quarta-feira, 30 de julho de 2014

Estranha forma de gerir a promulgação das leis

O atual Presidente da República habituou as portuguesas e os portugueses a um estranho procedimento em relação a um dos seus poderes presidenciais mais significativos e mais frequentes: a promulgação dos decretos da Assembleia da República e do Governo que, com a promulgação, assumem a forma de leis, no caso de a sua proveniência vir da Assembleia, e de decreto-lei ou de decreto regulamentar, se provierem do Governo e resultarem, respetivamente, das competências legislativas do executivo ou das suas competências regulamentares.
Quanto às leis, o Parlamento tem competências (vd CRP, art.os 161.º-163.º) no âmbito da reserva absoluta (vd CRP, art.º 164.º) e da reserva relativa (vd CRP, art.º 165.º), bem como sobre matérias cujo âmbito pode caber na área de competência de um ou de outro órgão. Ou seja, no primeiro caso, só aos deputados compete a discussão e a aprovação dos diplomas que hão de valer como lei; no segundo caso, embora a competência seja da Assembleia, o governo pode legislar, desde que a Assembleia o autorize, através da competente lei de autorização e mediante determinadas condições (vd CRP, art.º 165.º). O governo, por seu turno, pode legislar em matérias da sua exclusiva competência, em matérias da competência de reserva relativa da Assembleia, nos termos já referidos, e em matérias de áreas de competências comuns (vd CRP, art.º 198.º). No entanto, quando o Governo assume funções legislativas (através de diploma que terá a forma de decreto-lei), fica aberta a possibilidade de um grupo de deputados, nos termos constitucionais e regimentais (vd CRP, art.º 169.º), “salvo os aprovados no exercício da exclusiva competência do Governo”, suscitar a discussão parlamentar do decreto-lei já em vigor. E o resultado pode ser a confirmação tácita, a anulação total através de resolução da Assembleia, carecendo de publicação no Diário da República (I Série) ou a aceitação com alterações, a introduzir por lei.
Coisa diferente é a iniciativa da lei e do referendo. Esta vem estabelecida e regulamentada no art.º 167.º da CRP e cabe aos deputados, sob a forma de projeto, ao governo, sob a forma de proposta, e a grupos de cidadãos eleitores, sob a forma de petição.
Concluído o processo legislativo e/ou decretal, do Parlamento ou do Governo, compete ao Presidente da República, depois da necessária análise, proceder à respetiva promulgação ou exercer o poder de veto político (vd CRP, art.º 136.º) solicitando nova apreciação do diploma em mensagem fundamentada, no caso de diploma parlamentar, ou comunicando por escrito ao Governo o sentido do veto, no caso de diploma governamental.
Por outro lado, segundo art.º 278.º/1 da CRP, “o Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional que lhe tenha sido submetido para ratificação, de decreto que lhe tenha sido enviado para promulgação como lei ou como decreto-lei ou de acordo internacional cujo decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura”.
Se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela inconstitucionalidade de norma constante de qualquer decreto ou acordo internacional, deverá o diploma ser vetado pelo Presidente da República e devolvido ao órgão que o tiver aprovado. O decreto não poderá ser promulgado ou assinado sem que o órgão que o tiver aprovado expurgue a norma julgada inconstitucional ou, quando for caso disso, o confirme por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções. Se o diploma vier a ser reformulado, poderá ainda o Presidente da República requerer a apreciação preventiva a constitucionalidade de qualquer das suas normas. (vd CRP, art.º 279.º). Mas, se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela não inconstitucional das normas submetidas à sua apreciação preventiva, o Presidente pode ainda opor o veto político nos termos do art.º 136.º da CRP.
Porém, o Presidente não pode recusar a promulgação da lei de revisão constitucional (vd CRP, art.º 286.º/3).
Os efeitos do veto político são os seguintes: o diploma do governo ou é corrigido no sentido definido pelo Presidente e ele o promulgará em devido tempo ou cai por si; o diploma do Parlamento ou é reformulado nos termos da mensagem presidencial e ele o promulgará ou então poderá ser objeto de confirmação por maioria absoluta dos deputados, caso em que o Presidente o promulgará no prazo de oito dias a contar da sua receção. Será, porém, exigida a maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções, para a confirmação dos decretos que revistam a forma de lei orgânica, bem como dos que respeitem às seguintes matérias: relações externas; limites entre o setor público, o setor privado e o setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção; regulamentação dos atos eleitorais previstos na Constituição, que não revista a forma de lei orgânica. (vd CRP, art.º 136.º).
