terça-feira, 15 de julho de 2014

Dia Nacional de França

Os franceses comemoraram o seu Dia Nacional a 14 de julho. A efeméride evoca a Prise de la Bastille (Tomada da Bastilha), um dos marcos iniciais da Revolução Francesa, em 1789, o célebre movimento que tirou o poder à monarquia absoluta, cujo titular era ao tempo Luís XVI.
Em memória de tal acontecimento, não há cidade, vila ou aldeia em França onde o 14 Juillet (a Festa nacional francesa ou o Dia da Bastilha) não seja assinalado com numerosas e ruidosas festividades. Ao cair da noite, começam os bailes populares que reúnem milhares de pessoas pelas praças, largos e recantos adaptados, tendo o acordeão como instrumento de excelência. É o principal feriado nacional francês, que assinala o momento em que a revolução assumiu a índole popular.
A atual Festa Nacional é o desenvolvimento da Fête de la Fédération (Festa da Federação), que já ocorrera em 1790 em homenagem à determinação do povo francês durante período da Revolução, no ano anterior. O evento celebrativo ocorreu no Campo de Marte, à época, distante do centro de Paris. E, aos poucos, celebrar a data torna-se tradição política associada ao sentimento nacionalista vivido durante a chamada França moderna, a França do século XX.
Em discurso do 14 de julho de 1872, Léon Gambetta propôs que, sendo a  Tomada da Bastilha a data mais significativa da Revolução, o povo deveria festejá-la anualmente. Porém, somente a partir de 1880 é que a ideia foi levada a cabo, com a aprovação pela Assembleia Nacional e pelo Senado do projeto de lei que estabelecia o 14 de julho como Dia Nacional em detrimento do já deteriorado 4 de agosto (antigo feriado monárquico que celebrava o fim do regime feudal). Em 6 de julho do mesmo ano o projeto passou a ser lei.
Este ano de 2014, a data revestiu-se de um significado especial ao coincidir com a celebração do centenário do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
As cerimónias, presididas pelo Presidente François Hollande, decorreram nos Campos Elísios, no centro de Paris. Ao longo da célebre avenida, o exército francês desfilou com uniformes de 1914, tendo participado no desfile também os serviços de emergência. O ato solene acabou com bailarinos vestidos de preto e branco a lançarem pombas paz e não já as bombas de guerra.
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A Bastilha foi construída como Bastião de Saint-Antoine (daí a denominação de Bastille de Saint-Antoine), onde hoje está situada a Place de la Bastille (Praça da Bastilha) em Paris, no quadro da Guerra dos Cem Anos, no reinado de Carlos V, em 1369.
Inicialmente, servia apenas como mero portal de entrada para o bairro de Saint-Antoine, mas de 1370 a 1383 (um pouco mais de 12 anos que duraram as obras), o portal foi ampliado e reformado para se transformar numa fortaleza, que serviria para defender o lado leste de Paris, além de um palácio real, sito nas proximidades, constituindo-se no mais forte ponto de defesa da muralha régia. Após a susodita guerra, começou a ser utilizada, no século XV, pela realeza francesa como prisão estadual (o rei Luís XIII foi o primeiro a enviar prisioneiros para lá).
A arquitetura da Bastilha assentava geometricamente num retângulo irregular. A estrutura tinha 90 metros de comprimento, 25 de largura com 8 torres e muralhas de 150 metros de altura, rodeadas pelo respetivo fosso. Originariamente, possuía no interior dois pátios, além de edifícios residenciais contra as paredes. Um par de torres nas fachadas leste e oeste era o que servia de portal inicial de passagem para o bairro de Saint-Antoine.
Caraterística militar significativa da construção é que as paredes e torres eram da mesma altura e conectadas por um amplo terraço – o que possibilitava que os soldados na parede frontal se movimentassem rapidamente até um setor eventualmente ameaçado da fortaleza sem que precisassem de descer por dentro das torres, assim como facilitava o posicionamento de artilharia defensiva.
Uma construção muito similar à Bastilha encontra-se hoje no Châteuax de Tarancon.
No século XV, foi transformada pela monarquia francesa, mais propriamente, como se disse, pela mão de Luís XIII, em prisão de Estado, ou seja, local de “retiro” para os que discordassem da linha política oficial ou representassem ameaça ao poder real absoluto. Ficou assim como um símbolo do absolutismo francês, sendo que vários intelectuais e políticos foram remetidos a seus cárceres, entre os quais se contam os famosos: Bassompierre, Foucquet, o homem da máscara de ferro, duque de Orleans, Voltaire, Latude...
Enquanto símbolo do despotismo, a Bastilha pairava sobre Paris como feiticeiro que, saindo na calada da noite, invadia as casas para arrancar as suas vítimas do leito e do aconchego familiar e as encaminhava algemadas, sem nenhuma formalização de culpa, para os carcereiros.
