Terminou a 13 de julho o
Campeonato do Mundo de Futebol de 2014, com o jogo da final disputada entre as
seleções da Alemanha e da Argentina, com a vitória da Alemanha por um golo a
zero, decidida só na segunda metade do prolongamento.
Sobre o jogo, em que se
registaram falhas e méritos de parte a parte, mas com uma Argentina extenuada,
percebia-se o receio recíproco de perder, pelo que se reforçava a tática de
defesa e se espreitava a oportunidade de abrir uma via de contra-ataque, já
que, em boa verdade, o que interessava mesmo era ganhar. E, afinal, ganhou quem
foi melhor no jogo final, quem melhor desempenho demonstrou ao longo do campeonato
ou quem foi mais bafejado pela sorte. O certo é que alguém ganhou e alguém perdeu.
Aqui, o resultado não é de meias tintas como é usual em eleições portuguesas em
que todos ganham de alguma maneira. E, assim, uns choraram e outros ficaram
eufóricos. É jogo, que de algum modo é imagem da vida: a vida é um jogo, chora quem perde e quem ganha ri (como cantava Nada
Malanima no festival de San Remo, em 1972).
No entanto, no fim de tudo, as duas
seleções, os técnicos, os dirigentes, a arbitragem, os representantes das
nações deram um normal testemunho de cavalheirismo e do sadio saber perder e do
saber ganhar. O mesmo não sucedeu na totalidade com os adeptos (torcedores),
dado que a informação policial dá conta de atos de violência logo à saída do
estádio entre torcedores da Argentina e do Brasil (na esteira de velha
rivalidade) e nas imediações da praia de Copacabana, onde milhares visualizaram
o espetáculo através de ecrã gigante. Coisa semelhante se terá passado em Buenos
Aires por indisposição pela derrota da equipa.
Este desafio mundial deixou pelo
caminho seleções tidas como fortes e colocou em plano relevante, por motivos nada
agradáveis, a seleção canarinha, que levou uma goleada da Alemanha à razão de
um golo por cada dia da semana, ainda que com um golo sabático de ineficaz consolação.
Quanto aos portugueses,
deslumbrados com o mundo novo do Brasil e com os fãs de Ronaldo a solicitarem
autógrafos, souberam-lhes a fel bem amargo os quatro golos a zero infligidos pela
equipa da chancelerina Merkel, cujo selecionador confessara estar a preparar a
forma como controlar Ronaldo e Moutinho. É certo que não basta dispor-se de bom
jogador, mas é necessário haver equipa com sentido de cooperação, como é
preciso em equipa com espírito cooperativo haver quem por ela puxe, suscitando
trabalho de forma racional e empenhada.
***
No momento em que se apuraram
para a final as equipas da Alemanha e da Argentina, por isso, apelidada de “a
final dos dois papas”, houve alguém que alvitrou a hipótese de os dois “amigos”
assistirem juntos ao espetáculo de futebol pela TV entre as seleções dos dois
países, já que o Papa emérito é alemão e o Papa em exercício é argentino. A formulação
de tal hipótese levou o porta-voz do
Vaticano a admitir que o papa Francisco pudesse querer ver a final do Mundial
2014, mas acrescentando que o Papa emérito nunca viu um jogo de futebol
completo em 87 anos de vida, pelo que seria “altamente improvável” que o
papa Francisco visse a final do Mundial 2014 de futebol na companhia de Bento
XVI. Quando mais não fosse, os hábitos a que um e outro se afizeram por motivos
de disciplina pessoal e rotina justificariam este pecadito de omissão. Porém, a
idade provecta de Bento e algum défice natural de saúde desaconselhariam esta penitência
seroada.
No entanto, não deixo de recordar
àqueles que simpatizam com Francisco apenas pelo que ele aparenta, e não tanto por
aquilo que ele é e representa, e ao mesmo tempo hostilizam ou esquecem a disciplina
ou doutrina preconizadas pelo alemão que foi pastor da Igreja Católica, que ganhou,
em jogo de Papas, aquele que já não o é, mas merecia ter sido mais ouvido. E Francisco,
o Papa que é, ainda tem muito que dar à Igreja e ao Mundo, se Deus quiser e os
homens deixarem.
