quarta-feira, 2 de julho de 2014

Impertinências de revisão constitucional

A sabedoria popular, acumulada através da pluralidade dos séculos, estabelece que “em tempo de guerra não se limpam armas”. Não obstante, alguns líderes políticos, quando assumem o topo do seu feudo, ou como tal por eles considerado, lembram-se de moralizar o Estado ou reformar o partido.
Todos nos lembramos da obra pseudorreformadora do sistema partidário (?) de Fernando Nogueira quando o congresso de 1995 o fez Presidente do PSD ou da lei da limitação dos mandatos dos órgãos executivos no Estado por Marques Mendes, passados dez anos, também novel presidente do PSD, de cuja eficácia – essa, sim, bem limitada – testemunharam os tribunais nas pretéritas eleições autárquicas.
O absurdo circunstancial acontece impertinentemente com a propositura, à séria ou meramente cirúrgica, de revisão constitucional em tempo de crise. Passos Coelho, na conjuntura que o levaria ao poder executivo do Estado, criada pela demissão do governo minoritário de José Sócrates, induzida por discursos de Cavaco, e consequente elaboração e assinatura tripartidária de programa de ajustamento económico-financeiro do Estado Português face ao megalitismo da dívida soberana, encomenda ao monárquico Paulo Teixeira Pinto um estudo de revisão de uma republicana Constituição, alegadamente com vista à apresentação de projeto consonante a apresentar à Assembleia da República, que passaria a ter poderes constituintes, nos termos do artigo 284.º e a exercer nos termos dos artigos 285.º e 286.º da CRP. O então candidato e depois feito Primeiro-Ministro, que bem sabia que a revisão não era necessária para tirar Portugal da crise, como veio a reconhecer mais tarde, não se centrou na exigência de governar com o mínimo de esforço para evitar os sacrifícios da população, sobretudo dos que sempre são obrigados a pagar os custos das crises e dos desmandos de quem governa com despudor ou de quem, gerindo danosamente a arquitetura financeira do sistema induz a instabilidade política, cava o empobrecimento através das medidas de enfermiça austeridade e, a assobiar para o lado, exige que se expie o pecado de “viver acima das possibilidades” – estilo que se imputa à classe média, a culpada de todos os males que acontecem nas sociedades modernas, sobretudo a fração que serve no dia a dia a administração pública. E o Chefe do Governo, que não se importava de governar com o FMI, quando era candidato a eleições legislativas, depois até quis ir além da troika e até proferiu a notável imprecação “que se lixem as eleições!”.
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Agora, que Portugal ficou sem troika, mas continua com a rédea, o supergovernante e bom aluno da Europa, da Zona Euro e do Fundo Monetário Internacional – de que Portugal é contribuinte e não simples devedor – acha que o Tribunal Constitucional, eleito por si como responsável pela ingovernabilidade do reino de Aníbal Coelho Portas, deve ser mais escrutinado, repensada a escolha dos juízes para aquele órgão de soberania, a quem fica atribuída a fiscalização da constitucionalidade das leis, e, pela voz de Teresa Leal Coelho, determinado o regime de sanções a aplicar aos juízes que ousem votar contra o pensamento do partido que os indicou. Esta postura aponta claramente para a necessidade, realizável ou não, de uma revisão da Constituição, sob pena de o país continuar a ser impedido de se reformar. O filme não é inédito, porquanto nos “idus” de outubro de 1987, o PSD de Cavaco Silva conquistou maioria absoluta à custa do argumento de que lhe fora impossível a reforma do Estado sem maioria parlamentar e sem revisão da Constituição, que obteve em 1989 e lhe possibilitou a renovação da maioria absoluta em 1991. E, na sequência da aludida postura da liderança do PSD, surgiram há pouco tempo duas iniciativas de revisão constitucional, condenadas à nascença, como se verá a seguir.
