A
sabedoria popular, acumulada através da pluralidade dos séculos, estabelece que
“em tempo de guerra não se limpam armas”. Não obstante, alguns líderes
políticos, quando assumem o topo do seu feudo, ou como tal por eles
considerado, lembram-se de moralizar o Estado ou reformar o partido.
Todos
nos lembramos da obra pseudorreformadora do sistema partidário (?) de Fernando
Nogueira quando o congresso de 1995 o fez Presidente do PSD ou da lei da
limitação dos mandatos dos órgãos executivos no Estado por Marques Mendes,
passados dez anos, também novel presidente do PSD, de cuja eficácia – essa,
sim, bem limitada – testemunharam os tribunais nas pretéritas eleições autárquicas.
O
absurdo circunstancial acontece impertinentemente com a propositura, à séria ou
meramente cirúrgica, de revisão constitucional em tempo de crise. Passos
Coelho, na conjuntura que o levaria ao poder executivo do Estado, criada pela
demissão do governo minoritário de José Sócrates, induzida por discursos de
Cavaco, e consequente elaboração e assinatura tripartidária de programa de
ajustamento económico-financeiro do Estado Português face ao megalitismo da
dívida soberana, encomenda ao monárquico Paulo Teixeira Pinto um estudo de
revisão de uma republicana Constituição, alegadamente com vista à apresentação
de projeto consonante a apresentar à Assembleia da República, que passaria a
ter poderes constituintes, nos termos do artigo 284.º e a exercer nos termos
dos artigos 285.º e 286.º da CRP. O então candidato e depois feito
Primeiro-Ministro, que bem sabia que a revisão não era necessária para tirar
Portugal da crise, como veio a reconhecer mais tarde, não se centrou na
exigência de governar com o mínimo de esforço para evitar os sacrifícios da
população, sobretudo dos que sempre são obrigados a pagar os custos das crises
e dos desmandos de quem governa com despudor ou de quem, gerindo danosamente a
arquitetura financeira do sistema induz a instabilidade política, cava o
empobrecimento através das medidas de enfermiça austeridade e, a assobiar para
o lado, exige que se expie o pecado de “viver acima das possibilidades” –
estilo que se imputa à classe média, a culpada de todos os males que acontecem
nas sociedades modernas, sobretudo a fração que serve no dia a dia a
administração pública. E o Chefe do Governo, que não se importava de governar
com o FMI, quando era candidato a eleições legislativas, depois até quis ir
além da troika e até proferiu a notável imprecação “que se lixem as eleições!”.
***
Agora,
que Portugal ficou sem troika, mas continua com a rédea, o supergovernante e bom
aluno da Europa, da Zona Euro e do Fundo Monetário Internacional – de que
Portugal é contribuinte e não simples devedor – acha que o Tribunal
Constitucional, eleito por si como responsável pela ingovernabilidade do reino
de Aníbal Coelho Portas, deve ser mais escrutinado, repensada a escolha dos
juízes para aquele órgão de soberania, a quem fica atribuída a fiscalização da
constitucionalidade das leis, e, pela voz de Teresa Leal Coelho, determinado o regime
de sanções a aplicar aos juízes que ousem votar contra o pensamento do partido
que os indicou. Esta postura aponta claramente para a necessidade, realizável
ou não, de uma revisão da Constituição, sob pena de o país continuar a ser
impedido de se reformar. O filme não é inédito, porquanto nos “idus” de outubro
de 1987, o PSD de Cavaco Silva conquistou maioria absoluta à custa do argumento
de que lhe fora impossível a reforma do Estado sem maioria parlamentar e sem
revisão da Constituição, que obteve em 1989 e lhe possibilitou a renovação da
maioria absoluta em 1991. E, na sequência da aludida postura da liderança do
PSD, surgiram há pouco tempo duas iniciativas de revisão constitucional,
condenadas à nascença, como se verá a seguir.
***
Uma
iniciativa de revisão constitucional proveio dos deputados do PSD-Madeira
apresentada na Assembleia da República nos termos constitucionais e regimentais.
