Os
franceses comemoraram o seu Dia Nacional a 14 de julho. A efeméride evoca a Prise de la Bastille (Tomada da Bastilha),
um dos marcos iniciais da Revolução Francesa, em 1789, o célebre movimento que
tirou o poder à monarquia absoluta, cujo titular era ao tempo Luís XVI.
Em
memória de tal acontecimento, não há cidade, vila ou aldeia em França onde o 14
Juillet (a Festa nacional
francesa ou o Dia
da Bastilha) não seja assinalado com numerosas e ruidosas festividades. Ao
cair da noite, começam os bailes populares que reúnem milhares de pessoas pelas
praças, largos e recantos adaptados, tendo o acordeão como instrumento de
excelência. É o principal feriado nacional francês, que assinala o momento em
que a revolução assumiu a índole popular.
A atual Festa Nacional é o desenvolvimento da Fête de la Fédération
(Festa da Federação), que já ocorrera em 1790 em
homenagem à determinação do povo francês durante período da Revolução, no ano
anterior. O evento celebrativo ocorreu no Campo de Marte, à época, distante do
centro de Paris. E, aos poucos,
celebrar a data torna-se tradição política associada ao sentimento nacionalista
vivido durante a chamada França moderna, a França do século XX.
Em discurso do 14 de julho de 1872, Léon Gambetta propôs que, sendo a Tomada
da Bastilha a data mais significativa da Revolução, o povo
deveria festejá-la anualmente. Porém, somente a partir de 1880 é que a ideia foi levada a
cabo, com a aprovação pela Assembleia Nacional e pelo Senado do projeto de lei
que estabelecia o 14 de julho como Dia Nacional em detrimento do já deteriorado 4 de agosto (antigo feriado monárquico
que celebrava o fim do regime feudal).
Em 6 de julho do mesmo ano o
projeto passou a ser lei.
Este ano
de 2014, a data revestiu-se de um significado especial ao coincidir com a
celebração do centenário do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
As
cerimónias, presididas pelo Presidente François Hollande, decorreram nos Campos
Elísios, no centro de Paris. Ao longo da célebre avenida, o exército francês
desfilou com uniformes de 1914, tendo participado no desfile também os serviços
de emergência. O ato solene acabou com bailarinos vestidos de preto e branco a
lançarem pombas paz e não já as bombas de guerra.
***
A
Bastilha foi construída como Bastião de
Saint-Antoine (daí a denominação de Bastille de Saint-Antoine),
onde hoje está situada a Place de la Bastille (Praça da Bastilha)
em Paris, no quadro da Guerra dos
Cem Anos, no reinado de Carlos V, em 1369.
Inicialmente,
servia apenas como mero portal de entrada para o bairro de Saint-Antoine, mas de 1370 a 1383 (um pouco mais de 12 anos
que duraram as obras), o portal foi ampliado e reformado para se
transformar numa fortaleza, que serviria para defender o lado leste de Paris,
além de um palácio real, sito nas proximidades, constituindo-se no mais forte ponto
de defesa da muralha régia. Após a susodita guerra, começou a ser utilizada, no
século XV, pela realeza francesa como prisão estadual (o rei Luís XIII foi
o primeiro a enviar prisioneiros para lá).
A arquitetura
da Bastilha assentava geometricamente num retângulo irregular. A estrutura
tinha 90 metros de comprimento, 25 de largura com 8 torres e muralhas de 150
metros de altura, rodeadas pelo respetivo fosso. Originariamente, possuía no
interior dois pátios, além de edifícios residenciais contra as paredes. Um par
de torres nas fachadas leste e oeste era o que servia de portal inicial de
passagem para o bairro de Saint-Antoine.
Caraterística
militar significativa da construção é que as paredes e torres eram da mesma
altura e conectadas por um amplo terraço – o que possibilitava que os soldados
na parede frontal se movimentassem rapidamente até um setor eventualmente ameaçado
da fortaleza sem que precisassem de descer por dentro das torres, assim como
facilitava o posicionamento de artilharia defensiva.
Uma
construção muito similar à Bastilha encontra-se hoje no Châteuax de Tarancon.
No século XV, foi transformada
pela monarquia francesa, mais propriamente, como se disse, pela mão de Luís
XIII, em prisão de Estado, ou seja, local de “retiro” para os que discordassem
da linha política oficial ou representassem ameaça ao poder real absoluto.
Ficou assim como um símbolo do absolutismo francês,
sendo que vários intelectuais e políticos foram remetidos a seus cárceres,
entre os quais se contam os famosos: Bassompierre, Foucquet, o homem da máscara
de ferro, duque de Orleans, Voltaire, Latude...
Enquanto símbolo do despotismo, a
Bastilha pairava sobre Paris como feiticeiro que, saindo na calada da noite,
invadia as casas para arrancar as suas vítimas do leito e do aconchego familiar
e as encaminhava algemadas, sem nenhuma formalização de culpa, para os
carcereiros.
