– O
académico ao serviço dos mais pobres e
marginalizados –
Passa, neste ano de 2014, o
cinquentenário da morte do Padre Abel Varzim, cuja hipótese de canonização o
patriarca de Lisboa Dom Manuel Clemente afirmou ver com bons olhos (o que é insuficiente!).
Nesta circunstância, para recordar e estudar a obra e o pensamento desta grande figura da Igreja e da Sociedade
Portuguesa, o Forum Abel Varzim
programou para o decurso do presente ano um conjunto de iniciativas, em
parceria com a LOC/MTC – Liga Operária
Católica/Movimento de Trabalhadores Cristãos, e o CSCRAV – Centro Social Cultural e Recreativo Abel Varzim. São
instituições ligadas ao pensamento político, social e cristão do homenageado
enquanto lutador pela melhoria de condições de vida dos portugueses, em
especial dos trabalhadores, nomeadamente operários e pessoas do campo – luta
que tentou, primeiro, dentro do regime e, depois, apesar do regime e caprichos sistémicos.
Até ao momento, já decorreram em Lisboa e Braga ações
evocativas desta personalidade emblemática, cujo pensamento merece ser
aprofundado e divulgado e cuja obra constitui exemplo de ação para muitos.
Lisboa honrou Abel Varzim com o lançamento da 3.ª
edição do seu livro Procissão dos Passos
e com solene celebração eucarística presidida pelo patriarca de Lisboa, Dom
Manuel Clemente, na Igreja da Encarnação, a 16 de março; com uma conferência
sobre “O
Pensamento e Ação Política do Padre Abel Varzim”, deputado à
Assembleia Nacional na II Legislatura de 1938/42, e sobre a vocação
política do Cristão, no Auditório da Assembleia da República, a 20 de maio; e com
a Apresentação do livro Procissão dos Passos e
palestra pelo Prof. Dr. Paulo Fontes, da UCP, no Auditório da Feira do Livro, a
4 de junho. Braga, por seu turno, promoveu uma conferência sobre o “Pensamento
e ação do Padre Abel Varzim no Mundo Laboral”, no Auditório de S.
Frutuoso, a 28 de junho.
Estão
ainda previstas as seguintes iniciativas: em Cristelo (Barcelos), sua terra
natal, a celebração
da sua visão dos outros, concretizada no “Centro Social, Cultural e
Recreativo Abel Varzim”, a 30 de agosto; em
Lisboa, a 22 de outubro, uma conferência sobre Tráfico Humano com referência à ação do Padre Abel Varzim, no
Anfiteatro de Santa Catarina – Calçada do Combro; e, finalmente, a 16 de novembro, em Cristelo,
conferência e Missa com a presença de Dom Manuel da Silva Martins, Bispo de
Emérito de Setúbal.
***
Abel
Varzim da Cunha e Silva nasceu, a 29 de abril de 1902, em Cristelo, do concelho
de Barcelos, da arquidiocese de Braga, filho de Adelino da Costa e Silva e de
Adelaide Varzim da Cunha e Silva, de família da classe média rural.
Ingressou
na escola onde a mãe era professora, tendo concluído a “instrução primária”,
com o exame da quarta classe, em julho de 1912, com a idade de dez anos.
Aspirando
ao sacerdócio, ingressou no liceu da Póvoa de Varzim, porque o edifício do
Seminário Menor em Braga, tinha sido ocupado militarmente em 1911. Ao terminar
o liceu, em 1916, passou a frequentar o Seminário Menor, entretanto restituído
à Igreja, onde concluiu então os estudos preparatórios. Em 1921, entrou para o Seminário Conciliar daquela
cidade, onde se formou em Filosofia e Teologia. Ordenado sacerdote em Braga,
com 23 apenas anos de idade, a 29 de junho de 1925, celebrou “Missa Nova”, a 3
de julho de 1925, na Póvoa de Varzim.
Correspondendo ao lancinante pedido do Bispo de
Beja, Dom José do Patrocínio Dias, o prelado Bracarense, arcebispo Dom Manuel
Vieira de Matos, cede o neossacerdote à Diocese de Beja, que foi colocado no
Seminário Menor de Serpa como professor e prefeito, desde a sua
inauguração em 21 de novembro de 1925. Ali lecionou durante cinco anos e
aplicou o seu dinamismo, tendo apoiado, inclusivamente, a iniciativa da Equipa
Educativa do Seminário, na fundação do agrupamento de escuteiros n.º 38 (Beato
Nuno Álvares Pereira) do CNS [Corpo Nacional de Scouts – atual Corpo
Nacional de Escutas, CNE], do qual foi nomeado Chefe.
Após esta
profícua estadia em Serpa, passou a frequentar, a partir de 1930,
a Universidade de Lovaina, na Bélgica, o que lhe rasgou novas perspetivas
e abriu mais largos horizontes, habilitando-o a melhor defesa e promoção da
justiça social.
