O atual Presidente da República
habituou as portuguesas e os portugueses a um estranho procedimento em relação
a um dos seus poderes presidenciais mais significativos e mais frequentes: a
promulgação dos decretos da Assembleia da República e do Governo que, com a
promulgação, assumem a forma de leis, no caso de a sua proveniência vir da
Assembleia, e de decreto-lei ou de decreto regulamentar, se provierem do
Governo e resultarem, respetivamente, das competências legislativas do
executivo ou das suas competências regulamentares.
Quanto às leis, o Parlamento tem
competências (vd CRP, art.os 161.º-163.º) no âmbito da reserva absoluta (vd
CRP, art.º 164.º) e
da reserva relativa (vd CRP, art.º 165.º), bem como sobre matérias cujo
âmbito pode caber na área de competência de um ou de outro órgão. Ou seja, no
primeiro caso, só aos deputados compete a discussão e a aprovação dos diplomas
que hão de valer como lei; no segundo caso, embora a competência seja da
Assembleia, o governo pode legislar, desde que a Assembleia o autorize, através
da competente lei de autorização e mediante determinadas condições (vd
CRP, art.º 165.º). O
governo, por seu turno, pode legislar em matérias da sua exclusiva competência,
em matérias da competência de reserva relativa da Assembleia, nos termos já
referidos, e em matérias de áreas de competências comuns (vd
CRP, art.º 198.º).
No entanto, quando o Governo assume funções legislativas (através de diploma
que terá a forma de decreto-lei), fica aberta a possibilidade de um grupo de
deputados, nos termos constitucionais e regimentais (vd
CRP, art.º 169.º), “salvo
os aprovados no exercício da exclusiva competência do Governo”, suscitar a
discussão parlamentar do decreto-lei já em vigor. E o resultado pode ser a
confirmação tácita, a anulação total através de resolução da Assembleia,
carecendo de publicação no Diário da República (I Série) ou a aceitação com alterações,
a introduzir por lei.
Coisa diferente é a iniciativa da
lei e do referendo. Esta vem estabelecida e regulamentada no art.º 167.º da CRP
e cabe aos deputados, sob a forma de projeto, ao governo, sob a forma de
proposta, e a grupos de cidadãos eleitores, sob a forma de petição.
Concluído o processo legislativo
e/ou decretal, do Parlamento ou do Governo, compete ao Presidente da República,
depois da necessária análise, proceder à respetiva promulgação ou exercer o
poder de veto político (vd CRP, art.º 136.º) solicitando nova apreciação do
diploma em mensagem fundamentada, no caso de diploma parlamentar, ou
comunicando por escrito ao Governo o sentido do veto, no caso de diploma
governamental.
Por outro lado, segundo art.º
278.º/1 da CRP, “o Presidente da República pode requerer ao Tribunal
Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma
constante de tratado internacional que lhe tenha sido submetido para ratificação,
de decreto que lhe tenha sido enviado para promulgação como lei ou como
decreto-lei ou de acordo internacional cujo decreto de aprovação lhe tenha sido
remetido para assinatura”.
Se o Tribunal Constitucional se
pronunciar pela inconstitucionalidade de norma constante de qualquer decreto ou
acordo internacional, deverá o diploma ser vetado pelo Presidente da República e
devolvido ao órgão que o tiver aprovado. O decreto não poderá ser promulgado ou
assinado sem que o órgão que o tiver aprovado expurgue a norma julgada
inconstitucional ou, quando for caso disso, o confirme por maioria de dois
terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos
Deputados em efetividade de funções. Se o diploma vier a ser reformulado,
poderá ainda o Presidente da República requerer a apreciação preventiva a
constitucionalidade de qualquer das suas normas. (vd
CRP, art.º 279.º). Mas,
se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela não inconstitucional das normas
submetidas à sua apreciação preventiva, o Presidente pode ainda opor o veto
político nos termos do art.º 136.º da CRP.
Porém, o Presidente não pode
recusar a promulgação da lei de revisão constitucional (vd CRP, art.º 286.º/3).
Os efeitos do veto político são os
seguintes: o diploma do governo ou é corrigido no sentido definido pelo
Presidente e ele o promulgará em devido tempo ou cai por si; o diploma do
Parlamento ou é reformulado nos termos da mensagem presidencial e ele o
promulgará ou então poderá ser objeto de confirmação por maioria absoluta dos
deputados, caso em que o Presidente o promulgará no prazo de oito dias a contar
da sua receção. Será, porém, exigida a maioria de dois terços dos deputados
presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade
de funções, para a confirmação dos decretos que revistam a forma de lei
orgânica, bem como dos que respeitem às seguintes matérias: relações externas;
limites entre o setor público, o setor privado e o setor cooperativo e social
de propriedade dos meios de produção; regulamentação dos atos eleitorais
previstos na Constituição, que não revista a forma de lei orgânica. (vd CRP,
art.º 136.º).