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Embora a Constituição não o especifique, pressupõe-se que o Presidente da República exercerá o poder (ou a obrigação) de promulgar, vetar ou submeter à apreciação do Tribunal Constitucional um diploma que lhe seja enviado para promulgação, com base na ponderação que resulte da sua douta análise. Compreende-se que este importante órgão de soberania, até porque está demasiado exposto a escrutínio público e porque dispõe de prazos constitucionais relativamente curtos, se muna do aconselhamento técnico de assessores, conselheiros e mesmo consultores externos. Também parece legítimo que cidadãos, grupos de deputados e outras entidades – discordantes ou dubitantes da constitucionalidade dos diplomas em causa – exerçam as suas pressões contidas e de forma cortês. Eu próprio já o fiz alguma vez.
Não percebo a índole curial eventualmente presente no facto de ser o próprio Governo, que, tendo a iniciativa da produção legislativa, revele publicamente a intenção ou o propósito de solicitar ao Presidente que submeta à fiscalização prévia do Tribunal Constitucional uma norma aprovada no Parlamento, onde o Governo dispõe do apoio de uma clara maioria de deputados e que decidiu no sentido proposto pelo próprio Governo. E o Presidente também não me parece ter estado bem ao admitir publicamente essa hipótese de pedido do Primeiro-Ministro, argumentando que também ele próprio, ao tempo em que exercia aquelas funções, também terá utilizado o mesmo procedimento. Só que se esqueceu de referir que não dera publicidade a esse procedimento. Tal como dantes, o Primeiro-Ministro mantém hoje o hábito de semanalmente se encontrar com o Presidente para observância do estabelecido nos artigos 190.º e 191.º/1 da CRP. E ninguém sabe, em público, nem tem de saber do teor desses colóquios.
Como é que tem de transpirar justamente aquilo que naturalmente coloca em causa o trabalho governativo (o Primeiro-Ministro tem como colaboradores os ministros e secretários de Estado, cuja boa fé deve acolher) e a idoneidade da Casa da Democracia? Se o Governo tem dúvidas da constitucionalidade das propostas de lei que faz aprovar, porque é que brinca com o fogo, desrespeitando os cúmplices da ação política, e não procura outras formas de governança? E como é que o Presidente pactua com este “arrapazamento” do Estado, olvidando alguma compostura que ele próprio outrora imprimiu à governabilidade e à relação com a Assembleia da República e com os Presidentes da República de então?
Por seu turno, a Assembleia da República nem sempre funciona bem como um todo, como seria de esperar. Não citando algumas tiradas peregrinas da Presidente e alguns dislates de deputados, devo recordar o caso, obviamente já esquecido, do diploma legislativo que reorganizava administrativamente o município de Lisboa, reduzindo o número de freguesias pela agregação de umas tantas e pela definição de limites territoriais das novas entidades a criar por via legislativa. Já todo o processo legislativo estava concluído e alguém se apercebeu de erro processual cometido – e o denunciou oportunamente – que implicava uma real intromissão no território do município de Loures, naturalmente sem má fé, mas sem a observância obrigatória de auscultação prévia dos órgãos autárquicos em causa – assembleia municipal de Loures e a(s) assembleia(s) em causa. Pois, o Parlamento não encontrou outra forma que não fosse a de solicitar ao Presidente que exercesse o veto político sobre o normativo enviado (ou a enviar) a Belém. Ora não se percebe que um processo legislativo concluído em sede parlamentar não possa ser corrigido por iniciativa parlamentar, se o erro é descoberto antes da promulgação. Se o regimento não abre a porta para tal, alterem o regimento!
Caso contrário, ficamos a perceber, sem necessidade de que no-lo expliquem, como é que um diploma já aprovado em sede parlamentar, quando Cavaco Silva era Primeiro-Ministro, pôde sofrer, no caminho de São Bento para Belém, uma alteração virgular, a que alegadamente ficou ligada a movimentação de uns milhares largos de contos (Na ocasião, a moeda era o escudo!).
