quarta-feira, 30 de julho de 2014

Postura popularucha de altos dirigentes políticos


O 30 de julho fica marcado pela conclusão de um acordo de parceria da União Europeia com Portugal, que envolve uma importância de quase vinte e seis mil milhões de euros a colocar à disposição do país.
O Presidente da Comissão Europeia Durão Barroso congratulou-se com o acordo de parceria e saúda-o. Por seu turno, o Primeiro-Ministro português sublinhou a pertinência desta parceria declarando que ela será fundamental para termos “uma economia mais competitiva e geradora de emprego”.
Na sua intervenção, em que afirmou que este dia era muito importante para Portugal, Passos Coelho destacou a posição do PS ao longo de todo o processo de negociação do acordo de entendimento, ressalvando que, apesar de não ter havido um entendimento formal com o maior partido da oposição, “houve um acompanhamento muito próximo” por parte dos socialistas. Enfatizou mesmo que “foi possível no fim da negociação praticamente acolher e salvaguardar os principais aspetos críticos que foram ressalvados pela posição do PS”, dando relevo ao facto de o maior partido da oposição ter estado alinhado com o Governo no “essencial dos objetivos” do acordo, já que o seu quadro de vigência é de sete anos, ou seja, “está para além do mandato do atual Governo”.
Poucas vezes o Primeiro-Ministro de Portugal terá assumido uma postura de tal equilíbrio e humildade na apreciação de um facto político de interesse nacional, sobretudo ao tratar-se de um “instrumento decisivo” para o crescimento económico e a criação de emprego nos próximos sete anos. Efetivamente, salienta a importância do acordo, a relevância da Europa e a posição de moderada, ainda que discreta, colaboração do partido socialista, um partido de ambição governativa e notória experiência nesse âmbito. Longe parecem andar as suas tiradas popularuchas do rumo certo, do apelo a que não sejamos piegas, que emigremos ou “que se lixem as eleições”. Queira Deus que o hierarca Pedro tenha encarrilado em definitivo numa postura compatível com o estatuto de estadista, que ele tem, queira ou não queira, queiramos ou não queiramos.
Já os comentários de Durão Barroso fazem lembrar outros momentos em que o dirigente, na ocupação de altos cargos, roçou as malhas da chocarrice e do nível demasiado popularucho da linguagem, que não sei se quadra ao estatuto de estadista que foi e de superestadista que ainda é. Quem não se lembra do clamor barrosista na Assembleia da República nos alvores da sua governação em 2002, “o país está de tanga!”? E que dizer ainda hoje das palavras de Durão Barroso, como Presidente da Comissão Europeia, e as de Sócrates, então Primeiro-Ministro de Portugal e coordenador da presidência rotativa da UE, que acompanharam o abraço que eles trocaram na congratulação festiva do Tratado de Lisboa – “Bonito!” (Durão Barroso) e “Porreiro, Pá!” (Sócrates)? Qual deles o mais popularucho?
Mas podemos recordar outros momentos similares, como os de: Miguel Relvas, ministro, a tentar cantar “Grândola Vila Morena” com manifestantes que o contestavam; Carlos Borrego, ministro, a contar a “anedota do alumínio” sobre os hemofílicos do Hospital de Évora; Dias Loureiro, ministro, a confessar no Parlamento que abandonara o hemiciclo para fumar um cigarro porque estava farto de ouvir um determinado senhor deputado; Cavaco Silva, Primeiro-Ministro, a pedir que o deixassem trabalhar ou, já Presidente, a dizer que as vacas dos Açores riam e as de uma herdade no Continente estavam felizes durante a ordenha mecânica; Mário Soares, Presidente, a mandar a um guarda-republicano que desaparecesse; e Sampaio, ex-Presidente, a explicar que tinha regressado a esta cidadania banal, ele que, quando Presidente, depois de anunciar que ia dissolver a Assembleia da República, bradava que nada estava dissolvido, que estava tudo a funcionar.
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Durão Barroso, a comentar o acordo de parceria, explicitava que os 26 mil milhões de euros que serão colocados à disposição do país são “uma pipa de massa”. Esta denominação popularucha raia mesmo uma boçalidade que os portugueses não esperavam do português que ainda está a presidir ao executivo europeu e que se posiciona como um dos fortes candidatos à Presidência da República. Não teria o eurocrata outra expressão mais adequada ao conteúdo do acordo de parceria?
Mas Barroso vai mais longe. Ele, que já vinha criticando o Tribunal Constitucional e as instituições portuguesas em geral, agora dá recados sobre a importância de gastar bem o dinheiro e sobre as formas de o gastar. Será verdade que no tempo da sua governação portuguesa, e só durante ela, se gastou bem o dinheiro que provinha da Europa? Não teria sido mais curial, mais alinhado com a soberania, que esse esboço dos gastos tivesse sido apresentado pelo Primeiro-Ministro de Portugal? O facto de Durão Barroso ser português não lhe dá mais direito de falar em nome de Portugal, com os paramentos de comissário europeu ou de líder da Comissão. Se, porque a Europa disponibiliza dinheiro, tem de definir unilateralmente a sua utilização, pergunto-me se não seria melhor que esse dinheiro ficasse a apodrecer lá nos cofres da Comissão. Segundo a nossa CRP, “o Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública” (vd art.º 182.º) e não o é a Comissão Europeia nem o seu Presidente. E é ao Governo de Portugal e não à Comissão que compete “negociar e ajustar convenções internacionais” (vd art.º 197.º/1, alínea b).
E o Presidente da Comissão Europeia pretende abusiva e mesmo ditatorialmente silenciar – a troco de dinheiro europeu, esquecendo a perspetiva mutualista das relações dos Estados com a União e a exigências da solidariedade e da subsidiariedade – os antieuropeístas, os eurocéticos e mesmo os europeístas que lançam justas críticas às lideranças das instituições comunitárias: “que se calem aqueles que dizem que a União Europeia não é solidária com Portugal e com os países da coesão” – ordenou. E nós vamos calar-nos?
É preciso não ter vergonha para confundir tudo. Ninguém nega a “solidariedade” da União Europeia; nega-se-lhe, sim, o sentido e o alcance. E, sobretudo, critica-se a falta de prossecução do projeto europeu e a hegemonia abusiva e unilateral de um ou de uns determinados Estados-Membros, acriticamente seguidos pela Comissão, de ouvidos desatentos aos estudos e às decisões parlamentares. Critica-se outrossim a falta de voz, vez e ação da UE perante o concerto dos demais blocos políticos e económicos mundiais.
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Porém, apesar de não dever ter provindo de Durão Barroso a explicitação do destino das verbas dos fundos comunitários, é de interesse deixá-lo à consideração geral e com algumas notas à laia de comentário:
– Com efeito, todos sabemos que não há crescimento sem desenvolvimento e que é necessário aplicar bem os fundos que Portugal terá à disposição nos próximos sete anos. Onde estava o querido líder nestes dez anos, sobretudo nos últimos quatro?
– Se “este é o ponto de viragem”, efetivamente os 26 mil milhões de euros que serão colocados à disposição de Portugal nos próximos sete anos, devem ser “uma alavanca” para as transformações necessárias e para auxiliar as reformas que o Governo tem vindo a executar. Que reformas, além os cortes?
– Foram enumeradas, a título de exemplo, algumas áreas para onde o dinheiro será canalizado, nomeadamente: o apoio às pequenas e médias empresas; o reforço da inclusão social; maior apoio ao emprego, educação e formação; apoio específico para combater o desemprego jovem; apoio à investigação; e ainda outros projetos. Caberá a Portugal definir esses “outros projetos” ou virá ainda Barroso defini-los? Ou teremos que aguardar as diretivas do sucessor Juncker?
Finalmente, o decisor mor sentenciou:
– “Estas são as prioridades corretas” (…). “Hoje inicia-se um novo capítulo de esperança num futuro melhor, com importante contributo da solidariedade europeia”.
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Não sei se esta reflexão deve ser encerrada com o autoritário “CUMPRA-SE”, se com o piedoso “AMEN, DEO GRATIAS!”, se com o subserviente “YES, MISTER PRESIDENT!”.