Os habitantes da Cidade
imaginavam-na um local onde acontecia o inominável: torturas e punições
indescritíveis. Era a representação concreta do pode-tudo dos privilegiados, já
que era permitido aos nobres, graças a cartas assinadas em branco pelo rei, o
uso das suas instalações como cárcere dos seus desafetos.
Como
prisão, encontrava-se a Bastilha dividida internamente em três patamares:
pavimento superior, pavimento térreo e calabouço. O pavimento superior
proporcionava acomodações um pouco mais confortáveis para os detidos, em
comparação com os restantes; o térreo funcionava como prisão comum,
registando-se a enorme incidência de doenças como pneumonias, devido à
temperatura ambiente; e o calabouço era a parte mais temida da Bastilha,
dado que tinha uma arquitetura de estreitos corredores e salas.
O
condenado ao calabouço deveria escolher uma adequada posição corporal para
entrar na sala, pois esta não possuía nenhum espaço para locomoção, obrigando o
proscrito a ficar de pé. O recluso do calabouço não raro falecia vítima de
frio, fome ou doenças, já que o tratamento prestado aos presos daquele setor
era o pior.
No século
XVIII, servia mais como lugar de lazer e depósito de armas do exército do que
como prisão, como nos séculos anteriores, pelo que havia adquirido a simpatia
do rei Luís XVI.
***
O reinado de Luís XVI sofre em França enorme crise financeira, resultante do custo
da intervenção na Revolução Americana, e exacerbada pelo sistema desigual de
taxação tributária. A 4 de maio de 1789, os
Estados-Gerais, reunidos em
Versailles, sob a égide do Santíssimo Sacramento transportado em solene
procissão, para enfrentar o problema, foram impedidos de agir graças à vigência
de protocolos arcaicos e ao conservadorismo da nobreza, o Segundo Estado (1,5% da população à
época). No entanto, a nobreza (a que se aliou o alto clero) recusou-se
terminantemente a ajudar o rei com o pagamento dos impostos. E, do seu lado, a
17 de junho, o Terceiro Estado, o povo (pela primeira vez secundado pelo baixo
clero), com seus representantes oriundos da classe
média, a burguesia (bourgeoisie),
organizou-se em Assembleia Nacional, cujo
propósito era a criação da Constituição. Apesar de o rei
inicialmente se ter oposto, veio a reconhecer, embora contrariado, a autoridade
da Assembleia, que passou a Assembleia Nacional Constituinte, já que
os membros do ora reforçado Terceiro Estado, em 20 de junho, juraram permanecer
reunidos até dotarem a França da Constituição.
Luís XVI, na tentativa de
dissolver os Estados-Gerais, ordenara o fechamento da sala de reuniões
utilizada habitualmente pela nobreza. Porém, os representantes do Terceiro
Estado transferiram-se para um salão de jogos do palácio, o do jogo da pela,
onde procederam ao chamado Juramento do
Jogo da Pela, cujo objeto era a elaboração da Constituição onde ficassem
plasmados os direitos políticos e jurídicos dos cidadãos franceses e a forma de
governação sob o princípio da tripartição dos poderes (legislativo,
prerrogativa da Assembleia Nacional; executivo, atribuído ao rei e seus
ministros; e judicial, confiado aos tribunais), no pressuposto de que era
atribuição do monarca reinar, mas não legislar nem julgar.
***
A tomada da Bastilha e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão formam
o corolário da fase inicial da revolução, embora com a rejeição da declaração
dos direitos da mulher e da cidadã.
A classe média havia formado a Guarda Nacional, ostentado rosetas tricolores, em azul, branco e
vermelho, que logo se tornariam o símbolo da revolução (correspondentes à
trinomia ideológica da fraternidade, igualdade e liberdade).
Paris estava à beira da
insurreição coletiva e, nas palavras de François
Mignet, “intoxicada com liberdade e entusiasmo”, mostrando amplo e declarado apoio à
Assembleia, cujos debates a imprensa publicava – o que levava a que o debate
político acabasse por se espalhar pelas praças públicas e salões da capital. O Palais-Royal e
seus jardins tornaram-se palco de uma reunião interminável; e a multidão ali
reunida, enfurecida, decidiu arrombar as prisões da Abbaye para soltar
alguns granadeiros que
teriam sido presos por disparar contra o povo. A Assembleia encaminhou os
guardas presos à clemência do rei, os quais, após retornarem à prisão, acabaram
por receber o perdão. As tropas, até então consideradas confiáveis pelo rei,
passaram agora a tender pela causa popular.
***
A emblemática prisão de Estado,
que alguns desatentos, ainda pretendem encontrar em Paris, finou-se tomada de
assalto na sequência do protesto do jornalista Camille
Desmoulins, até então desconhecido, frente ao Palácio Real e pelas
ruas, bradando que as tropas reais se aprestavam a desencadear sangrenta repressão
sobre o povo de Paris. Todos deviam, pois, munir-se de armas para se defenderem.