***
Embora a Constituição não o
especifique, pressupõe-se que o Presidente da República exercerá o poder (ou a
obrigação) de promulgar, vetar ou submeter à apreciação do Tribunal
Constitucional um diploma que lhe seja enviado para promulgação, com base na
ponderação que resulte da sua douta análise. Compreende-se que este importante
órgão de soberania, até porque está demasiado exposto a escrutínio público e
porque dispõe de prazos constitucionais relativamente curtos, se muna do
aconselhamento técnico de assessores, conselheiros e mesmo consultores
externos. Também parece legítimo que cidadãos, grupos de deputados e outras
entidades – discordantes ou dubitantes da constitucionalidade dos diplomas em
causa – exerçam as suas pressões contidas e de forma cortês. Eu próprio já o
fiz alguma vez.
Não percebo a índole curial eventualmente
presente no facto de ser o próprio Governo, que, tendo a iniciativa da produção
legislativa, revele publicamente a intenção ou o propósito de solicitar ao
Presidente que submeta à fiscalização prévia do Tribunal Constitucional uma
norma aprovada no Parlamento, onde o Governo dispõe do apoio de uma clara maioria
de deputados e que decidiu no sentido proposto pelo próprio Governo. E o
Presidente também não me parece ter estado bem ao admitir publicamente essa
hipótese de pedido do Primeiro-Ministro, argumentando que também ele próprio,
ao tempo em que exercia aquelas funções, também terá utilizado o mesmo
procedimento. Só que se esqueceu de referir que não dera publicidade a esse
procedimento. Tal como dantes, o Primeiro-Ministro mantém hoje o hábito de
semanalmente se encontrar com o Presidente para observância do estabelecido nos
artigos 190.º e 191.º/1 da CRP. E ninguém sabe, em público, nem tem de saber do
teor desses colóquios.
Como é que tem de transpirar
justamente aquilo que naturalmente coloca em causa o trabalho governativo (o
Primeiro-Ministro tem como colaboradores os ministros e secretários de Estado,
cuja boa fé deve acolher) e a idoneidade da Casa da Democracia? Se o Governo
tem dúvidas da constitucionalidade das propostas de lei que faz aprovar, porque
é que brinca com o fogo, desrespeitando os cúmplices da ação política, e não
procura outras formas de governança? E como é que o Presidente pactua com este “arrapazamento”
do Estado, olvidando alguma compostura que ele próprio outrora imprimiu à
governabilidade e à relação com a Assembleia da República e com os Presidentes
da República de então?
Por seu turno, a Assembleia da
República nem sempre funciona bem como um todo, como seria de esperar. Não
citando algumas tiradas peregrinas da Presidente e alguns dislates de deputados,
devo recordar o caso, obviamente já esquecido, do diploma legislativo que
reorganizava administrativamente o município de Lisboa, reduzindo o número de
freguesias pela agregação de umas tantas e pela definição de limites
territoriais das novas entidades a criar por via legislativa. Já todo o processo
legislativo estava concluído e alguém se apercebeu de erro processual cometido –
e o denunciou oportunamente – que implicava uma real intromissão no território
do município de Loures, naturalmente sem má fé, mas sem a observância
obrigatória de auscultação prévia dos órgãos autárquicos em causa – assembleia
municipal de Loures e a(s) assembleia(s) em causa. Pois, o Parlamento não
encontrou outra forma que não fosse a de solicitar ao Presidente que exercesse
o veto político sobre o normativo enviado (ou a enviar) a Belém. Ora não se
percebe que um processo legislativo concluído em sede parlamentar não possa ser
corrigido por iniciativa parlamentar, se o erro é descoberto antes da
promulgação. Se o regimento não abre a porta para tal, alterem o regimento!
Caso contrário, ficamos a
perceber, sem necessidade de que no-lo expliquem, como é que um diploma já aprovado
em sede parlamentar, quando Cavaco Silva era Primeiro-Ministro, pôde sofrer, no
caminho de São Bento para Belém, uma alteração virgular, a que alegadamente
ficou ligada a movimentação de uns milhares largos de contos (Na ocasião, a
moeda era o escudo!).