Estranha forma de gerir a promulgação das leis

O atual Presidente da República habituou as portuguesas e os portugueses a um estranho procedimento em relação a um dos seus poderes presidenciais mais significativos e mais frequentes: a promulgação dos decretos da Assembleia da República e do Governo que, com a promulgação, assumem a forma de leis, no caso de a sua proveniência vir da Assembleia, e de decreto-lei ou de decreto regulamentar, se provierem do Governo e resultarem, respetivamente, das competências legislativas do executivo ou das suas competências regulamentares.
Quanto às leis, o Parlamento tem competências (vd CRP, art.os 161.º-163.º) no âmbito da reserva absoluta (vd CRP, art.º 164.º) e da reserva relativa (vd CRP, art.º 165.º), bem como sobre matérias cujo âmbito pode caber na área de competência de um ou de outro órgão. Ou seja, no primeiro caso, só aos deputados compete a discussão e a aprovação dos diplomas que hão de valer como lei; no segundo caso, embora a competência seja da Assembleia, o governo pode legislar, desde que a Assembleia o autorize, através da competente lei de autorização e mediante determinadas condições (vd CRP, art.º 165.º). O governo, por seu turno, pode legislar em matérias da sua exclusiva competência, em matérias da competência de reserva relativa da Assembleia, nos termos já referidos, e em matérias de áreas de competências comuns (vd CRP, art.º 198.º). No entanto, quando o Governo assume funções legislativas (através de diploma que terá a forma de decreto-lei), fica aberta a possibilidade de um grupo de deputados, nos termos constitucionais e regimentais (vd CRP, art.º 169.º), “salvo os aprovados no exercício da exclusiva competência do Governo”, suscitar a discussão parlamentar do decreto-lei já em vigor. E o resultado pode ser a confirmação tácita, a anulação total através de resolução da Assembleia, carecendo de publicação no Diário da República (I Série) ou a aceitação com alterações, a introduzir por lei.
Coisa diferente é a iniciativa da lei e do referendo. Esta vem estabelecida e regulamentada no art.º 167.º da CRP e cabe aos deputados, sob a forma de projeto, ao governo, sob a forma de proposta, e a grupos de cidadãos eleitores, sob a forma de petição.
Concluído o processo legislativo e/ou decretal, do Parlamento ou do Governo, compete ao Presidente da República, depois da necessária análise, proceder à respetiva promulgação ou exercer o poder de veto político (vd CRP, art.º 136.º) solicitando nova apreciação do diploma em mensagem fundamentada, no caso de diploma parlamentar, ou comunicando por escrito ao Governo o sentido do veto, no caso de diploma governamental.
Por outro lado, segundo art.º 278.º/1 da CRP, “o Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional que lhe tenha sido submetido para ratificação, de decreto que lhe tenha sido enviado para promulgação como lei ou como decreto-lei ou de acordo internacional cujo decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura”.
Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade de norma constante de qualquer decreto ou acordo internacional, deverá o diploma ser vetado pelo Presidente da República e devolvido ao órgão que o tiver aprovado. O decreto não poderá ser promulgado ou assinado sem que o órgão que o tiver aprovado expurgue a norma julgada inconstitucional ou, quando for caso disso, o confirme por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções. Se o diploma vier a ser reformulado, poderá ainda o Presidente da República requerer a apreciação preventiva a constitucionalidade de qualquer das suas normas. (vd CRP, art.º 279.º). Mas, se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela não inconstitucional das normas submetidas à sua apreciação preventiva, o Presidente pode ainda opor o veto político nos termos do art.º 136.º da CRP.
Porém, o Presidente não pode recusar a promulgação da lei de revisão constitucional (vd CRP, art.º 286.º/3).
Os efeitos do veto político são os seguintes: o diploma do governo ou é corrigido no sentido definido pelo Presidente e ele o promulgará em devido tempo ou cai por si; o diploma do Parlamento ou é reformulado nos termos da mensagem presidencial e ele o promulgará ou então poderá ser objeto de confirmação por maioria absoluta dos deputados, caso em que o Presidente o promulgará no prazo de oito dias a contar da sua receção. Será, porém, exigida a maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções, para a confirmação dos decretos que revistam a forma de lei orgânica, bem como dos que respeitem às seguintes matérias: relações externas; limites entre o setor público, o setor privado e o setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção; regulamentação dos atos eleitorais previstos na Constituição, que não revista a forma de lei orgânica. (vd CRP, art.º 136.º).
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Embora a Constituição não o especifique, pressupõe-se que o Presidente da República exercerá o poder (ou a obrigação) de promulgar, vetar ou submeter à apreciação do Tribunal Constitucional um diploma que lhe seja enviado para promulgação, com base na ponderação que resulte da sua douta análise. Compreende-se que este importante órgão de soberania, até porque está demasiado exposto a escrutínio público e porque dispõe de prazos constitucionais relativamente curtos, se muna do aconselhamento técnico de assessores, conselheiros e mesmo consultores externos. Também parece legítimo que cidadãos, grupos de deputados e outras entidades – discordantes ou dubitantes da constitucionalidade dos diplomas em causa – exerçam as suas pressões contidas e de forma cortês. Eu próprio já o fiz alguma vez.
Não percebo a índole curial eventualmente presente no facto de ser o próprio Governo, que, tendo a iniciativa da produção legislativa, revele publicamente a intenção ou o propósito de solicitar ao Presidente que submeta à fiscalização prévia do Tribunal Constitucional uma norma aprovada no Parlamento, onde o Governo dispõe do apoio de uma clara maioria de deputados e que decidiu no sentido proposto pelo próprio Governo. E o Presidente também não me parece ter estado bem ao admitir publicamente essa hipótese de pedido do Primeiro-Ministro, argumentando que também ele próprio, ao tempo em que exercia aquelas funções, também terá utilizado o mesmo procedimento. Só que se esqueceu de referir que não dera publicidade a esse procedimento. Tal como dantes, o Primeiro-Ministro mantém hoje o hábito de semanalmente se encontrar com o Presidente para observância do estabelecido nos artigos 190.º e 191.º/1 da CRP. E ninguém sabe, em público, nem tem de saber do teor desses colóquios.
Como é que tem de transpirar justamente aquilo que naturalmente coloca em causa o trabalho governativo (o Primeiro-Ministro tem como colaboradores os ministros e secretários de Estado, cuja boa fé deve acolher) e a idoneidade da Casa da Democracia? Se o Governo tem dúvidas da constitucionalidade das propostas de lei que faz aprovar, porque é que brinca com o fogo, desrespeitando os cúmplices da ação política, e não procura outras formas de governança? E como é que o Presidente pactua com este “arrapazamento” do Estado, olvidando alguma compostura que ele próprio outrora imprimiu à governabilidade e à relação com a Assembleia da República e com os Presidentes da República de então?
Por seu turno, a Assembleia da República nem sempre funciona bem como um todo, como seria de esperar. Não citando algumas tiradas peregrinas da Presidente e alguns dislates de deputados, devo recordar o caso, obviamente já esquecido, do diploma legislativo que reorganizava administrativamente o município de Lisboa, reduzindo o número de freguesias pela agregação de umas tantas e pela definição de limites territoriais das novas entidades a criar por via legislativa. Já todo o processo legislativo estava concluído e alguém se apercebeu de erro processual cometido – e o denunciou oportunamente – que implicava uma real intromissão no território do município de Loures, naturalmente sem má fé, mas sem a observância obrigatória de auscultação prévia dos órgãos autárquicos em causa – assembleia municipal de Loures e a(s) assembleia(s) em causa. Pois, o Parlamento não encontrou outra forma que não fosse a de solicitar ao Presidente que exercesse o veto político sobre o normativo enviado (ou a enviar) a Belém. Ora não se percebe que um processo legislativo concluído em sede parlamentar não possa ser corrigido por iniciativa parlamentar, se o erro é descoberto antes da promulgação. Se o regimento não abre a porta para tal, alterem o regimento!
Caso contrário, ficamos a perceber, sem necessidade de que no-lo expliquem, como é que um diploma já aprovado em sede parlamentar, quando Cavaco Silva era Primeiro-Ministro, pôde sofrer, no caminho de São Bento para Belém, uma alteração virgular, a que alegadamente ficou ligada a movimentação de uns milhares largos de contos (Na ocasião, a moeda era o escudo!).
Será que um diploma parlamentar, uma vez munido de guia de marcha para Belém, segue o sistema do brado juliano “Alea iacta est!”, constituindo o percurso São Bento-Belém o novo Rubicão e o(a) Presidente da Assembleia da República o novo Júlio César?
Mas, no passado dia 28 de julho, o senhor Presidente, no seu jeito de comentar diplomas que promulga (desnecessariamente, até porque a sua palavra deveria ter força e ser utilizada quando necessário e investir mais nas mensagens de veto), mimoseou-nos com uma notável pérola política. Promulgou a revisão da lei do segredo de Estado, mas sugere aos deputados a “reponderação” de algumas normas para que sejam eliminadas “dúvidas ou equívocos interpretativos”, frisa. (Lê-se em http://expresso.sapo.pt/cavaco-promulga-lei-do-segredo-de-estado-mas-sugere reponderacao=f883508#ixzz38uIHQPZq).
Em mensagem enviada ao Parlamento, Cavaco Silva defende uma “reponderação” por parte dos deputados em relação às normas sobre a desclassificação de matérias, documentos ou informações sujeitos ao regime do segredo de Estado e sobre a tipificação do crime de violação de segredo de Estado – “assim eliminando as dúvidas ou equívocos interpretativos que possam subsistir numa matéria de tão elevada sensibilidade”.
O Presidente apresenta como exemplo o estabelecido relativamente à desclassificação, recordando que o n.º 2 do artigo 6.º do anexo estabelece que “apenas tem competência para desclassificar matérias, documentos ou informações sujeitos ao regime do segredo de Estado a entidade que procedeu à respetiva classificação definitiva ou o primeiro-ministro”.
Argumenta Cavaco Silva, que tal enunciado pode ser interpretado no sentido da atribuição ao primeiro-ministro da competência para desclassificar matérias que tenham sido classificadas por outras entidades, como o Presidente da República e o Presidente da Assembleia da República.
Contudo, acrescenta, deve sustentar-se “uma interpretação diversa, limitando-se a competência do primeiro-ministro à desclassificação de documentos que tenham sido classificados pelos vice-primeiros-ministros e pelos ministros”. E sustenta que “só esta interpretação permitiu a minha promulgação do diploma”, defendendo, contudo, que “numa matéria com a importância do regime do segredo de Estado, não devem subsistir dúvidas ou equívocos interpretativos, pelo que esta interpretação deve resultar da lei de modo absolutamente claro”.
E o Presidente da República aduz outro exemplo de similar gravidade, advogando que seria “desejável” que a tipificação do crime de violação de segredo de Estado “transmitisse a segurança jurídica que inequivocamente deve resultar da previsão de um ilícito criminal”. Assim, refere, deveria tornar-se inequívoco que “a criminalização incide sobre condutas que envolvam a perigosa revelação de informações, factos ou documentos, planos ou objetos previamente classificados como segredo de Estado”.
Ora, não me parece aceitável que o Presidente se estribe na sua peculiar interpretação para promulgar um diploma, já que não lhe é reconhecida constitucionalmente capacidade para interpretação autêntica das leis. Essa cabe somente ao Parlamento. Por isso, o que o Presidente deveria fazer, com base na necessidade de “reponderação” que exprime – e bem – e no défice jurídico que põe a nu, era utilizar o poder de veto, se efetivamente acredita no teor da mensagem que dirigiu aos deputados. É a ética da convicção a exigir consequências.
Não creio, pelo acima exposto, que lhe caiba constitucionalmente a iniciativa da lei. E o pedido da reponderação é uma recomendação de lei: alterar lei é legislar, não é, senhor Presidente? Não é, senhores Deputados? E há sempre formas de atuar de outra maneira, de melhor maneira!