Quatro
anos depois, em 23 de abril de 1934, doutorava-se em Ciências Políticas e
Sociais. Para a tese escolheu o tema Boerenbond
[Liga de Agricultores], a que deu o título de Le Boerenbond Belge, e em que procede ao estudo e avaliação daquela
estrutura agrária católica da Bélgica, virada para os candentes problemas do
mundo rural, numa visão simultaneamente corporativa e cooperativa. A tese foi
editada pela Casa ‘DESCLÉE DE BROUWER ET Cie’, de Paris, em 1934, e impressa na
sua casa de Bruges, na Bélgica.
Aproveitando
a estadia em Lovaina para complementar a sua formação, participou em inúmeros
Congressos e Semanas Sociais, aprofundou o estudo das encíclicas sociais
de Leão XIII e Pio XI, tendo também privado com entidades tão
diversas, como Jacques Maritain e Joseph Cardijn, fundador da JOC
(Juventude Operária Católica) e com Hergé, autor do “Tintim”, etc.
Desta sua
estadia formante resultou o reforço do seu interesse pelos temas sociais, problemática
que marcou indelevelmente toda a sua ação futura e recheou pioneiramente a
página do devir eclesial português.
Regressado
a Portugal, em parceria com o Padre Manuel Rocha, redigiu os Estatutos da ACP (Ação
Católica Portuguesa), pugnando para que esta organização eclesial fosse
constituída por organismos especializados, de jovens e adultos, de
agricultores, operários, universitários, etc. – documento que, mau grado a verrinosa
oposição do Estado, foi aprovado pela Santa Sé.
Em 1934,
é convidado pelo seu companheiro de escola primária e de seminário, Padre Lopes
da Cruz, o responsável em Lisboa pela redação do diário Novidades e da revista Renascença
e orientador da campanha para a criação da Rádio Renascença, para com ele se
dedicar a estas tarefas, sendo assim um dos fundadores desta estação emissora, que
iniciou as suas emissões regulares em janeiro de 1937.
Esteve
também na fundação da Liga Operária Católica, organismo especializado da ACP
criado oficialmente em 30 de junho de 1935 e cuja atividade teve início em
1936, e do qual foi Assistente Geral até 1948.
Dedicado em
pleno, dentro dos condicionalismos existentes, à defesa dos trabalhadores e de
todos os desprotegidos, de 1939 a 1948, dirigiu o Secretariado Económico-Social
da Ação Católica Portuguesa (que tinha por fim exercer atividades sociais), onde atendia, durante horas seguidas, as pessoas
que a ele recorriam e procurava resolver casos de desemprego e de falta de
realização humana e social.
Foi o
grande impulsionador do jornal O
Trabalhador, a que se dedicou, depois, de alma e coração. Este jornal dos
Organismos Operários da Ação Católica viria a ser suspenso por comunicação
verbal dos Serviços de Censura ao
Chefe da Redação, Manuel Alpiarça, em 9 de julho de 1948, quando este ali se
deslocou em busca do “original visado” por aquela entidade, depois de ter
aguardado longamente pelo mesmo. Esta suspensão ocorreu, goradas as tentativas
que a União Nacional empreendeu para
o subornar e/ou “domesticar”. Durante a sua passagem pela Ação Católica,
desenvolveu uma intensa atividade, com destaque para a defesa e promoção da
justiça social.
Quando do
seu regresso a Portugal, profundamente interessado pelos problemas sociais e
consciente do atraso estrutural em que o país se encontrava, acolheu como boa a
solução, imposta por Salazar, de um Estado Unitário Corporativo, pelo que
aceitou o Estatuto do Trabalho Nacional.
E, em representação da doutrina da Igreja,
foi deputado à Assembleia Nacional, na legislatura de 1938 a 1942, ficando
célebre um Aviso-Prévio que ali
apresentou em 17 de fevereiro de 1939 sobre os Sindicatos Nacionais, em
que criticava certos aspetos da organização sindical corporativa, onde
mencionava a ação do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, com a sua visível
ineficácia em muitos aspetos.
A sua
passagem pela Assembleia Nacional, não renovada pela hostilidade governamental
e parlamentar de que foi objeto, ficou ainda marcada pela intervenção proferida
no dia 6 de fevereiro de 1941, “manifestando a sua discordância” relativamente ao
teor do Decreto-Lei n.º 31.107, que regulamentava as condições económicas do
casamento dos militares em serviço.
Cedo,
contudo, verificou que estava equivocado e que o regime do Estado Novo não
respondia aos problemas que afligiam os trabalhadores e o comum dos
portugueses. Os ataques e ameaças que então enfrentou, afastaram-no definitivamente
das ideias do regime vigente.
Começou
então a conhecer os amargos caminhos da perseguição política (e não só), ao
mesmo tempo que realizava com forte empenho ações de formação para
trabalhadores e estudantes universitários, naquilo a que hoje chamaríamos
“formação para a cidadania”.
Foi um
homem que não parou em franca e diversificada atividade, com um denominador
comum – o social. Assim, foi: professor do Instituto de Serviço Social –
1938-48 – (lugar que deixou, sob
a ameaça de a escola cessar de receber o subsídio do Governo, caso não saísse); assistente
do Centro de Estudos de Ação Social para Universitários (1941-45); impulsionador
das primeiras Semanas Sociais Portuguesas; mentor da Cooperativa Popular de
Portugal, fundada em 1935 e extinta em 1972; e responsável pela realização de
notáveis iniciativas, como a Peregrinação Operária a Fátima, em 1943, e o
Congresso dos Homens Católicos, em 1950.