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Uma iniciativa de revisão constitucional proveio dos deputados do PSD-Madeira apresentada na Assembleia da República nos termos constitucionais e regimentais. Efetivamente o art.º 285.º/1 da CRP estabelece que a iniciativa da revisão compete aos deputados e o n.º 1 do art.º 284.º confere poderes constituintes à Assembleia da República (e a mais nenhum órgão) decorridos cinco anos (já ultrapassados desde 2005), ocorridos sobre a data da última revisão, devendo as alterações, para serem viáveis, obter aprovação por maioria de dois terços dos deputados em efetividade de funções (art.º 286.º/1), o que exige mais do que a maioria parlamentar que apoie o governo. Normalmente, tal desiderato concretiza-se com um acordo de incidência parlamentar constituinte com o maior partido da oposição, o que não parece suceder de momento, por visível indisponibilidade do PS, por razões de clarificação intrapartidária e por óbvias discordâncias quanto ao fulcro da putativa revisão. Com efeito, os apresentadores do predito projeto de revisão constitucional faziam questão de estatuir a extinção do Tribunal Constitucional (TC) e a criação de uma secção de competência específica no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), com funções de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade dos normativos, dando assim igual cumprimento ao estatuído nos artigos 277.º a 283.º da CRP. Ora, em vez de o Parlamento optar por admitir o projeto de revisão e abrir a possibilidade de quaisquer outros serem apresentados no prazo de trinta dias (art.º 285.º/2), decidiu por larga maioria jugular a viabilidade da iniciativa, tendo os restantes membros do grupo parlamentar do PSD votado contra o projeto.
É óbvio que muitos opinam – e bem – que a presumível secção a criar no STJ cumpriria os mesmos objetivos que o Tribunal Constitucional e retiraria do órgão fiscalizador a conotação política com que o mesmo é apresentado recorrentemente, dado que os juízes seriam recrutados por concurso e dentro da orgânica judiciária. Só que a presumível secção também seria constituída por cidadãos, que não podem nem devem renunciar à visão política das coisas; e, se não seriam designados/eleitos no seio de um outro órgão de soberania, embora por maioria qualificada, não ficariam imunes ao estigma do corporativismo que frequentemente se aponta ao poder judicial. Por outro lado, além da crítica política possível como até agora, o controlo que ainda existe fora do sistema judiciário, a montante da parte do Parlamento pela via da designação/eleição, ficaria circunscrito ao interior do aparelho judiciário, que usualmente alija as culpas dos erros da justiça para os “políticos”, como se eles não fossem também detentores de poder político nos termos constitucionais. É certo que os juízes designados pelo Parlamento por maioria de dois terços, em vez dos dez, poderiam ser menos, por exemplo seis; e o Presidente da República poderia designar alguns, por exemplo quatro (o Presidente tem uma legitimidade similar à da Assembleia da República, já que um e outro órgão de soberania resultam da eleição por voto universal, direto e secreto dos cidadãos nacionais e o sistema é semipresidencial), e os outros três poderiam continuar a ser cooptados pelos anteriormente designados, perfazendo, na mesma a totalidade de treze. Porém, o TC foi opção consensual dos revisores de 1982, na sucessão, nesta matéria, dos poderes do Conselho da Revolução, a quem estava atribuída a fiscalização da constitucionalidade e no que era assessorado tecnicamente pela Comissão Constitucional (vd texto original da CRP, 1976).
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Entretanto, o PPM, pela voz de Paulo Estêvão, deputado à Assembleia Legislativa Regional dos Açores, apresentou ao plenário daquele órgão legislativo da Região Autónoma um projeto de resolução que recomendava ao Governo da República que promovesse as alterações constitucionais necessárias para que o povo português se pronunciasse, por referendo, sobre a forma de governo (republicana ou monárquica), do Estado Português. O projeto de resolução foi liminarmente rejeitado por aquele órgão.
O argumento principal assenta no alegado facto de o regime republicano haver atualmente mergulhado o país numa “crise social, política e económica colossal”. E aponta os desvarios políticos da I República, com a instabilidade parlamentar, presidencial e governativa, fonte da ruína económica e financeira e do mal-estar social. E acrescenta o facto de a República ter sido implantada, não por vontade popular, mas por “um grupo de revolucionários – militares revoltosos, apoiados por civis enquadrados em sociedades secretas” e o de ter reduzido o universo dos cidadãos com direito a voto, impedindo o das mulheres (cf Duarte Branquinho, in O Diabo, de 01-07-2014). Aponta mesmo irrazoavelmnente o facto de o regime republicano, com a adesão à UE, haver perdido a soberania para o estrangeiro, sendo de lá que vem o esquisso orçamental interno, o cariz da nossa fiscalidade, a orientação da política social, o figurino da administração pública, o mapa autárquico, a gestão do mar e a política externa. A restauração da monarquia significaria, pelos vistos, a restauração da independência.