Cf ainda: Canotilho, J. – Moreira, V. (2008). Constituição da República Portuguesa – Lei do Tribunal Constitucional. 8.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora; Fernandes, A. (1995). Introdução à Ciência Política – teorias, métodos e temáticas. Porto: Porto Editora; Morais, C. (2007). Manual de Legística – critérios científicos e técnicos para legislar melhor. Lisboa: Editorial Verbo; Neves, M. (2008). Semiótica Linguística e Hermenêutica do Texto Jurídico. Lisboa: Instituto Piaget.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Santa Marta, a apóstola da hospitalidade e do trabalho

A sua memória litúrgica celebra-se a 29 de julho, por iniciativa dos franciscanos, em 1262. Santa Marta corresponde a uma personagem bíblica referida no Evangelho de Lucas (vd Lc 10,38-42) e no de João (vd Jo 11,1-45; 12,2). A irmã de Lázaro e de Maria de Betânia, (também chamada de Margareth, nalguns lugares), perto de Jerusalém, é a padroeira das lavadeiras, das cozinheiras e donas de casa, dos anfitriões, dos estalajadeiros e hoteleiros, dos nutricionistas e dietistas; e, ainda de acordo com a tradição, é protetora contra as falsas preocupações, como: mau olhado, inveja, pragas, bruxarias, descarrego e outras superstições para as quais ela oferece um escudo impenetrável. Foi uma das mulheres que acompanharam Jesus  no calvário e na ressurreição.
O nome Marta é transliteração do grego Μαρθα, que por si já é tradução do aramaico מַרְתָּא, que significa “a mestra” ou “a senhora”. A forma aramaica ocorre numa inscrição datada como sendo do primeiro século, que se encontra num Museu em Nápoles.
Marta, a hospedeira de Cristo, era filha de Siro e de Eucária, descendente de estirpe real. O pai era governador da Síria e de muitas regiões marítimas. Com sua irmã e irmão, por direito de herança materna, possuía três fortalezas: Magdala, Betânia e parte da cidade de Jerusalém. Nunca se disse que tivesse marido ou vivesse com homem algum. Era a anfitriã e a dona da casa por ser a irmã mais velha. Quando Jesus se hospedava em sua casa, em Betânia, Marta era solícita e cuidava do seu bem-estar. Numa visita, recorda Lucas no seu Evangelho, Marta reclamou por Maria ter ficado sentada a ouvir Jesus, deixando-a com o trabalho todo. Jesus, porém, sentenciou: “Marta, Marta, andas inquieta e agitada com muita coisa, quando uma só é necessária. De facto, Maria escolheu a melhor parte, que lhe não será tirada” (Lc 10,41-42). Marta tornou-se, pois, o protótipo da ativista cristã e Maria o símbolo da vida contemplativa.
Marta, dado o seu temperamento ativo e pressuroso, foi a única que foi procurar Jesus e sair-lhe ao encontro, quando Lázaro morreu, ao passo que Maria ficou recatada em casa. A tradição diz ainda que, para aqueles que diziam que já era tarde e que Lázaro já estava morto, Marta retrucou energicamente que não tinha a menor importância e que Jesus iria curá-lo. E de facto, quando Jesus chegou, Lázaro já estava enterrado e o seu corpo já apresentava sinais de putrefação, mas Marta não se abalou, e com enorme fé, falou a Jesus: “Senhor, se cá estivesses, meu irmão não teria morrido, mas eu sei que tudo o que pedires a Deus, Deus To concederá!” (Jo 11,21-22). E, quando o Mestre afiança que o irmão ressuscitará, ela remete a fé para a ressurreição no último dia. Porém, Jesus lança-lhe um repto de fé: “Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita em Mim não morrerá jamais. Acreditas nisto?”. Ao que Marta respondeu com firmeza: “Acredito, Senhor, eu já acreditava que Tu és o Messias, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo” (cf Jo 11,23-27). Então, muitos dos judeus que tinham vindo ter com Maria, ao verem o que Jesus fizera, acreditaram (Jo 11,45). E não digam que esta alma ativista não é também alma de contemplação!
Como se pode verificar, o ativismo de Marta é condimentando por uma fé profunda em Cristo. E é um ativismo incessante que, se parece emulatório perante a sobredita atitude de Maria (só que também queria que sua irmã O servisse, porque estava convencida de que não bastaria o mundo inteiro para servir hóspede tão nobre), seis dias antes da Páscoa, quando ofereceram um jantar a Jesus, enquanto Maria ungia os pés de Jesus com o perfume de espicanardo genuíno e os enxugava com os cabelos, Marta andava a servir (cf Jo 12, 1-2).
Uma tradição refere que Lázaro e suas irmãs, Marta e Maria, foram para Chipre onde ele se tornara bispo de Kition ou Lanarka. As suas supostas relíquias teriam sido trasladadas para Constantinopla e várias igrejas e capelas foram erigidas em sua honra na Síria. A Basílica de São Lázaro, santo padroeiro de Lanarka, construída em 890 da nossa era, era um templo cristão do século V, no qual existia um sarcófago com a com a inscrição: “Lázaro, o amigo de Cristo”. Isto reforça a tradição de que ele vivera sua “segunda vida ressuscitado” em Kition, Lanarka.
Porém, segundo outra tradição, depois da Ascensão do Senhor, quando da dispersão dos discípulos, ela, seu irmão Lázaro, sua irmã Maria Madalena e ainda São Maximino — que as tinha batizado e a quem foram entregues pelo Espírito Santo — além de muitos outros, foram colocados num barco pelos infiéis, sem remos, nem velas, nem leme, nem alimentos, pois tudo lhes roubaram. Mas, guiados pelo Senhor, chegaram a Marselha, na região da Provença; depois, foram para o território de Aix e lá missionaram e converteram o povo à fé.
