cooperarem erraram na gestão do evento da final da Champions League no Porto. Com efeito, se não pôde e não pode haver público nos estádios, como não o houve nas disputas do Campeonato Nacional e na final da Taça de Portugal, é legítimo perguntar como foi possível admiti-lo agora no Dragão para ingleses e advertir que ainda não se vislumbra o tempo em que o público preencherá o espaço dos estádios para ver e apoiar as partidas de futebol.

Se temos de aprender com aquilo que corre mal, há mesmo que aprender e não remeter essa aprendizagem para ulteriores ocasiões, em que a pressão pode não a permitir, ou chutá-la para as calendas gregas.  

O ano passado, com a região de Lisboa e Vale do Tejo em situação técnica de calamidade por via da covi-19, realizou-se também, mas em Lisboa, a final da Champions League, previamente anunciada com pompa e circunstância pelo supremo garante da independência nacional, da unidade do Estado e do regular funcionamento das instituições democráticas, a partir da sua residência oficial – ele que agora fustigou o Governo pela deficiente gestão do evento, alegando que, tendo sido prometido que os adeptos ingleses viriam em bolha, tal não aconteceu, porque ou se vem em bolha ou não se vem em bolha.

Na verdade, a Ministra da Presidência garantira que os adeptos ingleses viriam em bolha, ou seja, viriam somente para assistir ao espetáculo e iriam embora de imediato, sem terem contacto com o resto da população (esqueceu-se de que não renunciariam ao contacto com a cerveja, quando os portugueses não podem consumir álcool na via pública…), o que não sucedeu, já que, ao invés, se dentro do estádio não terá havido problemas, o mesmo não aconteceu nas imediações, até porque a especulação encareceu excessivamente muitos dos bilhetes pela venda subterrânea dos mesmos, e muitas ruas da baixa portuense, desprovidas temporariamente de residentes, se polvilharam de estrangeiros. Se tinham vindo para o Algarve e demais sítios… Só vieram e foram em bolha os jogadores e dirigentes desportivos, que não os turistas!

Quer dizer, isto é défice de comunicação, mas não só. Há, desde logo, incoerência e duplicidade de atuação face aos critérios que pautam a manutenção das normas de restrição que o Governo mantém, para já, no seguimento do aconselhamento dos especialistas, que entendem que os critérios precisam de ser revistos mais tarde, por exemplo introduzindo o fator de gravidade tendo até aconselhado mais etapas do desconfinamento, o que o Governo prometeu seguir. Depois, não se percebe como, se no interior do estádio não houve problemas, como é que as forças de segurança não conseguiram travar as aglomerações de pessoas nas imediações e nas ruas. Foi a direção nacional da PSP que o proibiu, o comando metropolitano que esteve menos atento ou, mais uma vez, foi obra da suposta fragilidade de Cabrita, apontado como responsável por tudo quanto corre mal no país, talvez com a exceção dos fogos florestais de 2017, porque não era ainda o responsável pela tutela da Proteção Civil?

O Presidente da Câmara do Porto e o Presidente do FCP, que dantes ficaram orgulhosos porque, o ano passado, o clube portuense do Dragão não se espalhou nas ruas da covid-19 como desta vez o SCP, assestaram as baterias contra o Governo e a DGS pela permissividade para uns e o rigor para outros. E Pinto da Costa quer a demissão da responsável pela DGS, de governantes e o próprio Primeiro-Ministro (caso este não seja capaz de provocar as demissões). Obviamente, além da incoerência, há aqui insciência ou défice de comunicação: a Ministra da Presidência ou não sabia o que era vir e ir em bolha ou não o explicou como não o acautelou; e, até agora, todos os putativos responsáveis – políticos (governantes: Primeiro-Ministro, MAI, Ministra da Saúde, Secretário de Estado do Desporto) ou técnicos (PSP, SEF, FPF) – têm fugido a dar atempadamente respostas. Veremos se as respostas que estão a ser vertidas perante o Parlamento serão satisfatórias ou se apenas denotam o conveniente oportunismo face à força do desporto internacional e ao advento de turistas provenientes do Reino Unido, quiçá no quadro da velha aliança, em vez da firmeza na manutenção das condições de promoção da saúde pública em tempo de pandemia que ainda não abandonou o país, sendo que os dados mais recentes apontam para algum recrudescimento.

