segunda-feira, 14 de julho de 2014

No rescaldo do Mundial de Futebol 2014…

Terminou a 13 de julho o Campeonato do Mundo de Futebol de 2014, com o jogo da final disputada entre as seleções da Alemanha e da Argentina, com a vitória da Alemanha por um golo a zero, decidida só na segunda metade do prolongamento.
Sobre o jogo, em que se registaram falhas e méritos de parte a parte, mas com uma Argentina extenuada, percebia-se o receio recíproco de perder, pelo que se reforçava a tática de defesa e se espreitava a oportunidade de abrir uma via de contra-ataque, já que, em boa verdade, o que interessava mesmo era ganhar. E, afinal, ganhou quem foi melhor no jogo final, quem melhor desempenho demonstrou ao longo do campeonato ou quem foi mais bafejado pela sorte. O certo é que alguém ganhou e alguém perdeu. Aqui, o resultado não é de meias tintas como é usual em eleições portuguesas em que todos ganham de alguma maneira. E, assim, uns choraram e outros ficaram eufóricos. É jogo, que de algum modo é imagem da vida: a vida é um jogo, chora quem perde e quem ganha ri (como cantava Nada Malanima no festival de San Remo, em 1972).
No entanto, no fim de tudo, as duas seleções, os técnicos, os dirigentes, a arbitragem, os representantes das nações deram um normal testemunho de cavalheirismo e do sadio saber perder e do saber ganhar. O mesmo não sucedeu na totalidade com os adeptos (torcedores), dado que a informação policial dá conta de atos de violência logo à saída do estádio entre torcedores da Argentina e do Brasil (na esteira de velha rivalidade) e nas imediações da praia de Copacabana, onde milhares visualizaram o espetáculo através de ecrã gigante. Coisa semelhante se terá passado em Buenos Aires por indisposição pela derrota da equipa.
Este desafio mundial deixou pelo caminho seleções tidas como fortes e colocou em plano relevante, por motivos nada agradáveis, a seleção canarinha, que levou uma goleada da Alemanha à razão de um golo por cada dia da semana, ainda que com um golo sabático de ineficaz consolação.
Quanto aos portugueses, deslumbrados com o mundo novo do Brasil e com os fãs de Ronaldo a solicitarem autógrafos, souberam-lhes a fel bem amargo os quatro golos a zero infligidos pela equipa da chancelerina Merkel, cujo selecionador confessara estar a preparar a forma como controlar Ronaldo e Moutinho. É certo que não basta dispor-se de bom jogador, mas é necessário haver equipa com sentido de cooperação, como é preciso em equipa com espírito cooperativo haver quem por ela puxe, suscitando trabalho de forma racional e empenhada.
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No momento em que se apuraram para a final as equipas da Alemanha e da Argentina, por isso, apelidada de “a final dos dois papas”, houve alguém que alvitrou a hipótese de os dois “amigos” assistirem juntos ao espetáculo de futebol pela TV entre as seleções dos dois países, já que o Papa emérito é alemão e o Papa em exercício é argentino. A formulação de tal hipótese levou o porta-voz do Vaticano a admitir que o papa Francisco pudesse querer ver a final do Mundial 2014, mas acrescentando que o Papa emérito nunca viu um jogo de futebol completo em 87 anos de vida, pelo que seria “altamente improvável” que o papa Francisco visse a final do Mundial 2014 de futebol na companhia de Bento XVI. Quando mais não fosse, os hábitos a que um e outro se afizeram por motivos de disciplina pessoal e rotina justificariam este pecadito de omissão. Porém, a idade provecta de Bento e algum défice natural de saúde desaconselhariam esta penitência seroada.
No entanto, não deixo de recordar àqueles que simpatizam com Francisco apenas pelo que ele aparenta, e não tanto por aquilo que ele é e representa, e ao mesmo tempo hostilizam ou esquecem a disciplina ou doutrina preconizadas pelo alemão que foi pastor da Igreja Católica, que ganhou, em jogo de Papas, aquele que já não o é, mas merecia ter sido mais ouvido. E Francisco, o Papa que é, ainda tem muito que dar à Igreja e ao Mundo, se Deus quiser e os homens deixarem.