Ora o susodito projeto ignora a guerra civil que emoldurou a monarquia constitucional e os sucessivos atos revolucionários e revolucionários, com o rotativismo partidário, a alternância entre a Constituição de 1822 e a Carta Constitucional, o esvaimento financeiro, as ditaduras de Costa Cabal e de João Franco e o ultimatum britânico (“Contra os canhões, marchar, marchar!”. Não se cantava assim em A Portuguesa?”, ou o “conselho de regência”, em que efetivamente quem mandava era Bersford, quando a corte da rainha louca e de seu herdeiro João VI esteve prófuga no Brasil, que “ipiranguicamente” gritou a independência sob a égide do herdeiro Dom Pedro IV. Portanto, está visto que a monarquia não dá lições de resguardo da soberania.
Quanto a comparações entre repúblicas e monarquias, temos efetivamente repúblicas democráticas, como Portugal, França, Alemanha, Itália, Estados Unidos; e repúblicas nada democráticas como a da China, a da Coreia do Norte ou a da Guiné Equatorial. Vêm as monarquias democráticas, como a espanhola, a britânica e a belga (que estão na UE), como as monarquias ditatoriais ou absolutas, de que constituem exemplo a de Portugal até 1822 e a de França até 1789 ou a imperial pós-revolucionária de Napoleão Bonaparte. E os povos não esquecem a face democrática (?) do Nazismo, do Fascismo do Franquismo e do Estado Novo! A República tem vantagens: a representação do Estado e o cúmulo do poder não são confiados a uma figura ligada a uma dinastia, fruto da condição de nascimento e ou estrato social de elite; não se confunde território com terreno, propriedade; e os poderes são limitados no tempo. Porém, apresenta como desvantagens a entrega do poder de topo e de representação do Estado a uma figura geralmente impreparada e, pelo menos indiretamente, emergente do espectro partidário ou, por vezes, das forças armadas. Por outro lado, também a monarquia se escuda em argumentos favoráveis: o Chefe de Estado é educado para os negócios do Estado; e facilmente se apresenta como independente do quadro partidário, gozando habitualmente de uma aura social inquebrantável. Todavia, os seus poderes, por simbólicos que sejam, são ilimitados no tempo, a não ser que o soberano julgue conveniente abdicar; a sua legitimidade não resulta do veredicto popular, nem indiretamente (como no caso do Presidente dos Estados Unidos ou o da Alemanha) nem por via do sufrágio universal, direto e secreto (como no caso português e no de França ou na monarquia visigótica medieva, de feição eletiva), pelo que, em maré de mal-estar generalizado, por incapacidade de resolução de crise endémica irreversível ou por escândalos familiares, pode desenhar-se ou a destituição ou o colapso do regime.
De resto, há Chefes de Estado com poderes consideráveis tanto na monarquia (Bélgica, Espanha, Japão…) como na república (França, Estados Unidos…). E temos Chefes de Estado com poucos poderes (meramente formais e simbólicos) em monarquia (Inglaterra) como em República (Alemanha, Itália…).
Acresce que se colocaria a questão do horizonte temporal da validade do referendo em que o povo se pronunciasse pela monarquia. Ou seja, o rei não seria eleito, mas proviria do núcleo dinástico que se apresentasse com a legitimidade do assento no trono e a sucessão hereditária seria normal até que se alterassem as condições políticas e constitucionais. Será que os proponentes do referendo preveem um referendo periódico de regime, descaraterizando a monarquia que pretendem, ou intentam impô-la por via popular, quando se sabe que é tão ambíguo afirmar que o povo não quer politicamente a monarquia, como asserir que a adora socialmente. São desvantagens que não se colocariam se o povo votasse sempre pela forma republicana de governo, o que, a acontecer, levantaria suspeitas de caciquismo republicanista e coação do eleitorado.
