segunda-feira, 28 de julho de 2014

A contenda antoniana no PS

Assim me dá para designar a luta de galos entre António Costa e António José Seguro em disputa pela liderança do partido socialista (PS), a coberto de recente invenção de eleições primárias para o posicionamento em candidato do PS ao cargo de primeiro-ministro (confesso ter sentido alguma dificuldade em alinhar a frase em termos o mais precisos possível). Desta disputa já se diz ironicamente que sai vencedor o António; só não se vislumbra o que se perderá no PS e no país. Diga-se desde já que, tenha a culpa quem a tiver, se trata de uma insólita, para não dizer inédita, enormidade política.
Com a queda de Sócrates, António José Seguro foi eleito secretário-geral do PS. Como lhe era difícil conviver com a realidade de partido órfão de pai vivo, fez razoavelmente o ponto de embraiagem entre o futuro desconhecido, mas carregado de sombras, e o passado marcado pela narrativa da pré-bancarrota, pelo desgaste político do ex-primeiro-ministro e pelo memorando de entendimento (negociado e assinado pelos três partidos do arco governamental) em excesso atribuído à teimosia do anterior líder socialista. O partido começou pouco a pouco a afirmar-se como oposição perante a visível descaraterização do memorando cada vez mais funesto nas consequências e a degradação social e política a ficar em situação explosiva. No entanto, a bondade inicial de Seguro não foi suficiente para compensar a falta de carisma e arreganho político, sobretudo quando contraditado frente a passado que não soube nem rejeitar nem assumir criticamente. Tal postura, por vezes de expressão confrangedora, impediu que o PS não se perspetivasse perante o povo como alternativa credível: o povo rejeitava um governo sem norte, mas não via no partido socialista tábua a que pudesse agarrar-se. E, se o governo tinha rasgado as promessas eleitorais, também ainda não se tinha banido o espectro dos males que o consulado socrático infligira a muitos dos grupos profissionais nem do enfrentamento medíocre da crise, dita nossa, mas internacional e sistémica.
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António Costa, em tempo útil reagiu, mas sem consequência: não tinha certeza de conseguir a liderança do partido, já domesticado pelo aparelho e com uma revisão de estatutos paramentada de controvérsia (Congresso não decidiu, pois, tal não estava agendado nem mandatou a Comissão Nacional nas tarefas de revisão estatutária). Mas sabia que, perdido na eventual luta pela liderança partidária, acabaria, na certa, por perder as eleições autárquicas em Lisboa. O PS já tinha cometido pelo menos tantos erros táticos na escolha de candidatos autárquicos como o PSD e o CDS. E surgiu o milagre transitório: em noite faustosa os dois camaradas com o nome António consagraram a unidade do partido e a estratégia de ação futura, que o Congresso rubricou por esmagadora maioria.
E o PS disputou as eleições autárquicas sob a ameaça de eleições legislativas antecipadas (em ambiente da crise política das decisões de incapacidade e desistência de Gaspar, da decisão irrevogável de saída de Portas e do apelo de Cavaco à Salvação Nacional). Ganhou as eleições autárquicas, quaisquer que sejam os parâmetros de aferição de vitória. Todavia, graças ao desgaste do Governo e dos erros autárquicos da parte da maioria que suporta a coligação governamental, a vitória do PS poderia ter sido mais folgada. Subiram as candidaturas de independentes, genuínos (poucos) ou postiços (a maior parte eram dissidentes).
António Costa, ganhador em Lisboa, cedo afirmou que a vitória era indiscutível, mas, perante a descida ou estagnação do PS nas intenções de voto vaticinou que as pessoas, apesar do cartão vermelho apresentado ao Governo, ainda não viam no PS uma alternativa credível de que precisavam para a governação eficaz e alegou que havia um longo caminho a percorrer.
