Decorreu hoje, 2 de julho, a cerimónia
pública da trasladação, do cemitério de Carnide para o Panteão Nacional, do
corpo da escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, no 10.º aniversário do seu
falecimento e por ocasião do quadragésimo aniversário da revolução abrilina.
Com efeito, a Assembleia da República decidiu, em fevereiro passado, por
unanimidade, dar honras panteónicas à autora de “A menina do mar” e de “O
cavaleiro da Dinamarca”, como forma de homenagear “a escritora universal, a
mulher digna, a cidadã corajosa, a portuguesa insigne”, e evocar o seu exemplo
de “fidelidade aos valores da liberdade e da justiça”, como se pode ler no
texto da resolução.
No percurso para a igreja de Santa Engrácia, o féretro, que saíra
de Carnide pelas 16: 30 horas, fez uma paragem na capela do Rato para a
celebração eucarística presidida pelo Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Clemente,
concelebrada, entre outros, pelo padre Tolentino de Mendonça, com a presença da
família. Na homilia, o presidente da celebração declarou: “Quando pensei
nesta missa evocativa de Sophia, só me saíram palavras vagas perante alguns dos
seus versos. Falar de Sophia sem palavras de Sophia é difícil. Luz, procura e
purificação resumem a sua obra”. Mesmo assim, o Patriarca referiu-se com
justeza evangélica ao perfil da poetisa lutadora: “Sophia personifica a bem-aventurança: felizes o puros de coração porque
verão a Deus. […]. Só uma alma como a dela nos pode transportar do passado para
o futuro, quando os horizontes já suportaram tudo e a realidade se revela demasiado
prosaica”.
Após a celebração, o cortejo fúnebre, escoltado pela GNR, saiu da
capela em direção ao Panteão Nacional, passando pela Assembleia da República, a
Casa da Democracia, decorrente da expressão livre do povo, e tendo o armão
militar que transportava a urna com os restos mortais da poetisa dado entrada no
adro do Panteão Nacional, pouco antes das 19 horas, pelo lado nascente, do
campo de Santa Clara. Ficou a urna de configuração bem simples exposta sobre a
“essa” em frente da fachada principal do templo que tem o estatuto de Panteão
Nacional.
À cerimónia de honras de Estado, no Panteão, frente aos restos
mortais de Sophia, assistiu a família, o Presidente da República, a Presidente
da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, os Presidentes dos Tribunais
Superiores, outras altas individualidades da República e o Corpo Diplomático.
Escutado o Hino Nacional pelo Coro do Teatro Nacional de S.
Carlos, José Manuel dos Santos, membro da Academia Nacional de Belas Artes, fez
a evocação da poetisa, a que se seguiu uma atuação da Companhia Nacional de
Bailado (a dança “Lago dos Cisnes”), que voltou a atuar (com a dança “Orfeu e
Eurídice”), entre o discurso da Presidente da Assembleia da República e o do
Chefe de Estado, ao qual se seguiu a difusão de uma gravação, de 1957, da
leitura de poemas por Sophia.
Pelas 20:00 horas, o Presidente da República, a Presidente da
Assembleia da Republica e o Primeiro-Ministro assinaram o “Termo de Sepultura
no Panteão Nacional” e foi ouvido o “Magnificat” de Bach, pelo Coro do Teatro
Nacional de São Carlos, que reiterou a interpretação, em seguida, do Hino
Nacional. Os militares da GNR transportaram então a urna para o interior do
Panteão até à sala onde se encontra a arca tumular, onde ficará depositada, e
escutou-se o toque de clarim pela GNR, assinalando o final da cerimónia.
***
Das
palavras dos oradores respigam-se asserções significativas, como as que se transcrevem.
–
José Manuel dos Santos, orador convidado para o elogio fúnebre, declarou, na
sua alocução que “a concessão das honras de Panteão Nacional a Sophia de Mello
Breyner Andresen faz da sua memória um símbolo coletivo”. Porém, para que não
restassem dúvidas do génio superior, independente e livre da superescritora,
assegurou que esta decisão da Assembleia da República “não faz – nunca fará –
de Sophia um escritor oficial ou um poeta de regime, mesmo daquele que a reconheceu
e que ela reconheceu”.
Referindo-se
especificamente à cerimónia em curso, Santos sublinha que a solene entrada de
Sophia no Panteão Nacional “é rito, símbolo e sinal” e materializa-se “em
aquela solenidade, irmã do silêncio e da solidão, que é o contrário da pompa e
da propaganda”.
Citando
Sophia, o orador lembrou que “o poeta escreve para salvar a vida”, mas assumiu:
“Acredito que a poesia se opõe, por sua própria natureza, à degradação”. E,
atentando no significado do nome da poetisa, releva que o “nome lhe foi dado
como uma predestinação: Sophia, Sabedoria”. E contrapôs que “não é ela que
precisa de nós, somos nós que precisamos dela”.
No
atinente à poesia de Sophia, reconhece que “há nela a liberdade livre, a vida
viva, a grandeza nua, o fogo firme que não a deixa ser senão de quem nela
encontra o que ela é”. E garante filosófica e esteticamente que “a poesia de
Sophia, que deu à língua portuguesa a soberania da sua exatidão, é uma arte do
ser, uma mnemónica do mundo, um vértice da vida”. E parece ter captado o corpus essencial da obra poética e ética
da escritora, cidadã de corpo inteiro: “O fio que a percorre, feito de
claridade e de assombro, tem três nós de escuridão: o nó da noite, o nó do
nada, o nó do não”.