Como
jornalista, chefiou a Redação da revista Lúmen
[para o clero] e colaborou em vários órgãos de comunicação social, entre os
quais o Novidades, a Rádio Renascença
(Revista e Rádio), Jornal de Notícias,
Comércio do Porto, Correio do Minho, Jornal de Barcelos, Boletim
da Ação Católica Portuguesa, bem como os periódicos dos Movimentos
Operários da ACP.
Afastado
das suas responsabilidades na ACP – e já sob vigilância da polícia política
(PIDE) – foi nomeado, em 1948, pároco da Freguesia de Nossa Senhora da Encarnação,
no Chiado, em Lisboa, que reorganizou e onde criou a “Casa de Trabalho”, o
Posto Médico, Sopa dos Pobres… Na paróquia realizou acurada e notável obra na
luta pelos mais desfavorecidos e pela recuperação e reintegração social das
prostitutas do Bairro Alto, luta que estendeu a outras zonas da cidade lisboeta
e, ainda, ao Porto, tornando-se fundador e assistente de Centros de Recuperação
– Instituto de Sant’ Ana, na Q.ta do Bosque (Amadora); e no
Porto [Casa de N. Sra. Rainha da Paz, na R. do Bonfim], bem como na Liga
Nacional Contra a Prostituição (1954-64).
Em 1957, cansado e doente, volta, por aconselhamento médico,
para a terra natal, onde continua alvo de vigilância da polícia política. Na
sua terra, mau grado as perseguições sofridas, continua a ação tenaz em prol do
desenvolvimento e solidariedade, tendo promovido a criação da Sociedade Avícola
do Minho (SAMI), uma sociedade cooperativa que se propunha o desenvolvimento
económico da região.
O seu amor às classes trabalhadoras, nomeadamente os
operários, e o conhecimento que possuía dos seus problemas e aspirações fizeram
dele fundador, em Portugal, e inesquecível assistente da Liga Operária
Católica, cuja atividade veio também a ser reprimida.
Viria este
promotor do cooperativismo e do associativismo a falecer, no Porto, a 20 de
Agosto de 1964.
***
O padre Abel
Varzim desempenhou um papel fundamental no movimento operário católico e, além
da atividade persistente na defesa da causa, foi uma voz bem clara e destemida
em prol dos trabalhadores e dos mais frágeis nos diversos escritos que fez ao
longo da vida e nas suas diversificadas atividades. Essa defesa foi expressa não
só na Comunicação Social, como no jornal O
Trabalhador, mas também de viva voz em palestras e conferências, nos
discursos na Assembleia Nacional e mesmo ante o Presidente do Conselho de então,
António de Oliveira Salazar, com quem se encontrou várias vezes.
Abel Varzim,
o doutor dos pobres, que dava tudo o que tinha aos outros e lia o Evangelho a
partir das situações concretas dos pobres e atribulados (segundo a metodologia
do ver, julgar e agir), exprimia um pensamento desalinhado do regime, e até
contrário, e não hesitou em pressionar o Cardeal Patriarca de então, Dom
Manuel Gonçalves Cerejeira. Segundo o atual Patriarca, em algumas
situações, Cerejeira, acabou por encobrir as atividades do sacerdote, porque
considerava que ele era a chamada “reserva da Igreja”, caso a ditadura tivesse
um fim à vista (que opção tão ingénua e tacanha, com assinalável falta de ousadia!).
Era a esperança de muitos portugueses no pós-guerra, que frutificou, a prazo,
como semente de liberdade, em parceria com algumas outras.
Homenageado
em 1994, por ocasião do 30.° Aniversário da sua morte, a Conferência Episcopal
Portuguesa definiu-o então, em nota publicada pelo seu conselho permanente,
como “apóstolo dos trabalhadores, paladino da justiça social em Portugal e
defensor das vítimas das ações contra a dignidade humana”. E o então Presidente
da República, Dr. Mário Soares, condecorou-o, a título póstumo, com a medalha
da Ordem da Liberdade. Das celebrações realizadas nasceu a vontade de criação
do Forum Abel Varzim – Desenvolvimento e
Solidariedade, associação entretanto fundada em 1996 e cujas atividades
desenvolvidas podem ser acompanhadas através do seu boletim Transformar.
Referências
Cerejo, A. (s/d), Abel
Varzim e o seu Tempo, Ed. Fórum Abel Varzim e Multinova
Fórum Abel Varzim (s/d), Abel Varzim – Um Testemunho para Hoje
Varzim, A. (s/d), Abel Varzim: Entre o Ideal o
Possível. Antologia de Textos – 1928 / 1964, Ed. Fórum Abel Varzim e Multinova
http://www.agencia.ecclesia.pt/noticias/nacional/portugaligreja-padre-abel-varzim-50-anos-depois/
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