E vieram as eleições europeias a 25 de maio. A campanha eleitoral foi sofrível em termos do debate: os assuntos europeus e os nacionais misturaram-se de tal maneira que nada ou quase nada ficou esclarecido. Os temas mais discutidos eram pormenores de adereços, sem interesse. E a coligação teve uma derrota estrondosa, mas o PS, em cuja campanha Seguro se empenhara a fundo (aliás, como na das autárquicas), teve uma vitória tangencial (Mais 3% + que a coligação governamental). Além do crescimento de alguns dos pequenos partidos (e a diminuição evidente do Bloco de Esquerda), foi tremendamente maioritária a abstenção e cresceu de forma insólita o número de votos nulo e de votos em branco.
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Dias depois, Costa apresentou-se como disponível para disputar a liderança do partido, argumentando que a vitória (engrandecida como histórica pelo secretário-geral e pelo cabeça de lista vencedora) soube a pouco – o que, pelo número de abstencionistas, brancos e nulos, mostrava que este PS não dava garantias de vitória eleitoral em 2015.
Seguro, em vez de, ao ler a realidade, ter assumido a grandeza de pôr o lugar à disposição dos militantes para obter a clarificação dentro do partido, reage a contragosto. Talvez enredado no aparelho partidário (há quem espirre compromissos assumidos em termos de lugares governativos, partidários e empresariais – coisa em que me recuso acreditar) escuda-se nas duas vitórias consecutivas, no melhor resultado socialista a nível europeu e na ambição alheia pelo poder. Não promove eleições para a liderança nem congresso. Pede à Presidente do partido que estude as possibilidades da intenção do secretário-geral em termos do direito comparado e propõe à Comissão Política Nacional a marcação de eleições primárias para candidato do PS ao cargo de primeiro-ministro. E, sim, o órgão mais importante entre sessões da Comissão Nacional, que, por sua vez, é o órgão mais importante entre congressos, acolhe a proposta do secretário-geral e marca eleições primárias para 28 de setembro, em que, além dos militantes, poderão votar os simpatizantes que se inscrevam como tais até 12 de setembro e declarem concordar com os princípios do PS, consignados em documento que lhes ficará disponibilizado. Foi mesmo designada uma comissão eleitoral de consenso das candidaturas, sob a presidência do prestigiado camarada Jorge Coelho. Seguro, entretanto, terá declarado que, no caso de perder as primárias, abandonará o cargo de secretário-geral.
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Se António Costa está convencido de que tem razão, deveria, em meu entender, combater até à última essa ideia peregrina das primárias e lutar pelas eleições diretas para secretário-geral. E o tempo que se está a perder, com risco de inutilidade, poderia ter sido gasto na demonstração das razões da bondade e da pertinência da sua atitude. Por seu turno, se José Seguro fosse amigo do PS e do País, não arriscava uma forma de solução inédita, de legalidade no mínimo duvidosa e implicando uma considerável perda de tempo. Uma solução encontrada dentro do partido, e a pensar no país, seria mais rápida, menos ambígua e mais de acordo com a lei e com os estatutos e claramente sem engulhos constitucionais.
Desde já, não faz sentido uma candidatura de primárias para primeiro-ministro. Não há no nosso ordenamento constitucional eleições para tal. Embora seja voz corrente que o partido que ganha as eleições dará o primeiro-ministro, na realidade, os portugueses elegem diretamente a Assembleia da República, cuja composição reflete o método de representação proporcional, pela média mais alta de Hondt. E o Presidente da República faz a nomeação do primeiro-ministro, ouvidos os partidos representados na Assembleia e tendo em conta os resultados eleitorais (cf CRP, art.º 187.º/1). Ora em tese, o partido que obteve melhores resultados pode não dispor de condições para formar governo, pelo que não deve fazer-se uma eleição para algo que pode não acontecer. De facto, nos Estados Unidos da América (EUA) e em França, consolidou-se o sistema das eleições primárias para o candidato de partido à Presidência da República. Porém, em Portugal, os candidatos à presidência não surgem no quadro partidário. Eles resultam de opção pessoal (cf CRP, art.º 124.º/1), apoiável por um leque partidário mais alargado ou mais reduzido, consoante o perfil dos candidatos. Já nos países mencionados, o presidente é eleito por um colégio eleitoral, constituído pelos grandes eleitores (EUA), ou por voto universal, secreto e direto (França), mas as candidaturas surgem no âmbito dos partidos. O Presidente escolhido é sempre um dos candidatos que ganharam as primárias dentro do respetivo partido ou frente partidária.
