domingo, 20 de julho de 2014

No cinquentenário da morte do padre Abel Varzim

 – O académico ao serviço dos mais pobres e marginalizados

Passa, neste ano de 2014, o cinquentenário da morte do Padre Abel Varzim, cuja hipótese de canonização o patriarca de Lisboa Dom Manuel Clemente afirmou ver com bons olhos (o que é insuficiente!). Nesta circunstância, para recordar e estudar a obra e o pensamento desta grande figura da Igreja e da Sociedade Portuguesa, o Forum Abel Varzim programou para o decurso do presente ano um conjunto de iniciativas, em parceria com a LOC/MTC – Liga Operária Católica/Movimento de Trabalhadores Cristãos, e o CSCRAV – Centro Social Cultural e Recreativo Abel Varzim. São instituições ligadas ao pensamento político, social e cristão do homenageado enquanto lutador pela melhoria de condições de vida dos portugueses, em especial dos trabalhadores, nomeadamente operários e pessoas do campo – luta que tentou, primeiro, dentro do regime e, depois, apesar do regime e caprichos sistémicos.
Até ao momento, já decorreram em Lisboa e Braga ações evocativas desta personalidade emblemática, cujo pensamento merece ser aprofundado e divulgado e cuja obra constitui exemplo de ação para muitos.
Lisboa honrou Abel Varzim com o lançamento da 3.ª edição do seu livro Procissão dos Passos e com solene celebração eucarística presidida pelo patriarca de Lisboa, Dom Manuel Clemente, na Igreja da Encarnação, a 16 de março; com uma conferência sobre “O Pensamento e Ação Política do Padre Abel Varzim”, deputado à Assembleia Nacional na II Legislatura de 1938/42, e sobre a vocação política do Cristão, no Auditório da Assembleia da República, a 20 de maio; e com a Apresentação do livro Procissão dos Passos e palestra pelo Prof. Dr. Paulo Fontes, da UCP, no Auditório da Feira do Livro, a 4 de junho. Braga, por seu turno, promoveu uma conferência sobre o “Pensamento e ação do Padre Abel Varzim no Mundo Laboral”, no Auditório de S. Frutuoso, a 28 de junho.
Estão ainda previstas as seguintes iniciativas: em Cristelo (Barcelos), sua terra natal, a celebração da sua visão dos outros, concretizada no “Centro Social, Cultural e Recreativo Abel Varzim”, a 30 de agosto; em Lisboa, a 22 de outubro, uma conferência sobre Tráfico Humano com referência à ação do Padre Abel Varzim, no Anfiteatro de Santa Catarina – Calçada do Combro; e, finalmente, a 16 de novembro, em Cristelo, conferência e Missa com a presença de Dom Manuel da Silva Martins, Bispo de Emérito de Setúbal.
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Abel Varzim da Cunha e Silva nasceu, a 29 de abril de 1902, em Cristelo, do concelho de Barcelos, da arquidiocese de Braga, filho de Adelino da Costa e Silva e de Adelaide Varzim da Cunha e Silva, de família da classe média rural.
Ingressou na escola onde a mãe era professora, tendo concluído a “instrução primária”, com o exame da quarta classe, em julho de 1912, com a idade de dez anos.
Aspirando ao sacerdócio, ingressou no liceu da Póvoa de Varzim, porque o edifício do Seminário Menor em Braga, tinha sido ocupado militarmente em 1911. Ao terminar o liceu, em 1916, passou a frequentar o Seminário Menor, entretanto restituído à Igreja, onde concluiu então os estudos preparatórios. Em 1921, entrou para o Seminário Conciliar daquela cidade, onde se formou em Filosofia e Teologia. Ordenado sacerdote em Braga, com 23 apenas anos de idade, a 29 de junho de 1925, celebrou “Missa Nova”, a 3 de julho de  1925, na Póvoa de Varzim.
Correspondendo ao lancinante pedido do Bispo de Beja, Dom José do Patrocínio Dias, o prelado Bracarense, arcebispo Dom Manuel Vieira de Matos, cede o neossacerdote à Diocese de Beja, que foi colocado no Seminário Menor de Serpa como professor e prefeito, desde a sua inauguração em 21 de novembro de 1925. Ali lecionou durante cinco anos e aplicou o seu dinamismo, tendo apoiado, inclusivamente, a iniciativa da Equipa Educativa do Seminário, na fundação do agrupamento de escuteiros n.º 38 (Beato Nuno Álvares Pereira) do CNS [Corpo Nacional de Scouts – atual Corpo Nacional de Escutas, CNE], do qual foi nomeado Chefe.
Após esta profícua estadia em Serpa, passou a frequentar, a partir de 1930, a Universidade de Lovaina, na Bélgica, o que lhe rasgou novas perspetivas e abriu mais largos horizontes, habilitando-o a melhor defesa e promoção da justiça social.
Quatro anos depois, em 23 de abril de 1934, doutorava-se em Ciências Políticas e Sociais. Para a tese escolheu o tema Boerenbond [Liga de Agricultores], a que deu o título de Le Boerenbond Belge, e em que procede ao estudo e avaliação daquela estrutura agrária católica da Bélgica, virada para os candentes problemas do mundo rural, numa visão simultaneamente corporativa e cooperativa. A tese foi editada pela Casa ‘DESCLÉE DE BROUWER ET Cie’, de Paris, em 1934, e impressa na sua casa de Bruges, na Bélgica.