Ainda, segundo esta tradição, Santa Marta era muito eloquente e toda a gente se agradava dela. Naquele tempo, vivia nas margens do Ródano, num bosque, entre Arles e Avinhão, um dragão, metade animal, metade peixe, maior do que um boi e mais comprido que um cavalo, com dentes afiados como espadas, e protegido de ambos os lados por escamas como escudos. Ocultando-se no rio, matava todos os transeuntes e fazia naufragar os barcos. Tinha, como reza a lenda, ido por mar desde a Galácia da Ásia, fora gerado por Leviatã – que era uma ferocíssima serpente aquática – e por um animal chamado ónaco, oriundo da região da Galácia, que expele os seus dejetos até à distância de uma jarda como se fosse a ponta de um dardo, queimando como fogo tudo o que atingem. Marta, a pedido do povo, foi procurá-lo e encontrou-o no bosque a devorar um homem; atirou água benta sobre ele e mostrou-lhe uma cruz.
Em seguida, vencido e parado como uma ovelha, Marta atou-lhe o seu cinto e ali mesmo foi morto pelo povo com lanças e pedras. Os naturais dessa região chamavam Tarascurus àquele dragão; por isso, em sua memória, aquele lugar ainda se denomina de Tarasconus (hoje Tarascon), em vez de Nerluc, que significa “lago negro”, porque os bosques eram sombrios e escuros.
A partir de então, com o beneplácito de seu mestre Maximino e de sua irmã, Marta ali permaneceu entregue, sem desfalecimento, às orações e aos jejuns. Depois, tendo-se reunido nesse lugar uma multidão de religiosas e construído uma grande basílica em honra da Bem-aventura Virgem Maria, levou uma vida austera: abstinha-se de carne, de toda a gordura, de ovos, de queijo e de vinho; só comia uma vez por dia, fazia cem genuflexões de dia e outras tantas à noite. Uma vez, a crer em La Légende Dorée, quando pregava junto de Avinhão, entre a cidade e o rio Ródano, um jovem que, estando além do rio, queria ouvir suas palavras, mas não tinha barco; e, tendo começado a nadar, foi levado pela força da corrente e logo morreu afogado. Muito a custo, encontraram o seu corpo ao segundo dia e colocaram-no aos pés de Marta para que o ressuscitasse. Ela prostrou-se ao chão de braços abertos em cruz e orou assim: “Senhor Jesus Cristo, que outrora ressuscitastes o meu querido irmão, olha, ó meu hóspede caríssimo, para a fé destes circunstantes e ressuscita este rapaz. Pegou-lhe na mão e ele imediatamente ressuscitou, recebendo o santo batismo.
Santo Eusébio conta no livro quinto da História Eclesiástica, que uma mulher que sofria de um fluxo de sangue, depois de sarada, foi para o seu jardim e fez uma estátua parecida com Nosso Senhor Jesus Cristo, com a túnica e a fímbria como tinha visto, reverenciando-a com muita frequência. Mas cresceram as ervas, até então destituídas de qualquer virtude, e ficaram com tal poder que, daí em diante, curaram muitos enfermos. Santo Ambrósio diz que essa mulher fora precisamente Santa Marta. Da mesma forma São Jerónimo refere, como conta na História Tripartida, que Juliano, o Apóstata, tirou a estátua feita por ela para lá colocar a sua, que logo foi destruída por um raio.
Os tarasconenses, lembrados da história do dragão Tarasca, resolveram procurar as relíquias de Marta, que encontraram em 1187, construíram um templo, em 1197, para a guarda das mesmas e tomaram como sua padroeira a benfeitora dos seus antepassados.
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Santo Agostinho, bispo de Hipona, no século V, no Sermo 103, 1-2. 6 (PL 38, 613.615), elogia a hospitalidade de Marta, cujas recompensas estende a todos os que se tornarem hospitaleiros para Jesus Cristo e para aqueles em cuja figura humana Ele sofre: Felizes os que mereceram receber a Cristo em sua casa. Ante a multiplicidade de ocupações, “devemos aspirar a um único fim”, porque estamos a caminho e não em morada permanente, em viagem e não na pátria definitiva, no tempo do desejo e não no da posse plena. Mas devemos aspirar, sem preguiça e sem desânimo – sublinha Agostinho – para um dia podermos chegar ao fim.
E explica o sentido da irmandade de Marta e de Maria e o sentido do serviço ao Mestre:
Eram irmãs, não apenas de sangue, mas também pelos sentimentos religiosos. Ambas unidas ao Senhor, em perfeita harmonia, serviam ao Senhor corporalmente presente. Marta recebeu-O como se fora peregrino. Todavia, era a serva que recebia o Senhor, a doente que acolhia o Médico; a criatura que hospedava o Criador. Recebeu o Senhor para lhe dar o alimento corporal, enquanto ela precisava do alimento espiritual. O Senhor toma a forma de servo e possuía um corpo que lhe fazia sentir fome e sede. Nesta condição, é alimentado pelos servos, por condescendência, não por necessidade. Portanto, o Senhor foi recebido por Marta como hóspede, enquanto Ele, por desígnio divino, veio para o que era seu, e os seus não o acolheram. Mas a todos que o receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,11-12).
E o santo Bispo de Hipona explicita o mistério da condescendência divina em Cristo:
Adotou os servos, que fez irmãos; remiu os cativos, que fez co-herdeiros. Ninguém de vós diga só para os antigos: Felizes os que mereceram receber Cristo em casa! Não te entristeças, não te lamentes por teres nascido em tempo que já não podes ver o Senhor corporalmente. Não te privou desta honra, pois afirmou: Todas as vezes que fizestes isso a um de meus irmãos, foi a mim que o fizestes (Mt 25,40).
E interpela quem segue os passos de Marta sobre os últimos tempos, os da parusia:
Quando chegares à outra pátria, encontrarás peregrinos para hospedar? Famintos para repartires com eles o pão? Sedentos para lhes dares de beber? Doentes para visitar? Desunidos para reconciliar? Mortos para sepultar? Lá não haverá nada disso. Haverá o que Maria escolheu: seremos alimentados, não alimentaremos. Lá se cumprirá em perfeição e plenitude o que Maria escolheu aqui: daquela mesa farta, recolhia as migalhas da palavra do Senhor. Queres saber o que há de acontecer lá? É o Senhor que o diz a respeito dos servos: Em verdade vos digo: Ele mesmo vai fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá (Lc 12,37).
Referências:

Bíblia Sagrada – MEL EDITORES – Estarreja, 2012;
http://www.aascj.org.br/home/2010/07/29/conheca-a-historia-da-vida-de-santa-marta-a-hospedeira-de-nosso-senhor-jesus-cristo/, ac. Julho de 2014;
Leite, J.; Coelho, A. (2005). Santos de Todos os Dias. Vol. de julho. Matosinhos: Quid novi;
Sacra Congregatio pro Cultu Divino (1989). Liturgia das Horas, III. Coimbra: Gráfica de Coimbra;

Nova Bíblia dos Capuchinhos – Difusora Bíblica – Lisboa/Fátima, 1998

segunda-feira, 28 de julho de 2014

A contenda antoniana no PS

Assim me dá para designar a luta de galos entre António Costa e António José Seguro em disputa pela liderança do partido socialista (PS), a coberto de recente invenção de eleições primárias para o posicionamento em candidato do PS ao cargo de primeiro-ministro (confesso ter sentido alguma dificuldade em alinhar a frase em termos o mais precisos possível). Desta disputa já se diz ironicamente que sai vencedor o António; só não se vislumbra o que se perderá no PS e no país. Diga-se desde já que, tenha a culpa quem a tiver, se trata de uma insólita, para não dizer inédita, enormidade política.
Com a queda de Sócrates, António José Seguro foi eleito secretário-geral do PS. Como lhe era difícil conviver com a realidade de partido órfão de pai vivo, fez razoavelmente o ponto de embraiagem entre o futuro desconhecido, mas carregado de sombras, e o passado marcado pela narrativa da pré-bancarrota, pelo desgaste político do ex-primeiro-ministro e pelo memorando de entendimento (negociado e assinado pelos três partidos do arco governamental) em excesso atribuído à teimosia do anterior líder socialista. O partido começou pouco a pouco a afirmar-se como oposição perante a visível descaraterização do memorando cada vez mais funesto nas consequências e a degradação social e política a ficar em situação explosiva. No entanto, a bondade inicial de Seguro não foi suficiente para compensar a falta de carisma e arreganho político, sobretudo quando contraditado frente a passado que não soube nem rejeitar nem assumir criticamente. Tal postura, por vezes de expressão confrangedora, impediu que o PS não se perspetivasse perante o povo como alternativa credível: o povo rejeitava um governo sem norte, mas não via no partido socialista tábua a que pudesse agarrar-se. E, se o governo tinha rasgado as promessas eleitorais, também ainda não se tinha banido o espectro dos males que o consulado socrático infligira a muitos dos grupos profissionais nem do enfrentamento medíocre da crise, dita nossa, mas internacional e sistémica.
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António Costa, em tempo útil reagiu, mas sem consequência: não tinha certeza de conseguir a liderança do partido, já domesticado pelo aparelho e com uma revisão de estatutos paramentada de controvérsia (Congresso não decidiu, pois, tal não estava agendado nem mandatou a Comissão Nacional nas tarefas de revisão estatutária). Mas sabia que, perdido na eventual luta pela liderança partidária, acabaria, na certa, por perder as eleições autárquicas em Lisboa. O PS já tinha cometido pelo menos tantos erros táticos na escolha de candidatos autárquicos como o PSD e o CDS. E surgiu o milagre transitório: em noite faustosa os dois camaradas com o nome António consagraram a unidade do partido e a estratégia de ação futura, que o Congresso rubricou por esmagadora maioria.
E o PS disputou as eleições autárquicas sob a ameaça de eleições legislativas antecipadas (em ambiente da crise política das decisões de incapacidade e desistência de Gaspar, da decisão irrevogável de saída de Portas e do apelo de Cavaco à Salvação Nacional). Ganhou as eleições autárquicas, quaisquer que sejam os parâmetros de aferição de vitória. Todavia, graças ao desgaste do Governo e dos erros autárquicos da parte da maioria que suporta a coligação governamental, a vitória do PS poderia ter sido mais folgada. Subiram as candidaturas de independentes, genuínos (poucos) ou postiços (a maior parte eram dissidentes).
António Costa, ganhador em Lisboa, cedo afirmou que a vitória era indiscutível, mas, perante a descida ou estagnação do PS nas intenções de voto vaticinou que as pessoas, apesar do cartão vermelho apresentado ao Governo, ainda não viam no PS uma alternativa credível de que precisavam para a governação eficaz e alegou que havia um longo caminho a percorrer.
E vieram as eleições europeias a 25 de maio. A campanha eleitoral foi sofrível em termos do debate: os assuntos europeus e os nacionais misturaram-se de tal maneira que nada ou quase nada ficou esclarecido. Os temas mais discutidos eram pormenores de adereços, sem interesse. E a coligação teve uma derrota estrondosa, mas o PS, em cuja campanha Seguro se empenhara a fundo (aliás, como na das autárquicas), teve uma vitória tangencial (Mais 3% + que a coligação governamental). Além do crescimento de alguns dos pequenos partidos (e a diminuição evidente do Bloco de Esquerda), foi tremendamente maioritária a abstenção e cresceu de forma insólita o número de votos nulo e de votos em branco.
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Dias depois, Costa apresentou-se como disponível para disputar a liderança do partido, argumentando que a vitória (engrandecida como histórica pelo secretário-geral e pelo cabeça de lista vencedora) soube a pouco – o que, pelo número de abstencionistas, brancos e nulos, mostrava que este PS não dava garantias de vitória eleitoral em 2015.
Seguro, em vez de, ao ler a realidade, ter assumido a grandeza de pôr o lugar à disposição dos militantes para obter a clarificação dentro do partido, reage a contragosto. Talvez enredado no aparelho partidário (há quem espirre compromissos assumidos em termos de lugares governativos, partidários e empresariais – coisa em que me recuso acreditar) escuda-se nas duas vitórias consecutivas, no melhor resultado socialista a nível europeu e na ambição alheia pelo poder. Não promove eleições para a liderança nem congresso. Pede à Presidente do partido que estude as possibilidades da intenção do secretário-geral em termos do direito comparado e propõe à Comissão Política Nacional a marcação de eleições primárias para candidato do PS ao cargo de primeiro-ministro. E, sim, o órgão mais importante entre sessões da Comissão Nacional, que, por sua vez, é o órgão mais importante entre congressos, acolhe a proposta do secretário-geral e marca eleições primárias para 28 de setembro, em que, além dos militantes, poderão votar os simpatizantes que se inscrevam como tais até 12 de setembro e declarem concordar com os princípios do PS, consignados em documento que lhes ficará disponibilizado. Foi mesmo designada uma comissão eleitoral de consenso das candidaturas, sob a presidência do prestigiado camarada Jorge Coelho. Seguro, entretanto, terá declarado que, no caso de perder as primárias, abandonará o cargo de secretário-geral.