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Em maré de Papas a jogo (Francisco produziu oportunamente uma curiosa mensagem pontifícia para a Copa do Mundo no Brasil, segundo alguns, a solicitação de Dilma Roussef, e a que mais à frente se fará breve referência), surge-me pretexto para oportuna viagem excursionista pela posição dos Papas dos últimos tempos. E, para me poupar a esforços, sirvo-me de uma espécie de guião consubstanciado grosso modo num texto de Anselmo Borges, que o terá gizado provavelmente com outra intencionalidade e para outro efeito.
Segundo o insigne colunista, apoiado no livro Pio X e o Desporto, de Antonella Stelitano, o Papa Pio X foi promotor dos Jogos Olímpicos, em 1908. Devido a grave crise económica, os jogos não puderam realizar-se, como agendado, em Roma, pelo que a celebração se transferiu para Londres; e Pierre de Coubertin, o instigador dos Jogos Olímpicos modernos, pediu ajuda à Santa Sé, tendo recebido o apoio do próprio Pio X.
Mais: ao notar que, nos começos do século XX, menos de um por cento da população ativa praticava desporto, o Papa Pio X, que via nesta vertente de atividade uma peculiar forma de educação dos jovens, propunha o desporto como “forma de aproximar os jovens, para que, estando juntos, seguissem regras e respeitassem o adversário”, entendendo que “era possível fazer com que as pessoas estivessem juntas de uma forma simples, unidas sem problemas de raça, religião ou ideias políticas diferentes”. E, dada a dificuldade em se compreender nessa altura a licitude e o valor da ginástica, o próprio Papa terá assegurado a um dos cardeais: “Muito bem! Se não entendem que é algo que se pode fazer, pôr-me-ei eu próprio a fazer ginástica diante de todos e assim verão que, se o Papa a pratica, todos a podem praticar”.
Não obstante o desporto ser pasto de interesses nada desportivos – como os negócios, a “venda” de pessoas, a flutuação de posições, alguma violência, a corrupção derivada da hegemonia da empresarialização, a idolatria de pessoas, as humilhações, as frustrações – nunca poderá ser esquecido o lema emblemático mens sana in corpore sano (mente sã num corpo são) e os Papas recentes não deixaram de acentuar o valor do desporto e a importância da necessária assunção da verdadeira atitude de desportista.
O espiritual Pio XII, considerado “o amigo dos desportistas”, foi o primeiro a mandar instalar um ginásio no Vaticano e ensinava que o sentido e o objetivo do “desporto”, sã e cristãmente entendido, é o cultivo da dignidade e da harmonia do corpo humano, o desenvolvimento da saúde, o vigor, a agilidade e a graça do mesmo. E acrescentava:
O desporto, adequadamente dirigido, desenvolve o caráter, faz do ser humano uma pessoa valorosa, que perde com generosidade e vence sem presunção; ele afina os sentidos, ilumina a mente e forja uma vontade de ferro para perseverar. Não é só desenvolvimento físico. O desporto corretamente entendido tem em conta o homem todo.
O bom Papa João XXIII, convicto de que o desporto pode contribuir para a formação integral do ser humano e para a paz e fraternidade universal, anota que o desporto “constitui um dos fenómenos mais vivos e interessantes da cultura contemporânea”.
(cf Anselmo Borges, in Diário de Notícias, 18.08.2012)
Por seu turno, o Concílio Vaticano II referiu-se explicitamente ao desporto na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, no âmbito das relações entre a Igreja e o mundo contemporâneo, colocando-o no setor da cultura, isto é, no quadro ético e estético em que se sublinha a capacidade interpretativa da vida, da pessoa e das suas múltiplas relações:
Com efeito, com a diminuição generalizada do tempo de trabalho, crescem progressivamente para muitos homens as facilidades para tal. Os tempos livres sejam bem empregados para descanso do espírito e saúde da alma e do corpo, ora com atividades e estudos livremente escolhidos, ora com viagens a outras regiões (turismo), com as quais se educa o espírito e os homens se enriquecem com o conhecimento mútuo, ora também com exercícios e manifestações desportivas, que contribuem para manter o equilíbrio psíquico, mesmo na comunidade, e para estabelecer relações fraternas entre os homens de todas as condições e nações, ou de raças diversas. Colaborem, portanto, os cristãos, a fim de que as manifestações e atividades culturais coletivas, caraterísticas do nosso tempo, sejam penetradas de espírito humano e cristão. (GS 61).