Os habitantes da Cidade imaginavam-na um local onde acontecia o inominável: torturas e punições indescritíveis. Era a representação concreta do pode-tudo dos privilegiados, já que era permitido aos nobres, graças a cartas assinadas em branco pelo rei, o uso das suas instalações como cárcere dos seus desafetos.
Como prisão, encontrava-se a Bastilha dividida internamente em três patamares: pavimento superior, pavimento térreo e calabouço. O pavimento superior proporcionava acomodações um pouco mais confortáveis para os detidos, em comparação com os restantes; o térreo funcionava como prisão comum, registando-se a enorme incidência de doenças como pneumonias, devido à temperatura ambiente; e o calabouço era a parte mais temida da Bastilha, dado que tinha uma arquitetura de estreitos corredores e salas.
O condenado ao calabouço deveria escolher uma adequada posição corporal para entrar na sala, pois esta não possuía nenhum espaço para locomoção, obrigando o proscrito a ficar de pé. O recluso do calabouço não raro falecia vítima de frio, fome ou doenças, já que o tratamento prestado aos presos daquele setor era o pior.
No século XVIII, servia mais como lugar de lazer e depósito de armas do exército do que como prisão, como nos séculos anteriores, pelo que havia adquirido a simpatia do rei Luís XVI.
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O reinado de  Luís XVI sofre em França enorme crise financeira, resultante do custo da intervenção na Revolução Americana, e exacerbada pelo sistema desigual de taxação tributária. A 4 de maio de 1789, os Estados-Gerais, reunidos em Versailles, sob a égide do Santíssimo Sacramento transportado em solene procissão, para enfrentar o problema, foram impedidos de agir graças à vigência de protocolos arcaicos e ao conservadorismo da nobreza, o Segundo Estado (1,5% da população à época). No entanto, a nobreza (a que se aliou o alto clero) recusou-se terminantemente a ajudar o rei com o pagamento dos impostos. E, do seu lado, a 17 de junho, o Terceiro Estado, o povo (pela primeira vez secundado pelo baixo clero), com seus representantes oriundos da classe média, a burguesia (bourgeoisie), organizou-se em Assembleia Nacional, cujo propósito era a criação da Constituição. Apesar de o rei inicialmente se ter oposto, veio a reconhecer, embora contrariado, a autoridade da Assembleia, que passou a Assembleia Nacional Constituinte, já que os membros do ora reforçado Terceiro Estado, em 20 de junho, juraram permanecer reunidos até dotarem a França da Constituição.
Luís XVI, na tentativa de dissolver os Estados-Gerais, ordenara o fechamento da sala de reuniões utilizada habitualmente pela nobreza. Porém, os representantes do Terceiro Estado transferiram-se para um salão de jogos do palácio, o do jogo da pela, onde procederam ao chamado Juramento do Jogo da Pela, cujo objeto era a elaboração da Constituição onde ficassem plasmados os direitos políticos e jurídicos dos cidadãos franceses e a forma de governação sob o princípio da tripartição dos poderes (legislativo, prerrogativa da Assembleia Nacional; executivo, atribuído ao rei e seus ministros; e judicial, confiado aos tribunais), no pressuposto de que era atribuição do monarca reinar, mas não legislar nem julgar.
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A tomada da Bastilha e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão formam o corolário da fase inicial da revolução, embora com a rejeição da declaração dos direitos da mulher e da cidadã.
A classe média havia formado a Guarda Nacional, ostentado rosetas tricolores, em azul, branco e vermelho, que logo se tornariam o símbolo da revolução (correspondentes à trinomia ideológica da fraternidade, igualdade e liberdade).
Paris estava à beira da insurreição coletiva e, nas palavras de François Mignet, “intoxicada com liberdade e entusiasmo”, mostrando amplo e declarado apoio à Assembleia, cujos debates a imprensa publicava – o que levava a que o debate político acabasse por se espalhar pelas praças públicas e salões da capital. O Palais-Royal e seus jardins tornaram-se palco de uma reunião interminável; e a multidão ali reunida, enfurecida, decidiu arrombar as prisões da Abbaye para soltar alguns granadeiros que teriam sido presos por disparar contra o povo. A Assembleia encaminhou os guardas presos à clemência do rei, os quais, após retornarem à prisão, acabaram por receber o perdão. As tropas, até então consideradas confiáveis pelo rei, passaram agora a tender pela causa popular.