Será que um diploma parlamentar, uma vez munido de guia de marcha para Belém, segue o sistema do brado juliano “Alea iacta est!”, constituindo o percurso São Bento-Belém o novo Rubicão e o(a) Presidente da Assembleia da República o novo Júlio César?
Mas, no passado dia 28 de julho, o senhor Presidente, no seu jeito de comentar diplomas que promulga (desnecessariamente, até porque a sua palavra deveria ter força e ser utilizada quando necessário e investir mais nas mensagens de veto), mimoseou-nos com uma notável pérola política. Promulgou a revisão da lei do segredo de Estado, mas sugere aos deputados a “reponderação” de algumas normas para que sejam eliminadas “dúvidas ou equívocos interpretativos”, frisa. (Lê-se em http://expresso.sapo.pt/cavaco-promulga-lei-do-segredo-de-estado-mas-sugere reponderacao=f883508#ixzz38uIHQPZq).
Em mensagem enviada ao Parlamento, Cavaco Silva defende uma “reponderação” por parte dos deputados em relação às normas sobre a desclassificação de matérias, documentos ou informações sujeitos ao regime do segredo de Estado e sobre a tipificação do crime de violação de segredo de Estado – “assim eliminando as dúvidas ou equívocos interpretativos que possam subsistir numa matéria de tão elevada sensibilidade”.
O Presidente apresenta como exemplo o estabelecido relativamente à desclassificação, recordando que o n.º 2 do artigo 6.º do anexo estabelece que “apenas tem competência para desclassificar matérias, documentos ou informações sujeitos ao regime do segredo de Estado a entidade que procedeu à respetiva classificação definitiva ou o primeiro-ministro”.
Argumenta Cavaco Silva, que tal enunciado pode ser interpretado no sentido da atribuição ao primeiro-ministro da competência para desclassificar matérias que tenham sido classificadas por outras entidades, como o Presidente da República e o Presidente da Assembleia da República.
Contudo, acrescenta, deve sustentar-se “uma interpretação diversa, limitando-se a competência do primeiro-ministro à desclassificação de documentos que tenham sido classificados pelos vice-primeiros-ministros e pelos ministros”. E sustenta que “só esta interpretação permitiu a minha promulgação do diploma”, defendendo, contudo, que “numa matéria com a importância do regime do segredo de Estado, não devem subsistir dúvidas ou equívocos interpretativos, pelo que esta interpretação deve resultar da lei de modo absolutamente claro”.
E o Presidente da República aduz outro exemplo de similar gravidade, advogando que seria “desejável” que a tipificação do crime de violação de segredo de Estado “transmitisse a segurança jurídica que inequivocamente deve resultar da previsão de um ilícito criminal”. Assim, refere, deveria tornar-se inequívoco que “a criminalização incide sobre condutas que envolvam a perigosa revelação de informações, factos ou documentos, planos ou objetos previamente classificados como segredo de Estado”.
Ora, não me parece aceitável que o Presidente se estribe na sua peculiar interpretação para promulgar um diploma, já que não lhe é reconhecida constitucionalmente capacidade para interpretação autêntica das leis. Essa cabe somente ao Parlamento. Por isso, o que o Presidente deveria fazer, com base na necessidade de “reponderação” que exprime – e bem – e no défice jurídico que põe a nu, era utilizar o poder de veto, se efetivamente acredita no teor da mensagem que dirigiu aos deputados. É a ética da convicção a exigir consequências.
Não creio, pelo acima exposto, que lhe caiba constitucionalmente a iniciativa da lei. E o pedido da reponderação é uma recomendação de lei: alterar lei é legislar, não é, senhor Presidente? Não é, senhores Deputados? E há sempre formas de atuar de outra maneira, de melhor maneira!

Cf ainda: Canotilho, J. – Moreira, V. (2008). Constituição da República Portuguesa – Lei do Tribunal Constitucional. 8.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora; Fernandes, A. (1995). Introdução à Ciência Política – teorias, métodos e temáticas. Porto: Porto Editora; Morais, C. (2007). Manual de Legística – critérios científicos e técnicos para legislar melhor. Lisboa: Editorial Verbo; Neves, M. (2008). Semiótica Linguística e Hermenêutica do Texto Jurídico. Lisboa: Instituto Piaget.

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