Paulo VI, dirigindo-se aos atletas das XIX Olimpíadas: “Procedeis de tantos países, representais ambientes e culturas, mas une-vos um ideal idêntico: ligar todos os homens com a amizade, a compreensão, a estima recíproca” – o que é sintoma de que “a vossa meta final é mais elevada: a paz universal”.
João Paulo II, o Papa dos desportistas, que também, como Pio XII, se dedicou durante muito tempo à prática do desporto, apelou:
Sede conscientes da vossa responsabilidade. Não apenas o campeão no estádio, também o homem com toda a sua pessoa deve converter-se num modelo para milhões de jovens, que têm necessidade de “líderes” e não de “ídolos”.
(cf Anselmo Borges, in Diário de Notícias, 18.08.2012)
Bento XVI, na receção, em 17 de dezembro de 2012, aos atletas que representaram a Itália nos Jogos Olímpicos de Londres, propôs a ética de “um desporto ao serviço do homem e não o homem ao serviço do desporto”. E, ao observar que aos atletas se pede mais do que o simples competir e obter bons resultados, assegurou:
Toda e qualquer atividade desportiva, tanto a nível de amadores como de competição, exige lealdade, respeito pelo próprio corpo, sentido de solidariedade e altruísmo, mas também alegria, satisfação, festa. […].
O que pressupõe um caminho de autêntica maturação humana, feita de renúncias, de tenacidade, de paciência, e sobretudo de humildade, que não suscita aplausos, mas que é o segredo da vitória. Um desporto que queira ter pleno sentido para quem o pratica, deve estar sempre ao serviço da pessoa. O que está em jogo não é apenas o respeito das regras, mas a visão do homem, do homem que pratica desporto e que, ao mesmo tempo, tem necessidade de educação, de espiritualidade e de valores transcendentes.
Na aludida mensagem que enviou por ocasião da Abertura da Copa do Mundo de Futebol 2014 no Brasil, Francisco exprime a esperança de que, “além de festa do esporte (desporto), esta Copa do Mundo possa tornar-se a festa da solidariedade entre os povos”. Tal, porém, pressupõe que “as competições futebolísticas sejam consideradas por aquilo que no fundo são: um jogo e ao mesmo tempo uma ocasião de diálogo, de compreensão, de enriquecimento humano recíproco”.
Reconhecendo que o desporto não é só uma forma de entretenimento, mas sobretudo um valioso instrumento para comunicar valores que promovem o bem da pessoa humana e ajudam na construção de uma sociedade mais pacífica e fraterna, o Papa apela à lealdade, à perseverança, à amizade, à partilha, à solidariedade. E chega a afirmar que o desporto “é escola da paz, ensina-nos a construir a paz.
Mas o Papa vai ao ponto de enunciar claramente as três lições da prática desportiva ou as três atitudes essenciais para a desejavelmente normal causa da paz, um pouco à imagem do que se passa na vida: “a necessidade de ‘treinar’, o ‘fair play’ e a honra entre os competidores”. E, com agudo sentido de oportunidade, propõe especificamente o futebol como escola para a construção de uma “cultura do encontro”.
E conclui em jeito de advertência e atitude otimista:
O segredo da vitória, no campo, mas também na vida, está em saber respeitar o companheiro do meu time, mas também o meu adversário. Ninguém vence sozinho, nem no campo, nem na vida! Que ninguém se isole e se sinta excluído! Atenção! Não à segregação, não ao racismo! E, se é verdade que, ao término deste Mundial, somente uma seleção nacional poderá levantar a taça como vencedora, aprendendo as lições que o esporte nos ensina, todos vão sair vencedores, fortalecendo os laços que nos unem.
Será que todos os implicados no ato desportivo de que o Brasil foi anfitrião apreenderam as lições que estes homens de Deus pretendem tirar da prática desportiva para proveito de todos? Terá valido a pena, para a edificação da paz internacional, que a FIFA tenha falado mais alto do que os protestos, anónimos ou frontais, dos que bradam por alimentação, segurança nas ruas, proteção social, educação, saúde, emprego, transportes públicos, relação laboral sadia? Terão os governos do Brasil (federal e estaduais) a capacidade de resposta às necessidades interna similar àquela que demonstraram possuir para satisfazer os compromissos internacionais que assumiram?

Se o povo romano queria pão e circo, é óbvio que primeiro tem de vir o pão!

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