Efetivamente o art.º 285.º/1 da CRP estabelece que a iniciativa da revisão
compete aos deputados e o n.º 1 do art.º 284.º confere poderes constituintes à
Assembleia da República (e a mais nenhum órgão) decorridos cinco anos (já
ultrapassados desde 2005), ocorridos sobre a data da última revisão, devendo as
alterações, para serem viáveis, obter aprovação por maioria de dois terços dos
deputados em efetividade de funções (art.º 286.º/1), o que exige mais do que a
maioria parlamentar que apoie o governo. Normalmente, tal desiderato
concretiza-se com um acordo de incidência parlamentar constituinte com o maior
partido da oposição, o que não parece suceder de momento, por visível
indisponibilidade do PS, por razões de clarificação intrapartidária e por
óbvias discordâncias quanto ao fulcro da putativa revisão. Com efeito, os
apresentadores do predito projeto de revisão constitucional faziam questão de
estatuir a extinção do Tribunal Constitucional (TC) e a criação de uma secção
de competência específica no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), com funções de
fiscalização da constitucionalidade e da legalidade dos normativos, dando assim
igual cumprimento ao estatuído nos artigos 277.º a 283.º da CRP. Ora, em vez de
o Parlamento optar por admitir o projeto de revisão e abrir a possibilidade de
quaisquer outros serem apresentados no prazo de trinta dias (art.º 285.º/2),
decidiu por larga maioria jugular a viabilidade da iniciativa, tendo os
restantes membros do grupo parlamentar do PSD votado contra o projeto.
É
óbvio que muitos opinam – e bem – que a presumível secção a criar no STJ
cumpriria os mesmos objetivos que o Tribunal Constitucional e retiraria do
órgão fiscalizador a conotação política com que o mesmo é apresentado
recorrentemente, dado que os juízes seriam recrutados por concurso e dentro da
orgânica judiciária. Só que a presumível secção também seria constituída por
cidadãos, que não podem nem devem renunciar à visão política das coisas; e, se
não seriam designados/eleitos no seio de um outro órgão de soberania, embora
por maioria qualificada, não ficariam imunes ao estigma do corporativismo que
frequentemente se aponta ao poder judicial. Por outro lado, além da crítica
política possível como até agora, o controlo que ainda existe fora do sistema
judiciário, a montante da parte do Parlamento pela via da designação/eleição,
ficaria circunscrito ao interior do aparelho judiciário, que usualmente alija
as culpas dos erros da justiça para os “políticos”, como se eles não fossem
também detentores de poder político nos termos constitucionais. É certo que os
juízes designados pelo Parlamento por maioria de dois terços, em vez dos dez,
poderiam ser menos, por exemplo seis; e o Presidente da República poderia
designar alguns, por exemplo quatro (o Presidente tem uma legitimidade similar
à da Assembleia da República, já que um e outro órgão de soberania resultam da
eleição por voto universal, direto e secreto dos cidadãos nacionais e o sistema
é semipresidencial), e os outros três poderiam continuar a ser cooptados pelos
anteriormente designados, perfazendo, na mesma a totalidade de treze. Porém, o
TC foi opção consensual dos revisores de 1982, na sucessão, nesta matéria, dos
poderes do Conselho da Revolução, a quem estava atribuída a fiscalização da
constitucionalidade e no que era assessorado tecnicamente pela Comissão
Constitucional (vd texto original da CRP, 1976).
***
Entretanto,
o PPM, pela voz de Paulo Estêvão, deputado à Assembleia Legislativa Regional
dos Açores, apresentou ao plenário daquele órgão legislativo da Região Autónoma
um projeto de resolução que recomendava ao Governo da República que promovesse
as alterações constitucionais necessárias para que o povo português se
pronunciasse, por referendo, sobre a forma de governo (republicana ou
monárquica), do Estado Português. O projeto de resolução foi liminarmente
rejeitado por aquele órgão.
O
argumento principal assenta no alegado facto de o regime republicano haver
atualmente mergulhado o país numa “crise social, política e económica
colossal”. E aponta os desvarios políticos da I República, com a instabilidade
parlamentar, presidencial e governativa, fonte da ruína económica e financeira
e do mal-estar social. E acrescenta o facto de a República ter sido implantada,
não por vontade popular, mas por “um grupo de revolucionários – militares
revoltosos, apoiados por civis enquadrados em sociedades secretas” e o de ter
reduzido o universo dos cidadãos com direito a voto, impedindo o das mulheres (cf
Duarte Branquinho, in O Diabo, de
01-07-2014). Aponta mesmo irrazoavelmnente o facto de o regime republicano, com
a adesão à UE, haver perdido a soberania para o estrangeiro, sendo de lá que
vem o esquisso orçamental interno, o cariz da nossa fiscalidade, a orientação
da política social, o figurino da administração pública, o mapa autárquico, a
gestão do mar e a política externa. A restauração da monarquia significaria,
pelos vistos, a restauração da independência.