Será que um diploma parlamentar,
uma vez munido de guia de marcha para Belém, segue o sistema do brado juliano “Alea iacta est!”, constituindo o
percurso São Bento-Belém o novo Rubicão e o(a) Presidente da Assembleia da
República o novo Júlio César?
Mas, no passado dia 28 de julho,
o senhor Presidente, no seu jeito de comentar diplomas que promulga
(desnecessariamente, até porque a sua palavra deveria ter força e ser utilizada
quando necessário e investir mais nas mensagens de veto), mimoseou-nos com uma
notável pérola política. Promulgou a revisão da lei do segredo de Estado, mas
sugere aos deputados a “reponderação” de algumas normas para que sejam
eliminadas “dúvidas ou equívocos interpretativos”, frisa. (Lê-se em http://expresso.sapo.pt/cavaco-promulga-lei-do-segredo-de-estado-mas-sugere
reponderacao=f883508#ixzz38uIHQPZq).
Em mensagem enviada ao Parlamento,
Cavaco Silva defende uma “reponderação” por parte dos deputados em relação às
normas sobre a desclassificação de matérias, documentos ou informações sujeitos
ao regime do segredo de Estado e sobre a tipificação do crime de violação de
segredo de Estado – “assim eliminando as dúvidas ou equívocos interpretativos
que possam subsistir numa matéria de tão elevada sensibilidade”.
O
Presidente apresenta como exemplo o estabelecido relativamente à
desclassificação, recordando que o n.º 2 do artigo 6.º do anexo estabelece que
“apenas tem competência para desclassificar matérias, documentos ou informações
sujeitos ao regime do segredo de Estado a entidade que procedeu à respetiva
classificação definitiva ou o primeiro-ministro”.
Argumenta
Cavaco Silva, que tal enunciado pode ser interpretado no sentido da atribuição
ao primeiro-ministro da competência para desclassificar matérias que tenham
sido classificadas por outras entidades, como o Presidente da República e o
Presidente da Assembleia da República.
Contudo,
acrescenta, deve sustentar-se “uma interpretação diversa, limitando-se a
competência do primeiro-ministro à desclassificação de documentos que tenham
sido classificados pelos vice-primeiros-ministros e pelos ministros”. E
sustenta que “só esta interpretação permitiu a minha promulgação do diploma”, defendendo,
contudo, que “numa matéria com a importância do regime do segredo de Estado,
não devem subsistir dúvidas ou equívocos interpretativos, pelo que esta
interpretação deve resultar da lei de modo absolutamente claro”.
E o
Presidente da República aduz outro exemplo de similar gravidade, advogando que
seria “desejável” que a tipificação do crime de violação de segredo de Estado “transmitisse
a segurança jurídica que inequivocamente deve resultar da previsão de um
ilícito criminal”. Assim, refere, deveria tornar-se inequívoco que “a
criminalização incide sobre condutas que envolvam a perigosa revelação de
informações, factos ou documentos, planos ou objetos previamente classificados
como segredo de Estado”.
Ora, não
me parece aceitável que o Presidente se estribe na sua peculiar interpretação
para promulgar um diploma, já que não lhe é reconhecida constitucionalmente
capacidade para interpretação autêntica das leis. Essa cabe somente ao
Parlamento. Por isso, o que o Presidente deveria fazer, com base na necessidade
de “reponderação” que exprime – e bem – e no défice jurídico que põe a nu, era
utilizar o poder de veto, se efetivamente acredita no teor da mensagem que
dirigiu aos deputados. É a ética da convicção a exigir consequências.
Não
creio, pelo acima exposto, que lhe caiba constitucionalmente a iniciativa da
lei. E o pedido da reponderação é uma recomendação de lei: alterar lei é
legislar, não é, senhor Presidente? Não é, senhores Deputados? E há sempre
formas de atuar de outra maneira, de melhor maneira!
Cf ainda: Canotilho, J. – Moreira, V. (2008). Constituição da República Portuguesa – Lei do
Tribunal Constitucional. 8.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora; Fernandes, A.
(1995). Introdução à Ciência Política –
teorias, métodos e temáticas. Porto: Porto Editora; Morais, C. (2007). Manual de Legística – critérios científicos
e técnicos para legislar melhor. Lisboa: Editorial Verbo; Neves, M. (2008).
Semiótica Linguística e Hermenêutica do
Texto Jurídico. Lisboa: Instituto Piaget.
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