A multidão, num primeiro momento, dirigiu-se aos Inválidos, antigo hospital onde se concentrava razoável arsenal.
Ali, apropriou-se de vinte e oito mil mosquetes e de alguns canhões. Porém, correu
o boato de que a pólvora se encontrava abundantemente estocada na fortaleza da
Bastilha. Marchou para lá a massa revoltosa de soldados desmobilizados,
guardas, marceneiros, sapateiros, diaristas, escultores, operários, negociantes
de vinhos, chapeleiros, alfaiates e outros artesãos, enfim, o povo de Paris. Por
sua vez, a fortaleza era defendida por 32 guardas suíços e 82 inválidos de guerra, possuindo 15
canhões, dos quais apenas 3 estavam em funcionamento.
Durante a iminência da invasão
popular, o governador da Bastilha, marquês de Launay, tentou negociar. Entretanto,
os guardas descontrolaram-se e dispararam sobre a multidão. Indignado, o povo
em massa, reunido na praça em frente, partiu para o assalto e dali para o
massacre. O tiroteio durou aproximadamente quatro horas. O número de mortos foi
incerto. Calcula-se que tenha somado 98 populares e apenas um defensor da
Bastilha.
Launay teve um fim trágico: decapitado,
a sua cabeça desfilou espetada na ponta de uma lança pelas ruas em celebração
macabra. Os presos, soltos, arrastaram-se para fora sob o aplauso comovido da
multidão postada nos arredores da fortaleza devassada e desmantelada. Posteriormente,
a massa em fúria incendiou e destruiu totalmente a Bastilha, deixando o bairro de
Santo António, um dos mais populares de Paris, privado da sua fortaleza-prisão-arsenal.
O episódio, verdadeiramente
espetacular, teve um efeito eletrizante, provocando efeito imediato não só na
França, mas também onde a notícia chegou. Todos perceberam que algo de
espetacular havia ocorrido. Mesmo na longínqua Königsberg (a russa Kalilingrado
de hoje, na Prússia Oriental, atingida pelo eco de que o povo parisiense
assaltara um fortes dos símbolos do rei, levou a que o filósofo Immanuel Kant,
exultante com o acontecimento, pela primeira vez na sua vida se atrasasse no
seu passeio diário das 18 horas.
***
Nós por cá não acertamos com um
dia verdadeiramente nacional. O 10 de junho, com todo o apreço que nutrimos por
Camões, não comemora facto político relevante (não se pode apelidar de político
o Príncipe dos Poetas). Fazer da sua morte, aliada à da hipoteca da
independência nacional (que não perda formal da independência política) raia as
veredas do absurdo. Porque não escolher um de entre tantos disponíveis?
Será que teimamos em revestir de
preconceito a celebração pátria? A França, que serve de exemplo em tanto
vetores políticos e culturais, depois da revolução, que deu cônsules,
imperadores e reis e república pura e república musculada mantém a designação
de Assembleia Nacional para a sua casa da democracia. Nós entretemo-nos a
estudar designações, como presidente de câmara vs presidente da câmara,
presidente de junta vs presidente da junta, assembleia legislativa vs
assembleia da república (Jamais assembleia nacional, que sabe a Salazar e
Caetano!), conselho administrativo vs conselho de administração, secretaria vs
serviços administrativos, professor vs docente, mestra vs mestre, embaixadora
vs embaixatriz, doutora juíza vs doutora-juiz, presidenta vs presidente,
poetisa vs poeta e assim por diante.
Referências
- Bérenger, Jean et al. (1996). História
Geral da Europa II – Desde o Início do século XVI ao final do século
XVIII. Trad. Álvaro Salema. Mem Martins: Publicações
Europa-América
-
Cowen, Noel (2004). História Global –
Breve Visão da História do Mundo. Trad. Jorge Lima. Lisboa: Editorial
Bizâncio
-
Ferro, Marc (2013). História de França.
Lisboa: Edições 70
-
Grimberg, Carl (1940). A independência
dos Estados Unidos. A Revolução Francesa. Napoleão. Trad. M. Faure da Rosa.Vol.
15 de História Universal, de Macedo,
Jorge (Dir). Mem Martins: Publicações Europa-América
-
Hirst, John (2003). Breve História da
Europa. Trad. José Mendonça da Cruz. Alfragide: Edições Dom Quixote
-
Labourdette, Jean-François (2001). História
de Portugal. Trad. Magda Figueiredo. Alfragide: Edições Dom Quixote
-
Matoso, António (1966). História
Universal. 5.º ano. 4.ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora
-
Parker, Geoffrey (1996) Atlas Verbo de
História Universal. Lisboa: Editorial Verbo
-
Torres, F (s/d). História Universal.
Vol. 3. 5.ª ed. Porto: Edições ASA
-
Verdete, Carlos (2009). História da
Igreja. Vol. II. Lisboa: Paulus Editora
-
Vovelle, Michel (2007). A Revolução
Francesa 1789-1799. Lisboa: Edições 70
Sem comentários:
Enviar um comentário