Ora
o susodito projeto ignora a guerra civil que emoldurou a monarquia
constitucional e os sucessivos atos revolucionários e revolucionários, com
o rotativismo partidário, a alternância entre a Constituição de 1822 e a Carta
Constitucional, o esvaimento financeiro, as ditaduras de Costa Cabal e de João
Franco e o ultimatum britânico (“Contra
os canhões, marchar, marchar!”. Não se cantava assim em A Portuguesa?”, ou o “conselho de regência”, em que efetivamente
quem mandava era Bersford, quando a corte da rainha louca e de seu herdeiro
João VI esteve prófuga no Brasil, que “ipiranguicamente” gritou a independência
sob a égide do herdeiro Dom Pedro IV. Portanto, está visto que a monarquia não
dá lições de resguardo da soberania.
Quanto
a comparações entre repúblicas e monarquias, temos efetivamente repúblicas
democráticas, como Portugal, França, Alemanha, Itália, Estados Unidos; e
repúblicas nada democráticas como a da China, a da Coreia do Norte ou a da
Guiné Equatorial. Vêm as monarquias democráticas, como a espanhola, a britânica
e a belga (que estão na UE), como as monarquias ditatoriais ou absolutas, de
que constituem exemplo a de Portugal até 1822 e a de França até 1789 ou a
imperial pós-revolucionária de Napoleão Bonaparte. E os povos não esquecem a
face democrática (?) do Nazismo, do Fascismo do Franquismo e do Estado Novo! A
República tem vantagens: a representação do Estado e o cúmulo do poder não são
confiados a uma figura ligada a uma dinastia, fruto da condição de nascimento e
ou estrato social de elite; não se confunde território com terreno,
propriedade; e os poderes são limitados no tempo. Porém, apresenta como
desvantagens a entrega do poder de topo e de representação do Estado a uma
figura geralmente impreparada e, pelo menos indiretamente, emergente do
espectro partidário ou, por vezes, das forças armadas. Por outro lado, também a
monarquia se escuda em argumentos favoráveis: o Chefe de Estado é educado para
os negócios do Estado; e facilmente se apresenta como independente do quadro
partidário, gozando habitualmente de uma aura social inquebrantável. Todavia,
os seus poderes, por simbólicos que sejam, são ilimitados no tempo, a não ser
que o soberano julgue conveniente abdicar; a sua legitimidade não resulta do
veredicto popular, nem indiretamente (como no caso do Presidente dos Estados
Unidos ou o da Alemanha) nem por via do sufrágio universal, direto e secreto
(como no caso português e no de França ou na monarquia visigótica medieva, de
feição eletiva), pelo que, em maré de mal-estar generalizado, por incapacidade
de resolução de crise endémica irreversível ou por escândalos familiares, pode
desenhar-se ou a destituição ou o colapso do regime.
De
resto, há Chefes de Estado com poderes consideráveis tanto na monarquia (Bélgica,
Espanha, Japão…) como na república (França, Estados Unidos…). E temos Chefes de
Estado com poucos poderes (meramente formais e simbólicos) em monarquia
(Inglaterra) como em República (Alemanha, Itália…).
Acresce
que se colocaria a questão do horizonte temporal da validade do referendo em
que o povo se pronunciasse pela monarquia. Ou seja, o rei não seria eleito, mas
proviria do núcleo dinástico que se apresentasse com a legitimidade do assento
no trono e a sucessão hereditária seria normal até que se alterassem as
condições políticas e constitucionais. Será que os proponentes do referendo
preveem um referendo periódico de regime, descaraterizando a monarquia que
pretendem, ou intentam impô-la por via popular, quando se sabe que é tão
ambíguo afirmar que o povo não quer politicamente a monarquia, como asserir que
a adora socialmente. São desvantagens que não se colocariam se o povo votasse
sempre pela forma republicana de governo, o que, a acontecer, levantaria suspeitas
de caciquismo republicanista e coação do eleitorado.