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Se António Costa está convencido de que tem razão, deveria, em meu entender, combater até à última essa ideia peregrina das primárias e lutar pelas eleições diretas para secretário-geral. E o tempo que se está a perder, com risco de inutilidade, poderia ter sido gasto na demonstração das razões da bondade e da pertinência da sua atitude. Por seu turno, se José Seguro fosse amigo do PS e do País, não arriscava uma forma de solução inédita, de legalidade no mínimo duvidosa e implicando uma considerável perda de tempo. Uma solução encontrada dentro do partido, e a pensar no país, seria mais rápida, menos ambígua e mais de acordo com a lei e com os estatutos e claramente sem engulhos constitucionais.
Desde já, não faz sentido uma candidatura de primárias para primeiro-ministro. Não há no nosso ordenamento constitucional eleições para tal. Embora seja voz corrente que o partido que ganha as eleições dará o primeiro-ministro, na realidade, os portugueses elegem diretamente a Assembleia da República, cuja composição reflete o método de representação proporcional, pela média mais alta de Hondt. E o Presidente da República faz a nomeação do primeiro-ministro, ouvidos os partidos representados na Assembleia e tendo em conta os resultados eleitorais (cf CRP, art.º 187.º/1). Ora em tese, o partido que obteve melhores resultados pode não dispor de condições para formar governo, pelo que não deve fazer-se uma eleição para algo que pode não acontecer. De facto, nos Estados Unidos da América (EUA) e em França, consolidou-se o sistema das eleições primárias para o candidato de partido à Presidência da República. Porém, em Portugal, os candidatos à presidência não surgem no quadro partidário. Eles resultam de opção pessoal (cf CRP, art.º 124.º/1), apoiável por um leque partidário mais alargado ou mais reduzido, consoante o perfil dos candidatos. Já nos países mencionados, o presidente é eleito por um colégio eleitoral, constituído pelos grandes eleitores (EUA), ou por voto universal, secreto e direto (França), mas as candidaturas surgem no âmbito dos partidos. O Presidente escolhido é sempre um dos candidatos que ganharam as primárias dentro do respetivo partido ou frente partidária.
Mas o secretário-geral esquece-se de que o nosso código civil (vd art.º 157.º e seguintes) não prevê eleições fora dos corpos sociais definidos estatutariamente e aqueles são eleitos em assembleia geral de associados e não outros; por outro lado, os estatutos do PS, que poderiam estabelecer de outro modo, não preveem nem eleição de órgão extrapartidário nem direito de voto extensivo a simpatizantes.
O máximo concedido a simpatizantes, segundo os estatutos, é: “apresentar contributos sobre a organização, a orientação e a atividade do Partido” – art.º 12.º/1, c). Aos independentes o máximo que se lhes confia parece ser: “Os órgãos deliberativos do Partido podem convidar cidadãos independentes a participar na atividade das estruturas e nas reuniões dos órgãos do Partido, exceto no período destinado à tomada de deliberações” (sublinhei) – art.º 18.º/1.
E, sobre a capacidade ativa, os estatutos são claros: “Só têm capacidade eleitoral ativa os membros do Partido com doze meses de inscrição na data do ato eleitoral e com as quotas em dia até um mês antes do dia da eleição” – art.º 15.º/1.
Sendo assim, é de perguntar:
– Como é que se pode aceitar a capacidade eleitoral ativa de simpatizantes (quando esta é reconhecida somente a membros do partido) até quinze dias antes do ato eleitoral, quando os membros do Partido têm de estar inscritos há doze meses e com as quotas em dia até um mês antes das eleições?
– Não se vislumbra aqui uma grosseira violação dos estatutos, que o Congresso não alterou nem mandatou a Comissão Nacional para tal, sob o olhar cúmplice de toda a massa partidária e adjacente?
– Vão os promotores dessa farsa e os cúmplices acreditar na sanação de irregularidade com base na concordância geral, na convicção de que ninguém levantará incidente (agora não se impugna o que ainda não aconteceu; depois, não se impugnará por inoportuno ou por lesivo do interesse partidário e/ou nacional)?  
– Vamos aceitar um facto consumado que alguém criou deliberadamente ou por inépcia?
– Querem que acreditemos, para a governação justa, em sã legalidade eficiência e eficácia, num partido que não sabe arrumar a casa a tempo e sem recorrer a subterfúgios?
 – Querem que acreditemos num partido que não está presente como oposição que, após a saída formal da troika, se me afigura cada vez mais necessária?
– Querem que acreditemos em Seguro, que disse não ter falado de coisas que tinha em mente apenas para preservar a paz e o bem-estar no Partido ou que declarou, tarde e a más horas, que não teria assinado o memorando de entendimento?
– Finalmente, querem convencer os portugueses de que as primárias para candidatura a primeiro-ministro configuram aquele “plano de ação para a Democracia Participativa”, previsto na alínea h) do artigo 63.º dos estatutos, artigo que define as competências da Comissão Política Nacional: “aprovar, sob proposta do Secretariado Nacional, um plano de ação para a Democracia Participativa, o qual será objeto de relatório anual a submeter à apreciação da Comissão Política Nacional”? Ou estará o partido a observar a alínea d) do mesmo artigo, que aliás Seguro invocou na proposta que fez à Comissão Política Nacional?
A Veneranda Comissão designa per modum electionis estranho aos trâmites usuais no partido. Que generosidade, trapalhada ou quiçá forma subtil de consecução de intentos subliminares!