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A emblemática prisão de Estado, que alguns desatentos, ainda pretendem encontrar em Paris, finou-se tomada de assalto na sequência do protesto do jornalista  Camille Desmoulins, até então desconhecido, frente ao Palácio Real e pelas ruas, bradando que as tropas reais se aprestavam a desencadear sangrenta repressão sobre o povo de Paris. Todos deviam, pois, munir-se de armas para se defenderem. A multidão, num primeiro momento, dirigiu-se aos Inválidos, antigo hospital onde se concentrava razoável arsenal. Ali, apropriou-se de vinte e oito mil mosquetes e de alguns canhões. Porém, correu o boato de que a pólvora se encontrava abundantemente estocada na fortaleza da Bastilha. Marchou para lá a massa revoltosa de soldados desmobilizados, guardas, marceneiros, sapateiros, diaristas, escultores, operários, negociantes de vinhos, chapeleiros, alfaiates e outros artesãos, enfim, o povo de Paris. Por sua vez, a fortaleza era defendida por 32 guardas suíços e 82 inválidos de guerra, possuindo 15 canhões, dos quais apenas 3 estavam em funcionamento.
Durante a iminência da invasão popular, o governador da Bastilha, marquês de Launay, tentou negociar. Entretanto, os guardas descontrolaram-se e dispararam sobre a multidão. Indignado, o povo em massa, reunido na praça em frente, partiu para o assalto e dali para o massacre. O tiroteio durou aproximadamente quatro horas. O número de mortos foi incerto. Calcula-se que tenha somado 98 populares e apenas um defensor da Bastilha.
Launay teve um fim trágico: decapitado, a sua cabeça desfilou espetada na ponta de uma lança pelas ruas em celebração macabra. Os presos, soltos, arrastaram-se para fora sob o aplauso comovido da multidão postada nos arredores da fortaleza devassada e desmantelada. Posteriormente, a massa em fúria incendiou e destruiu totalmente a Bastilha, deixando o bairro de Santo António, um dos mais populares de Paris, privado da sua fortaleza-prisão-arsenal.
O episódio, verdadeiramente espetacular, teve um efeito eletrizante, provocando efeito imediato não só na França, mas também onde a notícia chegou. Todos perceberam que algo de espetacular havia ocorrido. Mesmo na longínqua Königsberg (a russa Kalilingrado de hoje, na Prússia Oriental, atingida pelo eco de que o povo parisiense assaltara um fortes dos símbolos do rei, levou a que o filósofo Immanuel Kant, exultante com o acontecimento, pela primeira vez na sua vida se atrasasse no seu passeio diário das 18 horas.
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Nós por cá não acertamos com um dia verdadeiramente nacional. O 10 de junho, com todo o apreço que nutrimos por Camões, não comemora facto político relevante (não se pode apelidar de político o Príncipe dos Poetas). Fazer da sua morte, aliada à da hipoteca da independência nacional (que não perda formal da independência política) raia as veredas do absurdo. Porque não escolher um de entre tantos disponíveis?
Será que teimamos em revestir de preconceito a celebração pátria? A França, que serve de exemplo em tanto vetores políticos e culturais, depois da revolução, que deu cônsules, imperadores e reis e república pura e república musculada mantém a designação de Assembleia Nacional para a sua casa da democracia. Nós entretemo-nos a estudar designações, como presidente de câmara vs presidente da câmara, presidente de junta vs presidente da junta, assembleia legislativa vs assembleia da república (Jamais assembleia nacional, que sabe a Salazar e Caetano!), conselho administrativo vs conselho de administração, secretaria vs serviços administrativos, professor vs docente, mestra vs mestre, embaixadora vs embaixatriz, doutora juíza vs doutora-juiz, presidenta vs presidente, poetisa vs poeta e assim por diante.
Referências
- Bérenger, Jean et al. (1996). História Geral da Europa II – Desde o Início do século XVI ao final do século XVIII. Trad. Álvaro Salema. Mem Martins: Publicações Europa-América
- Cowen, Noel (2004). História Global – Breve Visão da História do Mundo. Trad. Jorge Lima. Lisboa: Editorial Bizâncio
- Ferro, Marc (2013). História de França. Lisboa: Edições 70
- Grimberg, Carl (1940). A independência dos Estados Unidos. A Revolução Francesa. Napoleão. Trad. M. Faure da Rosa.Vol. 15 de História Universal, de Macedo, Jorge (Dir). Mem Martins: Publicações Europa-América
- Hirst, John (2003). Breve História da Europa. Trad. José Mendonça da Cruz. Alfragide: Edições Dom Quixote
- Labourdette, Jean-François (2001). História de Portugal. Trad. Magda Figueiredo. Alfragide: Edições Dom Quixote
- Matoso, António (1966). História Universal. 5.º ano. 4.ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora
- Parker, Geoffrey (1996) Atlas Verbo de História Universal. Lisboa: Editorial Verbo
- Torres, F (s/d). História Universal. Vol. 3. 5.ª ed. Porto: Edições ASA
- Verdete, Carlos (2009). História da Igreja. Vol. II. Lisboa: Paulus Editora

- Vovelle, Michel (2007). A Revolução Francesa 1789-1799. Lisboa: Edições 70

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