Aproveitando a estadia em Lovaina para complementar a sua formação, participou em inúmeros Congressos e Semanas Sociais, aprofundou o estudo das encíclicas sociais de Leão XIII e Pio XI, tendo também privado com entidades tão diversas, como Jacques Maritain e Joseph Cardijn, fundador da JOC (Juventude Operária Católica) e com Hergé, autor do “Tintim”, etc.
Desta sua estadia formante resultou o reforço do seu interesse pelos temas sociais, problemática que marcou indelevelmente toda a sua ação futura e recheou pioneiramente a página do devir eclesial português.
Regressado a Portugal, em parceria com o Padre Manuel Rocha, redigiu os Estatutos da ACP (Ação Católica Portuguesa), pugnando para que esta organização eclesial fosse constituída por organismos especializados, de jovens e adultos, de agricultores, operários, universitários, etc. – documento que, mau grado a verrinosa oposição do Estado, foi aprovado pela Santa Sé.
Em 1934, é convidado pelo seu companheiro de escola primária e de seminário, Padre Lopes da Cruz, o responsável em Lisboa pela redação do diário Novidades e da revista Renascença e orientador da campanha para a criação da Rádio Renascença, para com ele se dedicar a estas tarefas, sendo assim um dos fundadores desta estação emissora, que iniciou as suas emissões regulares em janeiro de 1937.
Esteve também na fundação da Liga Operária Católica, organismo especializado da ACP criado oficialmente em 30 de junho de 1935 e cuja atividade teve início em 1936, e do qual foi Assistente Geral até 1948.
Dedicado em pleno, dentro dos condicionalismos existentes, à defesa dos trabalhadores e de todos os desprotegidos, de 1939 a 1948, dirigiu o Secretariado Económico-Social da Ação Católica Portuguesa (que tinha por fim exercer atividades sociais), onde atendia, durante horas seguidas, as pessoas que a ele recorriam e procurava resolver casos de desemprego e de falta de realização humana e social.
Foi o grande impulsionador do jornal O Trabalhador, a que se dedicou, depois, de alma e coração. Este jornal dos Organismos Operários da Ação Católica viria a ser suspenso por comunicação verbal dos Serviços de Censura ao Chefe da Redação, Manuel Alpiarça, em 9 de julho de 1948, quando este ali se deslocou em busca do “original visado” por aquela entidade, depois de ter aguardado longamente pelo mesmo. Esta suspensão ocorreu, goradas as tentativas que a União Nacional empreendeu para o subornar e/ou “domesticar”. Durante a sua passagem pela Ação Católica, desenvolveu uma intensa atividade, com destaque para a defesa e promoção da justiça social.
Quando do seu regresso a Portugal, profundamente interessado pelos problemas sociais e consciente do atraso estrutural em que o país se encontrava, acolheu como boa a solução, imposta por Salazar, de um Estado Unitário Corporativo, pelo que aceitou o Estatuto do Trabalho Nacional. E, em representação da doutrina da Igreja, foi deputado à Assembleia Nacional, na legislatura de 1938 a 1942, ficando célebre um Aviso-Prévio que ali apresentou em 17 de fevereiro de 1939 sobre os Sindicatos Nacionais, em que criticava certos aspetos da organização sindical corporativa, onde mencionava a ação do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, com a sua visível ineficácia em muitos aspetos.
A sua passagem pela Assembleia Nacional, não renovada pela hostilidade governamental e parlamentar de que foi objeto, ficou ainda marcada pela intervenção proferida no dia 6 de fevereiro de 1941, “manifestando a sua discordância” relativamente ao teor do Decreto-Lei n.º 31.107, que regulamentava as condições económicas do casamento dos militares em serviço.
Cedo, contudo, verificou que estava equivocado e que o regime do Estado Novo não respondia aos problemas que afligiam os trabalhadores e o comum dos portugueses. Os ataques e ameaças que então enfrentou, afastaram-no definitivamente das ideias do regime vigente.
Começou então a conhecer os amargos caminhos da perseguição política (e não só), ao mesmo tempo que realizava com forte empenho ações de formação para trabalhadores e estudantes universitários, naquilo a que hoje chamaríamos “formação para a cidadania”.