Pobre partido socialista, mas corações ao alto, portugueses!

domingo, 27 de julho de 2014

Estará na forja mais um membro da CPLP?

Dizem alguns comentadores – e eu também acho que sim – que o Presidente da República (PR) e o Primeiro-Ministro (PM), aliás Portugal ao mais alto nível, sofreram a maior humilhação dos últimos tempos em areópago internacional. De facto, terem sido surpreendidos os nossos representantes com a omissão de uma votação formal de admissão da Guiné-Equatorial na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e, ao invés do que esperavam, terem sido confrontados com o simples convite formal da parte de quem abriu a sessão da Cimeira formulado ao Presidente Teodoro Obiang para ocupar de pleno direito a cadeira de membro desta organização – este dito incidente protocolar revela bem a forma como Portugal aceita ser tratado internacionalmente. Se calhar, é mesmo assim que Portugal prefere, a avaliar pelo modo como se têm relacionado com a Europa os nossos governantes, para quem, à semelhança do aluno dócil, tudo o que os mestres mandem estará bem, porque os mestres é que sabem. Sentido crítico é o que não há.
Provavelmente não houve atropelo aos estatutos da CPLP, que não especifica o modo como se processa a cerimónia de admissão de novos membros embora o n.º 2 do art.º 6.º determine que “a admissão na CPLP de um novo Estado é feita por decisão unânime da Conferência de Chefes de Estado e de Governo, e tem efeito imediato”. Só que não está definido o modo como se chega a essa decisão unânime: votação, apresentação, aclamação, convite à vista de todos os presentes...
Mas houve efetivamente falta de trabalho da diplomacia portuguesa, que não terá tentado saber como o anfitrião da cimeira iria proceder e disso informar a representação portuguesa, muito menos não soube fazer valer um seu ponto de vista decente em termos procedimentais. Ou então o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a quem se atribui a responsabilidade do guião de adesão (Luís Amado concebeu, Paulo Portas deu sequência e Rui Machette cumpriu), sabia do modus faciendi que iria ser adotado e o ocultou ao PR e ao PM, caso em que o Ministro deveria ser exonerado logo que a delegação regressasse a Lisboa; ou, em alternativa, o Ministro os informou previamente, e eles não tinham o direito de se mostrarem surpreendidos com o ocorrido nem o deveriam ter classificado como incidente protocolar (ou quebra de protocolo, como referem alguns). Em qualquer dos casos, a dignidade do país que representam exigia a apresentação formal de um protesto pela forma como os membros da CPLP são tratados em cimeira, onde tudo deve decorrer de forma transparente, de acordo com os elementares princípios da cortesia, mesmo que o estatuto da organização nada estabeleça nestas matérias. Se esta reunião internacional não era o fórum adequado para o ato solene da agregação de um novo país-membro, então a cimeira deveria ter sido informada da sessão em que a cerimónia teria ocorrido. De resto, como se compreenderá que os países que propuseram a entrada na Guiné-Equatorial na CPLP, Brasil e Angola, não compareceram pura e simplesmente? Ora, Portugal, cujo PR até, numa primeira fase, nem via com bons olhos a adesão daquela República à CPLP, pelos motivos que todos conhecem (pena de morte, tortura, perseguição política, corrupção em alto grau…), poderia muito bem ter ficado em Lisboa ou viajar para Díli, mas sabendo o terreno que pisava. Ou será que, a partir de agora, com o vaso de terra (solo) de Timor-Leste que Pedro Passos Coelho pediu e lhe deram, Portugal ficará a saber que terreno pisa? Ora uma relíquia, que se pede e nos dão, não se pisa; venera-se. E porque não pediu, antes ou também, um frasquinho de ar, de água ou de lume de Timor? Assim ficaria com relíquias dos quatro elementos primordiais. Quereria o número (números em dólares) à maneira pitagórica, conceito à moda de Sócrates, ideias inatas à moda de Platão, ou petróleo, o elemento primordial dos séculos XX e XXI? Mas não lhe chegou a língua e não se explicou bem.
Depois de tudo isto, não fiquei a perceber se quem humilhou Portugal foram as autoridades timorenses ou a própria delegação portuguesa, a coberto de uma putativa ingenuidade ou até generosidade (Parece que era preciso que a cimeira corresse bem a Xanana Gusmão!). É que depois da cimeira, PR e PM procederam às suas visitas oficiais a Timor-Leste (duas numa) – os negócios impõem! E Passos Coelho até pretendia que os meninos de uma escola de portuguesa, iniciada a 5 de maio, já falassem português com ele. Não fazia eu ideia de que o senhor Primeiro-Ministro tivesse em tão alto conceito os professores, pela maneira como o seu Ministério da Educação os trata…
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Entretanto, a minha atenção fixou-se nas palavras do Presidente da República à Comunicação Social. Sublinhou candidamente a surpresa do incidente protocolar. E, para justificar a sua mudança de posição em relação à adesão (peço desculpa pelo eco em -ão,-ão –ão – não é a ladrar ao vento!) da Guiné-Equatorial à CPLP, Sua Excelência, sem as palavras da Presidente da Assembleia da República, mas com as fulgurantes ideias de Cavaco Silva, eivadas da melhor cultura política, explicitou que o isolamento de um país de regime ditatorial em que os direitos humanos são permanentemente desrespeitados nunca terá contribuído para a instauração da democracia e para o culto dos mesmos direitos humanos. E deu como exemplo a República da Coreia do Norte.
Se as suas palavras tivessem consequências, o que raramente acontece, sendo mais aconselhável não falar às vezes, era caso para que a diplomacia portuguesa pressionasse a CPLP para encetar as mais eficientes diligências e entabular as mais profícuas negociações para tirar do isolamento internacional aquele povo/país da Coreia do Norte. Bastava ensinar o querido líder a dizer em bom português “sim, sim, sim” umas três vezes, que ele aprenderia facilmente. O mais difícil era conseguir que os portugueses, preguiçosos como dizem que dizem os alemães, aprendessem a deitar-se no chão alinhadinhos, marchar aprumados, bater palmas incessantemente e chorar todo o tempo que fosse mandado superiormente. Quanto ao mais, receio pelo futuro, cortes salariais e de pensões, sobrecarga de trabalho e em péssimas condições, evasão fiscal, corrupção de dirigentes políticos e económicos já existem de sobejo. Mas ainda não nos tiraram o bom humor e a ironia zombeteira, ou seja, pagamos, mas bufamos!
Podem objetar que daí não virá petróleo nem dinheiro para BANIF, BCP, BES, BPI, CGD… Mas podem vir centrais nucleares, mísseis… – que podem dar uma ajudinha nas devotadas missões humanitárias para que enviamos as nossas forças armadas!
E, se os objetores insistirem que a CPLP é a eficiente organização dos valores, da paz e da língua portuguesa – cria-se uma incipiente escola de Português na Coreia do Norte e luta-se pela paz e implantam-se os valores onde são mais necessários, por exemplo, Coreia do Norte, China, Índia, Síria, Irão, Iraque, Palestina, Israel, Egito, Tunísia, Líbia, Ucrânia (Guiné-Equatorial tem o problema resolvido, segundo o que Obiang prometeu), Afeganistão, Paquistão, Kosovo, Tibete, …  
E quanto a negócios, não se escandalizem: a União Europeia, que foi galardoada com o Prémio Nobel da Paz, resultou da CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Lembram-se?
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A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) foi criada a 18 de abril de 1951 pelo Tratado de Paris. Este foi o primeiro passo concreto com vista à integração económica e também para evitar uma 3.ª Guerra Mundial
Os seus mentores foram Robert Schuman, ministro francês dos Negócios Estrangeiros, e Jean Monnet, o seu primeiro presidente. Foram seis os países fundadores: França, Itália, Republica Federal da Alemanha (a então Alemanha Ocidental), Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo.
A CECA tinha como objetivo a integração das indústrias do carvão e do aço dos países europeus ocidentais e constituiu o primeiro momento de transferência dos direitos de soberania de alguns estados para uma instituição europeia, entre os quais os que estavam sob controlo Aliado desde o final da Segunda Guerra Mundial através da Autoridade Internacional para o Ruhr, que a CECA absorveu.

À CECA juntaram-se duas comunidades semelhantes em 1957, com quem se fez a partilha de algumas instituições. Em 1967, todas as instituições foram reunidas na Comunidade Económica Europeia (CEE), que mais tarde, em 1992, pelo Tratado de Maastricht, se tornaria a Comunidade Europeia (CE) e, em 2001, pelo tratado de Nice, se tornaria União Europeia (UE), consolidada pelo tratado de Lisboa (2009), mas reteve a sua identidade independente. Em 2002, com a expiração do Tratado de Paris e sem desejo de renovação do tratado, todas as atividades e recursos da CECA foram absorvidos pela UE. Durante a sua existência, a CECA conseguiu criar um mercado comum, mas não evitou o declínio da indústria do carvão e do aço.