Mas o secretário-geral esquece-se de que o nosso código civil (vd art.º 157.º e seguintes) não prevê eleições fora dos corpos sociais definidos estatutariamente e aqueles são eleitos em assembleia geral de associados e não outros; por outro lado, os estatutos do PS, que poderiam estabelecer de outro modo, não preveem nem eleição de órgão extrapartidário nem direito de voto extensivo a simpatizantes.
O máximo concedido a simpatizantes, segundo os estatutos, é: “apresentar contributos sobre a organização, a orientação e a atividade do Partido” – art.º 12.º/1, c). Aos independentes o máximo que se lhes confia parece ser: “Os órgãos deliberativos do Partido podem convidar cidadãos independentes a participar na atividade das estruturas e nas reuniões dos órgãos do Partido, exceto no período destinado à tomada de deliberações” (sublinhei) – art.º 18.º/1.
E, sobre a capacidade ativa, os estatutos são claros: “Só têm capacidade eleitoral ativa os membros do Partido com doze meses de inscrição na data do ato eleitoral e com as quotas em dia até um mês antes do dia da eleição” – art.º 15.º/1.
Sendo assim, é de perguntar:
– Como é que se pode aceitar a capacidade eleitoral ativa de simpatizantes (quando esta é reconhecida somente a membros do partido) até quinze dias antes do ato eleitoral, quando os membros do Partido têm de estar inscritos há doze meses e com as quotas em dia até um mês antes das eleições?
– Não se vislumbra aqui uma grosseira violação dos estatutos, que o Congresso não alterou nem mandatou a Comissão Nacional para tal, sob o olhar cúmplice de toda a massa partidária e adjacente?
– Vão os promotores dessa farsa e os cúmplices acreditar na sanação de irregularidade com base na concordância geral, na convicção de que ninguém levantará incidente (agora não se impugna o que ainda não aconteceu; depois, não se impugnará por inoportuno ou por lesivo do interesse partidário e/ou nacional)?  
– Vamos aceitar um facto consumado que alguém criou deliberadamente ou por inépcia?
– Querem que acreditemos, para a governação justa, em sã legalidade eficiência e eficácia, num partido que não sabe arrumar a casa a tempo e sem recorrer a subterfúgios?
 – Querem que acreditemos num partido que não está presente como oposição que, após a saída formal da troika, se me afigura cada vez mais necessária?
– Querem que acreditemos em Seguro, que disse não ter falado de coisas que tinha em mente apenas para preservar a paz e o bem-estar no Partido ou que declarou, tarde e a más horas, que não teria assinado o memorando de entendimento?
– Finalmente, querem convencer os portugueses de que as primárias para candidatura a primeiro-ministro configuram aquele “plano de ação para a Democracia Participativa”, previsto na alínea h) do artigo 63.º dos estatutos, artigo que define as competências da Comissão Política Nacional: “aprovar, sob proposta do Secretariado Nacional, um plano de ação para a Democracia Participativa, o qual será objeto de relatório anual a submeter à apreciação da Comissão Política Nacional”? Ou estará o partido a observar a alínea d) do mesmo artigo, que aliás Seguro invocou na proposta que fez à Comissão Política Nacional?
A Veneranda Comissão designa per modum electionis estranho aos trâmites usuais no partido. Que generosidade, trapalhada ou quiçá forma subtil de consecução de intentos subliminares!

Pobre partido socialista, mas corações ao alto, portugueses!

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