***
Em maré de Papas a jogo (Francisco
produziu oportunamente uma curiosa mensagem pontifícia para a Copa do Mundo no
Brasil, segundo alguns, a solicitação de Dilma Roussef, e a que mais à frente se
fará breve referência), surge-me pretexto para oportuna viagem excursionista pela
posição dos Papas dos últimos tempos. E, para me poupar a esforços, sirvo-me de
uma espécie de guião consubstanciado grosso
modo num texto de Anselmo Borges, que o terá gizado provavelmente com outra
intencionalidade e para outro efeito.
Segundo o insigne colunista,
apoiado no livro Pio X e o Desporto,
de Antonella Stelitano, o Papa Pio X foi promotor dos Jogos Olímpicos, em 1908.
Devido a grave crise económica, os jogos não puderam realizar-se, como
agendado, em Roma, pelo que a celebração se transferiu para Londres; e Pierre
de Coubertin, o instigador dos Jogos Olímpicos modernos, pediu ajuda à Santa
Sé, tendo recebido o apoio do próprio Pio X.
Mais: ao notar que, nos começos
do século XX, menos de um por cento da população ativa praticava desporto, o Papa
Pio X, que via nesta vertente de atividade uma peculiar forma de educação dos
jovens, propunha o desporto como “forma de aproximar os jovens, para que,
estando juntos, seguissem regras e respeitassem o adversário”, entendendo que “era
possível fazer com que as pessoas estivessem juntas de uma forma simples,
unidas sem problemas de raça, religião ou ideias políticas diferentes”. E, dada
a dificuldade em se compreender nessa altura a licitude e o valor da ginástica,
o próprio Papa terá assegurado a um dos cardeais: “Muito bem! Se não entendem
que é algo que se pode fazer, pôr-me-ei eu próprio a fazer ginástica diante de
todos e assim verão que, se o Papa a pratica, todos a podem praticar”.
Não obstante o desporto ser pasto
de interesses nada desportivos – como os negócios, a “venda” de pessoas, a
flutuação de posições, alguma violência, a corrupção derivada da hegemonia da
empresarialização, a idolatria de pessoas, as humilhações, as frustrações – nunca
poderá ser esquecido o lema emblemático mens
sana in corpore sano (mente sã num corpo são) e os Papas recentes não
deixaram de acentuar o valor do desporto e a importância da necessária assunção
da verdadeira atitude de desportista.
O espiritual Pio XII, considerado
“o amigo dos desportistas”, foi o primeiro a mandar instalar um ginásio no
Vaticano e ensinava que o sentido e o objetivo do “desporto”, sã e cristãmente
entendido, é o cultivo da dignidade e da harmonia do corpo humano, o desenvolvimento
da saúde, o vigor, a agilidade e a graça do mesmo. E acrescentava:
O
desporto, adequadamente dirigido, desenvolve o caráter, faz do ser humano uma
pessoa valorosa, que perde com generosidade e vence sem presunção; ele afina os
sentidos, ilumina a mente e forja uma vontade de ferro para perseverar. Não é
só desenvolvimento físico. O desporto corretamente entendido tem em conta o
homem todo.
O bom Papa João XXIII, convicto
de que o desporto pode contribuir para a formação integral do ser humano e para
a paz e fraternidade universal, anota que o desporto “constitui um dos
fenómenos mais vivos e interessantes da cultura contemporânea”.
(cf
Anselmo Borges, in Diário de
Notícias, 18.08.2012)
Por seu turno, o Concílio
Vaticano II referiu-se explicitamente ao
desporto na Constituição Pastoral Gaudium
et Spes, no âmbito das relações entre a Igreja e o mundo contemporâneo,
colocando-o no setor da cultura, isto é, no quadro ético e estético em que se
sublinha a capacidade interpretativa da vida, da pessoa e das suas múltiplas
relações:
Com
efeito, com a diminuição generalizada do tempo de trabalho, crescem
progressivamente para muitos homens as facilidades para tal. Os tempos livres
sejam bem empregados para descanso do espírito e saúde da alma e do corpo, ora
com atividades e estudos livremente escolhidos, ora com viagens a outras regiões
(turismo), com as quais se educa o espírito e os homens se enriquecem com o
conhecimento mútuo, ora também com exercícios e manifestações desportivas, que
contribuem para manter o equilíbrio psíquico, mesmo na comunidade, e para
estabelecer relações fraternas entre os homens de todas as condições e nações,
ou de raças diversas. Colaborem, portanto, os cristãos, a fim de que as
manifestações e atividades culturais coletivas, caraterísticas do nosso tempo,
sejam penetradas de espírito humano e cristão. (GS 61).