Dia dos avós

Também estas entidades genuínas – sejam elas provindas da consanguinidade, sejam resultado da afinidade (alguns avós são-no na lei, como os ingleses, outros são-no na política, como os espanhóis, outros são belos ou grandes, como os franceses, e outros são postiços como em outros países) – têm o dia a elas dedicado. E este é o 26 de julho.
A celebração do dia dos avós é feita através de eventos que prestam homenagem a todos os avós e pretendem demonstrar carinho e apreço por eles. Netos e filhos presenteiam simbolicamente os seus avós (que geralmente costumam corresponder na medida das suas posses), de forma a agradecer o apoio e dedicação destes à família e mostrar quanto são importantes para os seus familiares.
É frequente dizer-se e escutar de avós que os netos são melhores que os filhos, como não é raro ver netos a contar segredos para seus avós, fazendo-os mesmo de cúmplices em alguma traquinagem.
O papel dos avós na família vai muito além dos miminhos dados aos netos, sobretudo quando, como nos tempos de crise que agora percorrem o país, eles se tornam o suporte afetivo e financeiro de pais e filhos. Por isso, se diz que os avós são pais duas vezes. A avó é também chamada de “segunda mãe”, e o avô, de “segundo pai”; e muitas vezes estão ao lado e mesmo à frente da educação dos netos, com a sua sabedoria, experiência e, com certeza, com um sentimento maravilhoso de estarem a vivenciar continuamente os frutos de seu fruto, ou seja, a continuidade das gerações.
E para celebrar a intensidade do sentimento que permeia esse parentesco vem o dia dos avós, ou o dia da simbiose entre a sabedora experiência de vida (adquirida, não apenas nos livros, nem nas escolas, mas no convívio com as pessoas e com a própria natureza) e a verdura da inocência, por vezes, maliciosa e traquinante.
Se para as crianças os avós são reflexo do “pode tudo”, para estes, os netos são um presente ou uma herança que se ganha mesmo sem se merecer. Será a articulação entre a mestria de vida e a doçura da relação uma poderosa via de crescimento pessoal daqueles e daquelas que presumivelmente têm ainda pela frente um longo percurso disponível. Assim seja!
Não podemos deixar de evidenciar uma realidade que ganha cada vez mais importância na nossa sociedade, onde os avós desempenham um papel de grande prestígio, um papel fundamental na vida dos netos e da família. São eles os grandes mediadores entre o passado, o presente e o futuro. No quotidiano da vida familiar, os avós trazem as tradições e os rituais caraterísticos das gerações que desapareceram e introduzem, junto dos netos, a infância dos seus pais. Os avós têm um amor incondicional, uma disponibilidade continuada e, acima de tudo, uma tranquilidade relacional baseada na experiência, tornando singular o seu relacionamento com os netos.
São eles a presença do passado, memórias vivas da sociedade. São uma referência  para os netos e suporte fundamental para os filhos. Do seu exemplo de percurso de vida advém a calma e a serenidade – tão preciosas para as crianças e jovens numa sociedade em tal inquietude e rebuliço. Os avós são o mais das vezes educadores por prazer, por gosto, mais do que por obrigação.
Se a sociedade necessita dos avós, os avós precisam de que a sociedade os aceite nas suas limitações e os respeite nas suas restrições, assim como lhes proporcione qualidade e dignidade de vida, sobretudo quando a pobreza, a exclusão ou o esquecimento dos familiares lhes bate à porta.
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A escolha do dia 26 de julho para a celebração do Dia dos Avós baseia-se no facto de este ser o dia de Santa Ana e de São Joaquim, pais de Maria e avós de Jesus Cristo, segundo um antiga tradição, que remonta ao século II.
O culto de Santa Ana existia no Oriente já no século VI e estendeu-se ao Ocidente no século X, ficando a celebrar-se a sua memória festiva a 26 de julho.
Mais recentemente, foi introduzido o culto de São Joaquim. A data da festa de São Joaquim sofreu várias alterações ao longo dos tempos. Inicialmente era celebrada no dia 20 de março, associada à de  São José, tendo sido depois transferida para o dia 16 de agosto, para lhe associar o triunfo e glória da filha na celebração da Assunção, no dia precedente. Em 1879, o papa Leão XIII, cujo nome de batismo era Gioacchino (versão italiana de Joaquim), estendeu sua festa a toda a Igreja. Finalmente, no terceiro quartel do século XX, o Papa Paulo VI associou num único dia, 26 de julho, a celebração dos pais de Maria Santíssima.
Em 1584, por decreto do papa Gregório VIII, o casal foi considerado santo pela vida casta e por serem avós de Cristo; e São Joaquim e Santa Ana tornaram-se os padroeiros dos avôs e das avós.
De acordo o que diz a tradição, o casal Ana e Joaquim não podia ter filhos, o que era considerado uma maldição e, segundo o estabelecido em Israel, dava ao marido o direito de ter filhos com outras mulheres.
Ana e Joaquim viviam em Nazaré e sempre rezavam pedindo ao Senhor que lhes desse o dom de uma criança.
Ao retirar-se para o deserto para orar e fazer penitências, Joaquim recebeu a visita de um anjo que lhe disse para voltar para casa, pois as suas preces tinham sido atendidas e Ana ficaria grávida. Apesar da idade avançada do casal, tiveram a graça de uma menina abençoada a quem puseram o nome de Maria.
Devido à sua história singular, Santa Ana é ainda considerada a padroeira das mulheres grávidas e dos casais que desejam ter filhos.
Tendo Ana morrido quando Maria tinha apenas três anos, a menina acabou por ser entregue aos cuidados do Templo de Jerusalém. Cresceu no conhecimento e amor a Deus e foi por Ele a escolhida para ser mãe de seu filho Jesus Cristo, de quem José se tornou pai legal e protetor, pelo casamento com Maria.
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Num sermão da festividade do Nascimento da Bem-aventurada Virgem Maria, no século VIII, São João Damasceno assegura que “estava determinado que a Virgem Mãe de Deus iria nascer de Ana”. E justifica todo o percurso conducente ao nascimento de Maria, com suas agruras e felicidades.
Assim, “a natureza não ousou antecipar o germe da graça, mas permaneceu sem dar o próprio fruto até que a graça produzisse o seu. De facto, convinha que nascesse aquela primogénita de quem havia de nascer o primogénito de toda a criação, no qual todas as coisas têm a sua consistência (cf. Cl 1,17)”.
E o santo pregador irrompe em vivencial retórica de louvor, ação de graças e parabéns:
“Ó casal feliz, Joaquim e Ana! A vós toda a criação se sente devedora e agradecida. Com efeito, foi por vosso intermédio que a criatura ofereceu ao Criador o mais valioso de todos os dons, isto é, a mãe pura, a única que era digna do Criador.
“Alegra-te, Ana estéril, que nunca foste mãe, exulta e regozija-te, tu que nunca deste à luz (Is 54,1). Rejubila, Joaquim, porque de tua filha nasceu para nós um menino, foi-nos dado um filho; o nome que lhe foi dado é Anjo do grande conselho, salvação do mundo inteiro, Deus forte (Cf. Is 9,5). Este menino é Deus.”.
E, tal como a Virgem Maria será proclamada bem-aventurada por todas as gerações, também o casal seu progenitor será conhecido pelo seu fruto (cf Mt 7,16), a pérola da virgindade, a Mãe de Deus, a rainha dos anjos:
“Ó casal feliz, Joaquim e Ana, sem qualquer mancha! Sereis conhecidos pelo fruto de vossas entranhas, como disse o Senhor certa vez: Vós os conhecereis pelos seus frutos (Mt 7,16). Estabelecestes o vosso modo de viver da maneira mais agradável a Deus e digno daquela que de vós nasceu. Na vossa casta e santa convivência educastes a pérola da virgindade, aquela que havia de ser virgem antes do parto, virgem no parto e continuaria virgem depois do parto; aquela que, de maneira única, conservaria sempre a virgindade, tanto em seu corpo como em seu coração.
“Ó castíssimo casal, Joaquim e Ana! Conservando a castidade prescrita pela lei natural, alcançastes de Deus aquilo que supera a natureza: gerastes para o mundo a mãe de Deus, que foi mãe sem a participação de homem algum. Levando, ao longo de vossa existência, uma vida santa e piedosa, gerastes uma filha que é superior aos anjos e agora se tornou a rainha dos anjos.”.
Depois, surgem as loas à santíssima virgem, filha de Ana e de Joaquim:
“Ó formosíssima e dulcíssima donzela! Ó filha de Adão e Mãe de Deus! Felizes o pai e a mãe que te geraram! Felizes os braços que te carregaram e os lábios que te beijaram castamente, ou seja, unicamente os lábios de teus pais, para que sempre e em tudo conservasses a perfeita virgindade!”. 
Por fim, lança o estímulo e o desafio a todas as almas crentes e a todo o povo fiel para que exultem de alegria e se regozijem pelo dom da vida e da salvação em Cristo por Maria:
Aclamai o Senhor Deus, ó terra inteira, alegrai-vos, exultai e cantai salmos (cf. Sl 97,4-5). Levantai vossa voz; clamai e não tenhais medo.
  Referências
Bíblia Sagrada – MEL EDITORES – Estarreja, 2012;
Leite, J.; Coelho, A. (2005). Santos de Todos os Dias. Vol. de julho. Matosinhos: Quid novi;
Sacra Congregatio pro Cultu Divino (1989). Liturgia das Horas, III. Coimbra: Gráfica de Coimbra;

Nova Bíblia dos Capuchinhos – Difusora Bíblica – Lisboa/Fátima, 1998