Foi um homem que não parou em franca e diversificada atividade, com um denominador comum – o social. Assim, foi: professor do Instituto de Serviço Social – 1938-48 – (lugar que deixou, sob a ameaça de a escola cessar de receber o subsídio do Governo, caso não saísse); assistente do Centro de Estudos de Ação Social para Universitários (1941-45); impulsionador das primeiras Semanas Sociais Portuguesas; mentor da Cooperativa Popular de Portugal, fundada em 1935 e extinta em 1972; e responsável pela realização de notáveis iniciativas, como a Peregrinação Operária a Fátima, em 1943, e o Congresso dos Homens Católicos, em 1950.
Como jornalista, chefiou a Redação da revista Lúmen [para o clero] e colaborou em vários órgãos de comunicação social, entre os quais o Novidades, a Rádio Renascença (Revista e Rádio), Jornal de Notícias, Comércio do Porto, Correio do Minho, Jornal de Barcelos, Boletim da Ação Católica Portuguesa, bem como os periódicos dos Movimentos Operários da ACP.
Afastado das suas responsabilidades na ACP – e já sob vigilância da polícia política (PIDE) – foi nomeado, em 1948, pároco da Freguesia de Nossa Senhora da Encarnação, no Chiado, em Lisboa, que reorganizou e onde criou a “Casa de Trabalho”, o Posto Médico, Sopa dos Pobres… Na paróquia realizou acurada e notável obra na luta pelos mais desfavorecidos e pela recuperação e reintegração social das prostitutas do Bairro Alto, luta que estendeu a outras zonas da cidade lisboeta e, ainda, ao Porto, tornando-se fundador e assistente de Centros de Recuperação – Instituto de Sant’ Ana, na Q.ta do Bosque (Amadora); e no Porto [Casa de N. Sra. Rainha da Paz, na R. do Bonfim], bem como na Liga Nacional Contra a Prostituição (1954-64).
Em 1957, cansado e doente, volta, por aconselhamento médico, para a terra natal, onde continua alvo de vigilância da polícia política. Na sua terra, mau grado as perseguições sofridas, continua a ação tenaz em prol do desenvolvimento e solidariedade, tendo promovido a criação da Sociedade Avícola do Minho (SAMI), uma sociedade cooperativa que se propunha o desenvolvimento económico da região.
O seu amor às classes trabalhadoras, nomeadamente os operários, e o conhecimento que possuía dos seus problemas e aspirações fizeram dele fundador, em Portugal, e inesquecível assistente da Liga Operária Católica, cuja atividade veio também a ser reprimida.
Viria este promotor do cooperativismo e do associativismo a falecer, no Porto, a 20 de Agosto de 1964.
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O padre Abel Varzim desempenhou um papel fundamental no movimento operário católico e, além da atividade persistente na defesa da causa, foi uma voz bem clara e destemida em prol dos trabalhadores e dos mais frágeis nos diversos escritos que fez ao longo da vida e nas suas diversificadas atividades. Essa defesa foi expressa não só na Comunicação Social, como no jornal O Trabalhador, mas também de viva voz em palestras e conferências, nos discursos na Assembleia Nacional e mesmo ante o Presidente do Conselho de então, António de Oliveira Salazar, com quem se encontrou várias vezes.
Abel Varzim, o doutor dos pobres, que dava tudo o que tinha aos outros e lia o Evangelho a partir das situações concretas dos pobres e atribulados (segundo a metodologia do ver, julgar e agir), exprimia um pensamento desalinhado do regime, e até contrário, e não hesitou em pressionar o Cardeal Patriarca de então, Dom Manuel Gonçalves Cerejeira. Segundo o atual Patriarca, em algumas situações, Cerejeira, acabou por encobrir as atividades do sacerdote, porque considerava que ele era a chamada “reserva da Igreja”, caso a ditadura tivesse um fim à vista (que opção tão ingénua e tacanha, com assinalável falta de ousadia!). Era a esperança de muitos portugueses no pós-guerra, que frutificou, a prazo, como semente de liberdade, em parceria com algumas outras.
Homenageado em 1994, por ocasião do 30.° Aniversário da sua morte, a Conferência Episcopal Portuguesa definiu-o então, em nota publicada pelo seu conselho permanente, como “apóstolo dos trabalhadores, paladino da justiça social em Portugal e defensor das vítimas das ações contra a dignidade humana”. E o então Presidente da República, Dr. Mário Soares, condecorou-o, a título póstumo, com a medalha da Ordem da Liberdade. Das celebrações realizadas nasceu a vontade de criação do Forum Abel Varzim – Desenvolvimento e Solidariedade, associação entretanto fundada em 1996 e cujas atividades desenvolvidas podem ser acompanhadas através do seu boletim Transformar.

Referências
Cerejo, A. (s/d), Abel Varzim e o seu Tempo, Ed. Fórum Abel Varzim e Multinova
Fórum Abel Varzim (s/d), Abel Varzim – Um Testemunho para Hoje
Varzim, A. (s/d), Abel Varzim: Entre o Ideal o Possível. Antologia de Textos – 1928 / 1964, Ed. Fórum Abel Varzim e Multinova
http://www.agencia.ecclesia.pt/noticias/nacional/portugaligreja-padre-abel-varzim-50-anos-depois/

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