E, se é compreensível o oportunismo dos residentes no Porto em deixarem a cidade no passado fim de semana, já não o será o daqueles que exigem a abertura imediata dos estádios aos espectadores desportivos, o dos pregoeiros do deslaçamento das medidas de contenção no acesso às praias e permanência nas mesmas ou o dos preconizadores dos festejos dos Santos Populares (o Porto já está a começar com a disseminação dos odores joaninos) tudo ao molho e fé em Deus, pois se continuam a ser vedados os casamentos, batizados e comunhões com mais de 50% dos participantes, os grandes ajuntamentos peregrinacionais e processionais, que são muito menos infetocontagiosos que os ajuntamentos em regime anárquico…

Esta gritaria do Chefe de Estado sobre a pretensa revisão dos critérios da matriz da contenção da pandemia versus desconfinamento (porfiando respeitar os especialistas, mas lançando dúvidas porque o não seguiram), os remoques ao Governo pela bolha / não bolha do Dragão ou bolha que rebentou (aliás, toda a sua loquaz intervenção sobre tudo e mais alguma coisa, a tempo e fora de tempo), as acusações personalizantes das oposições políticas aos gestores técnicos da coisa pública (que devia ser mais direcionada aos decisores políticos) e a reivindicação intempestiva da volta imediata ao antigo normal nas ruas e estádios e da “democratização” das praias, tudo poderão ser indicadores duma certa heterofagia social que dê azo a um aproveitamento indevido e oportunista de forças políticas marcadas exteriormente por um populismo-nacionalismo desviante e interiormente prisioneiras duma nostalgia restauradora de passados indesejáveis para o comum dos cidadãos. A presença de Matteo Salvini em Portugal a mostrar a intenção de confederar a direita e os conservadores na Europa é de duvidoso augúrio como o é o facto de um determinado partido português reivindicar num futuro governo de coligação as pastas da Administração Interna, da Defesa, da Justiça e a da Segurança Social. Esta reivindicação, a ser concretizada no futuro, é um figo para quem pretende a exclusão de imigrantes e o banimento de determinadas etnias, a manutenção da paz e da segurança a qualquer preço, a multiplicação da tipificação de delitos, a criação de novas molduras penais e o agravamento de outras, o atropelamento do direito processual, os benefícios sociais alegadamente mal atribuídos e a subversão das normas constitucionais.

Passo ao lado a suposta discrepância comunicacional entre o Secretário de Estado da Saúde, que falava da aceleração da vacinação na região de Lisboa e Vale do Tejo, alegadamente por via do agravamento da situação pandémica, e o Primeiro-Ministro, que, em concordante resposta a Rui Moreira, do Porto, disse que a vacinação é feita equitativamente em todo o país. Como é sabido, a isto, o coordenador da ‘Task Force’, esclarecendo que a vacinação era equitativa para todas as regiões, explanando que a coordenação monitoriza o avanço da vacinação em cada região segundo os dados percentuais e que vai acelerando conforme verifica o atraso, aceleração que já tinha acontecido no Algarve segundo o critério percentual, o que acontecerá sempre de acordo com os parâmetros etários. Porém, no dia 28, no Infarmed, o Vice-Almirante Gouveia e Melo precisou que era necessário cuidar das pessoas idosas ainda não vacinadas – que vivem sós, acamadas ou em sítios inóspitos. São poucas, mas são pessoas e não podem ficar para trás.

Ora o episódio da suposta divergência não é injustiça, nem incoerência, nem mesmo défice de comunicação. É antes a ânsia do protagonismo da palavra. Efetivamente, se o renomado Vice-Almirante está a conduzir com proficiência o trabalho que lhe foi confiado, o que é verdade, embora com as pequenas exceções nas grandes tarefas, porque vêm as demais entidades bedelhar numa tarefa cujas competências delegaram? Se dúvidas tiverem, que lhas exponham no local próprio para tal debate, pois não se podem esquecer de que em tempo de pré-campanha eleitoral autárquica (mais que em outras) a tentação é de valer tudo ou quase tudo.

E as oposições, que têm tantas matérias em que podem e devem criticar o Governo, perdem-se em minudências… E o Governo agradece em silêncio. É pena se não têm projetos alternativos para o país, que parece estar a marcar passo na economia, na educação e na saúde, apesar de haver alguns indicadores de melhoria, sendo que não se passa do poucochinho que o Primeiro-Ministro criticava ao seu predecessor na liderança do partido.

É de esperar que a verborreia emergente do cansaço da crise sanitária e da crise económica e social não gere autofagia dentro de cada instituição, nos partidos e no todo nacional. Facilmente a heterofagia por via da exaustão gera autofagia disruptiva.

Enfim, quem não tem telhados de vidro!

2021,05.31 – Louro de Carvalho

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