quinta-feira, 3 de julho de 2014

Honras de Panteão para a imortal Sophia

Decorreu hoje, 2 de julho, a cerimónia pública da trasladação, do cemitério de Carnide para o Panteão Nacional, do corpo da escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, no 10.º aniversário do seu falecimento e por ocasião do quadragésimo aniversário da revolução abrilina.
Com efeito, a Assembleia da República decidiu, em fevereiro passado, por unanimidade, dar honras panteónicas à autora de “A menina do mar” e de “O cavaleiro da Dinamarca”, como forma de homenagear “a escritora universal, a mulher digna, a cidadã corajosa, a portuguesa insigne”, e evocar o seu exemplo de “fidelidade aos valores da liberdade e da justiça”, como se pode ler no texto da resolução.
No percurso para a igreja de Santa Engrácia, o féretro, que saíra de Carnide pelas 16: 30 horas, fez uma paragem na capela do Rato para a celebração eucarística presidida pelo Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Clemente, concelebrada, entre outros, pelo padre Tolentino de Mendonça, com a presença da família. Na homilia, o presidente da celebração declarou: Quando pensei nesta missa evocativa de Sophia, só me saíram palavras vagas perante alguns dos seus versos. Falar de Sophia sem palavras de Sophia é difícil. Luz, procura e purificação resumem a sua obra”. Mesmo assim, o Patriarca referiu-se com justeza evangélica ao perfil da poetisa lutadora: Sophia personifica a bem-aventurança: felizes o puros de coração porque verão a Deus. […]. Só uma alma como a dela nos pode transportar do passado para o futuro, quando os horizontes já suportaram tudo e a realidade se revela demasiado prosaica”.
Após a celebração, o cortejo fúnebre, escoltado pela GNR, saiu da capela em direção ao Panteão Nacional, passando pela Assembleia da República, a Casa da Democracia, decorrente da expressão livre do povo, e tendo o armão militar que transportava a urna com os restos mortais da poetisa dado entrada no adro do Panteão Nacional, pouco antes das 19 horas, pelo lado nascente, do campo de Santa Clara. Ficou a urna de configuração bem simples exposta sobre a “essa” em frente da fachada principal do templo que tem o estatuto de Panteão Nacional.
À cerimónia de honras de Estado, no Panteão, frente aos restos mortais de Sophia, assistiu a família, o Presidente da República, a Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, os Presidentes dos Tribunais Superiores, outras altas individualidades da República e o Corpo Diplomático.
Escutado o Hino Nacional pelo Coro do Teatro Nacional de S. Carlos, José Manuel dos Santos, membro da Academia Nacional de Belas Artes, fez a evocação da poetisa, a que se seguiu uma atuação da Companhia Nacional de Bailado (a dança “Lago dos Cisnes”), que voltou a atuar (com a dança “Orfeu e Eurídice”), entre o discurso da Presidente da Assembleia da República e o do Chefe de Estado, ao qual se seguiu a difusão de uma gravação, de 1957, da leitura de poemas por Sophia.
Pelas 20:00 horas, o Presidente da República, a Presidente da Assembleia da Republica e o Primeiro-Ministro assinaram o “Termo de Sepultura no Panteão Nacional” e foi ouvido o “Magnificat” de Bach, pelo Coro do Teatro Nacional de São Carlos, que reiterou a interpretação, em seguida, do Hino Nacional. Os militares da GNR transportaram então a urna para o interior do Panteão até à sala onde se encontra a arca tumular, onde ficará depositada, e escutou-se o toque de clarim pela GNR, assinalando o final da cerimónia.
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Das palavras dos oradores respigam-se asserções significativas, como as que se transcrevem.
– José Manuel dos Santos, orador convidado para o elogio fúnebre, declarou, na sua alocução que “a concessão das honras de Panteão Nacional a Sophia de Mello Breyner Andresen faz da sua memória um símbolo coletivo”. Porém, para que não restassem dúvidas do génio superior, independente e livre da superescritora, assegurou que esta decisão da Assembleia da República “não faz – nunca fará – de Sophia um escritor oficial ou um poeta de regime, mesmo daquele que a reconheceu e que ela reconheceu”.
Referindo-se especificamente à cerimónia em curso, Santos sublinha que a solene entrada de Sophia no Panteão Nacional “é rito, símbolo e sinal” e materializa-se “em aquela solenidade, irmã do silêncio e da solidão, que é o contrário da pompa e da propaganda”.
Citando Sophia, o orador lembrou que “o poeta escreve para salvar a vida”, mas assumiu: “Acredito que a poesia se opõe, por sua própria natureza, à degradação”. E, atentando no significado do nome da poetisa, releva que o “nome lhe foi dado como uma predestinação: Sophia, Sabedoria”. E contrapôs que “não é ela que precisa de nós, somos nós que precisamos dela”.
No atinente à poesia de Sophia, reconhece que “há nela a liberdade livre, a vida viva, a grandeza nua, o fogo firme que não a deixa ser senão de quem nela encontra o que ela é”. E garante filosófica e esteticamente que “a poesia de Sophia, que deu à língua portuguesa a soberania da sua exatidão, é uma arte do ser, uma mnemónica do mundo, um vértice da vida”. E parece ter captado o corpus essencial da obra poética e ética da escritora, cidadã de corpo inteiro: “O fio que a percorre, feito de claridade e de assombro, tem três nós de escuridão: o nó da noite, o nó do nada, o nó do não”.