Sobre
a fluidez da sua vida poética, o narrador-notário regista: “Na vida de Sofia,
os livros sucederam-se como as sílabas da primeira palavra dita no mundo. Foi
dessa palavra que ela fez nascer todas as palavras da sua poesia”. Porém, o
canto de intervenção da cidadã atenta à Vida e à História é destacado: “na
intervenção no canto de Sophia, há o grandioso encontro de uma grande cultura
com as suas origens e os seus ocasos, com as suas restituições e as suas
rasuras, com os seus crimes e os seus cumes”. E mais: “Neste canto, o passado é
a grande pergunta do futuro”.
E
o legado inconformista da mulher política pode sintetizar-se no genuíno segmento
retórico do orador: “Ela disse um dia: 'Aos pobres de Portugal é costume dizer:
Tenham paciência. Mas na verdade
devemos dizer: 'Não tenham paciência'”.
–
Por seu turno, a Presidente
da Assembleia da República, no – a meu ver – melhor discurso da efeméride,
recordou a personalidade de Sophia de Mello Breyner Andresen como poeta, mas
também “nos caminhos da política feita com alma”, na luta contra a ditadura do
Estado Novo e como deputada constituinte:
“Vemo-la, então, nos caminhos da política, a política feita com a
alma, busca da felicidade dos homens, entrega inteira. Vemo-la persistente,
buscando para a cidade a forma justa! Buscando a harmonia e a unidade de todos
os homens. Contra o tempo de negação do Estado Novo, anunciando já um outro
tempo” – proclamou Assunção Esteves.
“Vemo-la em ABRIL,
celebrando o dia inicial do 'acordo livre e justo'. Vemo-la à porta de Caxias,
cravos na mão mais certa entre todas as mãos! Vemo-la no Parlamento,
protagonista da nossa Constituição fundadora”, lembrou a segunda figura do
Estado e sublinhou que “Sophia fez da política, da vida e da poesia ideias
líquidas”.
E, apesar de poder ser censurado pela extensão das citações da tão
criticada personalidade parlamentar, inclusive por mim próprio às vezes, não
resisto à tentação de continuar a ruminar as felizes palavras de Assunção sobre
a mulher global, que pôs em cada coisa simples, em cada ação, por minúscula que
parecesse, todo o seu ser, todo o seu empenho:
“Sophia de Mello Breyner representou a 'inteireza do estar na
terra', para recorrer às suas próprias palavras. Uma inteireza que parece
libertar-se da condição humana, uma inteireza impossível que, afinal, se
realiza. Cidadã combatendo com a alma, intelectual, mulher e mãe, Sophia foi
mesmo alguém todo inteiro, arauto de um tempo novo como tempo justo!
E mais: “nascida de uma família de amplos recursos, Sophia mostrou
que a verdadeira riqueza é a que está no coração dos homens”, e “foi capaz de
ver, para lá da sua própria condição, o buraco negro dos injustiçados” – Esta
segunda é, para mim, a afirmação mais empolgante do dia.
Mas a líder do Parlamento continua a perorar sobre a homenageada:
“No seu pensamento está todo o ideal dos justos, toda a coragem
dos justos, a coragem de 'recomeçar cada coisa a partir do princípio', como ela
dizia. A política ali, como revolução transformadora, poema a partir da página
em branco”.
Para Assunção, “Sophia sintetiza todos os sinais emancipadores da
História, todas as vias do puro sublime”.
Por fim, Assunção Esteves alçou as palavras de Sophia de Mello
Breyner Andresen à categoria de “palavras de desafio”: “Para sermos heróis de
um mundo novo, inscrevendo em cada ação a claridade da sua fórmula intemporal:
a relação justa com os homens e a relação justa com as coisas”.
–
O Presidente da República, a quem ficou protocolarmente reservada a última
intervenção discursiva, não foi parco nas referências elogiosas. Cumpre-me
registar dois momentos da sua alocução: um que reputo de interessante pela
tonalidade de Estado de que se reveste; e outro, que alinhadamente com os
oradores que o precederam, emoldura o quadro da personalidade de Sophia na
relação vivencial e literária com outros poetas, sobretudo o Camões da epopeia
e do humanismo.
O
primeiro é aquele em que o Presidente declara:
“No momento em que
se realiza a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional, onde
a partir de hoje repousará, por direito próprio, ao lado de grandes vultos da
cultura e da história portuguesas, é justo homenagear também, a par do seu
génio literário, a grandeza cívica e humana por que sempre se distinguiu”.
Efetivamente, é ao Chefe de Estado que fica bem a asserção de que
Sophia ali repousará por direito próprio, embora ao lado de grandes vultos e
num contexto de homenagem simultânea ao génio literário e à grandeza cívica.
O segundo momento que me apraz evidenciar é o quadro do caixilho
que a seguir se transcreve
“Sophia de Mello Breyner foi
grande pela harmonia e a aura dos seus versos, mas foi igualmente grande pela
inteireza do seu carácter. Ambas as dimensões - a literatura e a vida -
constituem na sua biografia dois ramos da mesma árvore, firme e inabalável. Era
como escrevia e escrevia como era: autêntica, inteira na escrita e na coragem
da defesa da justiça e da liberdade”.
De facto, não é fácil dizer tanto em tão poucas palavras.
***
Finalmente,
apetece-me terminar este arrazoado com uma maldade, ou seja, clamar que as
altas figuras do Estado e os serviços da República só são incompetentes quando querem
ou quando estão distraídos. Efetivamente, pondo de parte algum pormenor de
importância meramente marginal menos bem conseguido, a cerimónia honrou o
Estado e é digna da democracia, pela postura, pela apresentação, pelos
discursos, pelas manifestações artísticas e pelo desenvolvimento protocolar.
Por isso, são mais responsáveis e culpados quando fazem mal: é que não será por
não saberem, mas por quererem ou por falta de empenhamento. “Perdoai-lhes,
Senhor, porque eles sabem o que fazem”!
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