Paulo VI, dirigindo-se aos
atletas das XIX Olimpíadas: “Procedeis de tantos países, representais ambientes
e culturas, mas une-vos um ideal idêntico: ligar todos os homens com a amizade,
a compreensão, a estima recíproca” – o que é sintoma de que “a vossa meta final
é mais elevada: a paz universal”.
João Paulo II, o Papa dos
desportistas, que também, como Pio XII, se dedicou durante muito tempo à
prática do desporto, apelou:
Sede
conscientes da vossa responsabilidade. Não apenas o campeão no estádio, também
o homem com toda a sua pessoa deve converter-se num modelo para milhões de
jovens, que têm necessidade de “líderes” e não de “ídolos”.
(cf
Anselmo Borges, in Diário de
Notícias, 18.08.2012)
Bento XVI, na
receção, em 17 de dezembro de 2012, aos atletas que representaram a Itália nos
Jogos Olímpicos de Londres, propôs a ética de “um desporto ao serviço do homem
e não o homem ao serviço do desporto”. E, ao observar que aos atletas se pede
mais do que o simples competir e obter bons resultados, assegurou:
Toda e qualquer atividade desportiva, tanto a nível de
amadores como de competição, exige lealdade, respeito pelo próprio corpo,
sentido de solidariedade e altruísmo, mas também alegria, satisfação, festa. […].
O que pressupõe um caminho de autêntica maturação humana,
feita de renúncias, de tenacidade, de paciência, e sobretudo de humildade, que
não suscita aplausos, mas que é o segredo da vitória. Um desporto que queira ter pleno sentido para quem o
pratica, deve estar sempre ao serviço da pessoa. O que está em jogo não é
apenas o respeito das regras, mas a visão do homem, do homem que pratica
desporto e que, ao mesmo tempo, tem necessidade de educação, de espiritualidade
e de valores transcendentes.
Na aludida mensagem que enviou
por ocasião da Abertura da Copa do Mundo de Futebol 2014 no Brasil, Francisco
exprime a esperança de que, “além de
festa do esporte (desporto), esta
Copa do Mundo possa tornar-se a festa da solidariedade entre os povos”. Tal,
porém, pressupõe que “as competições futebolísticas sejam consideradas por
aquilo que no fundo são: um jogo e ao mesmo tempo uma ocasião de diálogo, de
compreensão, de enriquecimento humano recíproco”.
Reconhecendo que o desporto não é só uma forma de
entretenimento, mas sobretudo um valioso instrumento para comunicar valores que
promovem o bem da pessoa humana e ajudam na construção de uma sociedade mais
pacífica e fraterna, o Papa apela à lealdade, à perseverança, à amizade, à
partilha, à solidariedade. E chega a afirmar que o desporto “é escola da paz,
ensina-nos a construir a paz.
Mas o Papa vai ao ponto de enunciar claramente as três
lições da prática desportiva ou as três atitudes essenciais para a desejavelmente
normal causa da paz, um pouco à imagem do que se passa na vida: “a necessidade
de ‘treinar’, o ‘fair play’ e a honra
entre os competidores”. E, com agudo sentido de oportunidade, propõe
especificamente o futebol como escola para a construção de uma “cultura do
encontro”.
E conclui em jeito de advertência e atitude otimista:
O segredo da
vitória, no campo, mas também na vida, está em saber respeitar o companheiro do
meu time, mas também o meu adversário. Ninguém vence sozinho, nem no campo, nem
na vida! Que ninguém se isole e se sinta excluído! Atenção! Não à segregação,
não ao racismo! E, se é verdade que, ao término deste Mundial, somente uma
seleção nacional poderá levantar a taça como vencedora, aprendendo as lições
que o esporte nos ensina, todos vão
sair vencedores, fortalecendo os laços que nos unem.
Será que todos os implicados no ato desportivo de que
o Brasil foi anfitrião apreenderam as lições que estes homens de Deus pretendem
tirar da prática desportiva para proveito de todos? Terá valido a pena, para a
edificação da paz internacional, que a FIFA tenha falado mais alto do que os
protestos, anónimos ou frontais, dos que bradam por alimentação, segurança nas
ruas, proteção social, educação, saúde, emprego, transportes públicos, relação
laboral sadia? Terão os governos do Brasil (federal e estaduais) a capacidade
de resposta às necessidades interna similar àquela que demonstraram possuir
para satisfazer os compromissos internacionais que assumiram?
Se o povo romano queria pão e circo, é óbvio que primeiro
tem de vir o pão!
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