Sobre a fluidez da sua vida poética, o narrador-notário regista: “Na vida de Sofia, os livros sucederam-se como as sílabas da primeira palavra dita no mundo. Foi dessa palavra que ela fez nascer todas as palavras da sua poesia”. Porém, o canto de intervenção da cidadã atenta à Vida e à História é destacado: “na intervenção no canto de Sophia, há o grandioso encontro de uma grande cultura com as suas origens e os seus ocasos, com as suas restituições e as suas rasuras, com os seus crimes e os seus cumes”. E mais: “Neste canto, o passado é a grande pergunta do futuro”.
E o legado inconformista da mulher política pode sintetizar-se no genuíno segmento retórico do orador: “Ela disse um dia: 'Aos pobres de Portugal é costume dizer: Tenham paciência. Mas na verdade devemos dizer: 'Não tenham paciência'”.
– Por seu turno, a Presidente da Assembleia da República, no – a meu ver – melhor discurso da efeméride, recordou a personalidade de Sophia de Mello Breyner Andresen como poeta, mas também “nos caminhos da política feita com alma”, na luta contra a ditadura do Estado Novo e como deputada constituinte:
“Vemo-la, então, nos caminhos da política, a política feita com a alma, busca da felicidade dos homens, entrega inteira. Vemo-la persistente, buscando para a cidade a forma justa! Buscando a harmonia e a unidade de todos os homens. Contra o tempo de negação do Estado Novo, anunciando já um outro tempo” – proclamou Assunção Esteves.
“Vemo-la em ABRIL, celebrando o dia inicial do 'acordo livre e justo'. Vemo-la à porta de Caxias, cravos na mão mais certa entre todas as mãos! Vemo-la no Parlamento, protagonista da nossa Constituição fundadora”, lembrou a segunda figura do Estado e sublinhou que “Sophia fez da política, da vida e da poesia ideias líquidas”.
E, apesar de poder ser censurado pela extensão das citações da tão criticada personalidade parlamentar, inclusive por mim próprio às vezes, não resisto à tentação de continuar a ruminar as felizes palavras de Assunção sobre a mulher global, que pôs em cada coisa simples, em cada ação, por minúscula que parecesse, todo o seu ser, todo o seu empenho:
“Sophia de Mello Breyner representou a 'inteireza do estar na terra', para recorrer às suas próprias palavras. Uma inteireza que parece libertar-se da condição humana, uma inteireza impossível que, afinal, se realiza. Cidadã combatendo com a alma, intelectual, mulher e mãe, Sophia foi mesmo alguém todo inteiro, arauto de um tempo novo como tempo justo!
E mais: “nascida de uma família de amplos recursos, Sophia mostrou que a verdadeira riqueza é a que está no coração dos homens”, e “foi capaz de ver, para lá da sua própria condição, o buraco negro dos injustiçados” – Esta segunda é, para mim, a afirmação mais empolgante do dia.
Mas a líder do Parlamento continua a perorar sobre a homenageada:
“No seu pensamento está todo o ideal dos justos, toda a coragem dos justos, a coragem de 'recomeçar cada coisa a partir do princípio', como ela dizia. A política ali, como revolução transformadora, poema a partir da página em branco”.
Para Assunção, “Sophia sintetiza todos os sinais emancipadores da História, todas as vias do puro sublime”.
Por fim, Assunção Esteves alçou as palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen à categoria de “palavras de desafio”: “Para sermos heróis de um mundo novo, inscrevendo em cada ação a claridade da sua fórmula intemporal: a relação justa com os homens e a relação justa com as coisas”.
– O Presidente da República, a quem ficou protocolarmente reservada a última intervenção discursiva, não foi parco nas referências elogiosas. Cumpre-me registar dois momentos da sua alocução: um que reputo de interessante pela tonalidade de Estado de que se reveste; e outro, que alinhadamente com os oradores que o precederam, emoldura o quadro da personalidade de Sophia na relação vivencial e literária com outros poetas, sobretudo o Camões da epopeia e do humanismo.
O primeiro é aquele em que o Presidente declara:
No momento em que se realiza a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional, onde a partir de hoje repousará, por direito próprio, ao lado de grandes vultos da cultura e da história portuguesas, é justo homenagear também, a par do seu génio literário, a grandeza cívica e humana por que sempre se distinguiu”.
Efetivamente, é ao Chefe de Estado que fica bem a asserção de que Sophia ali repousará por direito próprio, embora ao lado de grandes vultos e num contexto de homenagem simultânea ao génio literário e à grandeza cívica.
O segundo momento que me apraz evidenciar é o quadro do caixilho que a seguir se transcreve
Sophia de Mello Breyner foi grande pela harmonia e a aura dos seus versos, mas foi igualmente grande pela inteireza do seu carácter. Ambas as dimensões - a literatura e a vida - constituem na sua biografia dois ramos da mesma árvore, firme e inabalável. Era como escrevia e escrevia como era: autêntica, inteira na escrita e na coragem da defesa da justiça e da liberdade”.
De facto, não é fácil dizer tanto em tão poucas palavras.
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Finalmente, apetece-me terminar este arrazoado com uma maldade, ou seja, clamar que as altas figuras do Estado e os serviços da República só são incompetentes quando querem ou quando estão distraídos. Efetivamente, pondo de parte algum pormenor de importância meramente marginal menos bem conseguido, a cerimónia honrou o Estado e é digna da democracia, pela postura, pela apresentação, pelos discursos, pelas manifestações artísticas e pelo desenvolvimento protocolar. Por isso, são mais responsáveis e culpados quando fazem mal: é que não será por não saberem, mas por quererem ou por falta de empenhamento. “Perdoai-lhes, Senhor, porque eles sabem o que fazem”!

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