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Quanto ao projeto açoriano, não colhe o argumento de que o projeto foi apresentado num órgão regional, sendo a matéria de âmbito nacional, já que deputados açorianos à Assembleia da República bem poderiam assumir o projeto e levá-lo ao Parlamento em Lisboa e assim poderia cumprir-se o estipulado constitucionalmente, nos termos que acima se explanaram.
O grande óbice é de ordem constitucional dado que a alínea b) do artigo 288.º impõe no quadro dos limites materiais de revisão constitucional “a forma republicana de governo”. Pelo que o projeto seria jugulado liminarmente na Assembleia da República ou, se a assembleia o aprovasse na observância dos termos constitucionais, o Presidente da República, enquanto garante do cumprimento da Constituição, devidamente ajuramentado (cf art.º 127.º/3 da CRP), teria de fazer passar o diploma pelo crivo do Tribunal Constitucional.
A este respeito, Adelino Maltez, Professor Catedrático do ISCSP, considera que a nossa Constituição não é incompatível com a existência de um rei, porque a República é a forma como era conhecido o Estado e não o do conceito positivista do 5 de Outubro (efetivamente, o aforismo romano que dita “salus Reipublicae lex suprema esto”, a salvação da república – pátria/estado/coletividade – seja a lei suprema, segundo me é dado saber, aplicava-se à Roma dos “reis”, dos “cônsules” e dos “imperadores”). Sendo assim, o que “é preciso é que o rei não esteja contra a forma republicana de governo” e esse, na opinião subtil do professor, é o erro de muitos monárquicos (vd O Diabo, de 1 de julho, pg 3).
É efetivamente verdade, segundo G. Canotilho e V. Moreira (Constituição da República Portuguesa – anotada 2.ª ed revista e ampliada, Coimbra Editora, 1985), o artigo 1.º, ao definir Portugal como “uma República soberana”, não estabelece a se a forma republicana de governo. Assim, o termo “república” não significa aqui nem a forma de regime político (em oposição a monarquia) nem a organização do Estado (unitário, federal…) nem um tipo específico de Estado (democrático, laico, confessional, teocrático…). Essas especificações vêm mais adiante: artigo 288.º, alínea b) e artigos 120.º a 140.º e correlativos, sobre o regime republicano de governo; artigos 2.º e 109.º, estado de direito democrático; artigos 3.º e 225.º a 265.º, estado unitário com autonomias e poder local; artigos 13.º e 43.º, estado não confessional.
Pelo que, apesar de a república na definição constitucional ser entendida como coletividade (sociedade ou comunidade) política e o regime republicano não estar expressamente consagrado nos princípios fundamentais, a incompatibilidade resulta claramente de muitos princípios e normas constitucionais, como se viu anteriormente, sobretudo do artigo 288.º, alínea b), que garante “a forma republicana de governo” contra a revisão constitucional. Nem se vê como um rei iria coerentemente aceitar, no exercício soberano dos seus poderes, a forma não monárquica de governo, como por exemplo, a destituição pelo Parlamento ou a declaração de incapacidade de exercício das funções por parte do TC.
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Por fim, há que perguntar se, num momento de consolidação da propalada saída do programa de resgate, sem programa cautelar, a República Portuguesa não teria mais que fazer que uma revisão constitucional, mesmo que legítima. Bem penso que a reforma do Estado, que está por fazer, é viável e necessária sem o desgaste de energias políticas na tarefa de revisão da lei fundamental. É, antes, maré de aproveitar a conjuntura para consolidar as contas públicas, não pela via dos cortes cegos de salários e serviços ou pela do agravamento fiscal intempestivo e brutal, mas pela via da criação sustentável do emprego, do crescimento económico (com ou sem intervenção do Estado: porque não, se necessário, como parece?) e sobretudo com incentivo sério à natalidade e à fixação da população nas zonas de interior. E para já, a renegociação da dívida, que economistas do panorama internacional defenderam, partidos e notáveis exigiram e agora o FMI diz dever ter sido feita antes.
Em mão de bons governantes não são os instrumentos que que impedem a construção do futuro ou o cumprimento do desígnio – mas a inteligência, a noção do dever, a dedicação e o sentido pátrio. 

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