***
Quanto
ao projeto açoriano, não colhe o argumento de que o projeto foi apresentado num
órgão regional, sendo a matéria de âmbito nacional, já que deputados açorianos
à Assembleia da República bem poderiam assumir o projeto e levá-lo ao
Parlamento em Lisboa e assim poderia cumprir-se o estipulado constitucionalmente,
nos termos que acima se explanaram.
O
grande óbice é de ordem constitucional dado que a alínea b) do artigo 288.º
impõe no quadro dos limites materiais de revisão constitucional “a forma
republicana de governo”. Pelo que o projeto seria jugulado liminarmente na
Assembleia da República ou, se a assembleia o aprovasse na observância dos
termos constitucionais, o Presidente da República, enquanto garante do
cumprimento da Constituição, devidamente ajuramentado (cf art.º 127.º/3 da
CRP), teria de fazer passar o diploma pelo crivo do Tribunal Constitucional.
A
este respeito, Adelino Maltez, Professor Catedrático do ISCSP, considera que a
nossa Constituição não é incompatível com a existência de um rei, porque a
República é a forma como era conhecido o Estado e não o do conceito positivista
do 5 de Outubro (efetivamente, o aforismo romano que dita “salus Reipublicae lex suprema esto”, a salvação da república – pátria/estado/coletividade
– seja a lei suprema, segundo me é dado saber, aplicava-se à Roma dos “reis”,
dos “cônsules” e dos “imperadores”). Sendo assim, o que “é preciso é que o rei
não esteja contra a forma republicana de governo” e esse, na opinião subtil do
professor, é o erro de muitos monárquicos (vd O Diabo, de 1 de julho, pg 3).
É
efetivamente verdade, segundo G. Canotilho e V. Moreira (Constituição da República Portuguesa – anotada 2.ª ed revista e
ampliada, Coimbra Editora, 1985), o artigo 1.º, ao definir Portugal como “uma
República soberana”, não estabelece a se
a forma republicana de governo. Assim, o termo “república” não significa aqui
nem a forma de regime político (em oposição a monarquia) nem a organização do
Estado (unitário, federal…) nem um tipo específico de Estado (democrático,
laico, confessional, teocrático…). Essas especificações vêm mais adiante:
artigo 288.º, alínea b) e artigos 120.º a 140.º e correlativos, sobre o regime
republicano de governo; artigos 2.º e 109.º, estado de direito democrático;
artigos 3.º e 225.º a 265.º, estado unitário com autonomias e poder local;
artigos 13.º e 43.º, estado não confessional.
Pelo
que, apesar de a república na definição constitucional ser entendida como
coletividade (sociedade ou comunidade) política e o regime republicano não
estar expressamente consagrado nos princípios fundamentais, a incompatibilidade
resulta claramente de muitos princípios e normas constitucionais, como se viu anteriormente,
sobretudo do artigo 288.º, alínea b), que garante “a forma republicana de governo”
contra a revisão constitucional. Nem se vê como um rei iria coerentemente aceitar,
no exercício soberano dos seus poderes, a forma não monárquica de governo, como
por exemplo, a destituição pelo Parlamento ou a declaração de incapacidade de exercício
das funções por parte do TC.
***
Por
fim, há que perguntar se, num momento de consolidação da propalada saída do
programa de resgate, sem programa cautelar, a República Portuguesa não teria
mais que fazer que uma revisão constitucional, mesmo que legítima. Bem penso
que a reforma do Estado, que está por fazer, é viável e necessária sem o
desgaste de energias políticas na tarefa de revisão da lei fundamental. É,
antes, maré de aproveitar a conjuntura para consolidar as contas públicas, não
pela via dos cortes cegos de salários e serviços ou pela do agravamento fiscal
intempestivo e brutal, mas pela via da criação sustentável do emprego, do crescimento
económico (com ou sem intervenção do Estado: porque não, se necessário, como
parece?) e sobretudo com incentivo sério à natalidade e à fixação da população
nas zonas de interior. E para já, a renegociação da dívida, que economistas do
panorama internacional defenderam, partidos e notáveis exigiram e agora o FMI
diz dever ter sido feita antes.
Em
mão de bons governantes não são os instrumentos que que impedem a construção do
futuro ou o cumprimento do desígnio – mas a inteligência, a noção do dever, a
dedicação e o sentido pátrio.
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