terça-feira, 29 de julho de 2014

Santa Marta, a apóstola da hospitalidade e do trabalho

A sua memória litúrgica celebra-se a 29 de julho, por iniciativa dos franciscanos, em 1262. Santa Marta corresponde a uma personagem bíblica referida no Evangelho de Lucas (vd Lc 10,38-42) e no de João (vd Jo 11,1-45; 12,2). A irmã de Lázaro e de Maria de Betânia, (também chamada de Margareth, nalguns lugares), perto de Jerusalém, é a padroeira das lavadeiras, das cozinheiras e donas de casa, dos anfitriões, dos estalajadeiros e hoteleiros, dos nutricionistas e dietistas; e, ainda de acordo com a tradição, é protetora contra as falsas preocupações, como: mau olhado, inveja, pragas, bruxarias, descarrego e outras superstições para as quais ela oferece um escudo impenetrável. Foi uma das mulheres que acompanharam Jesus  no calvário e na ressurreição.
O nome Marta é transliteração do grego Μαρθα, que por si já é tradução do aramaico מַרְתָּא, que significa “a mestra” ou “a senhora”. A forma aramaica ocorre numa inscrição datada como sendo do primeiro século, que se encontra num Museu em Nápoles.
Marta, a hospedeira de Cristo, era filha de Siro e de Eucária, descendente de estirpe real. O pai era governador da Síria e de muitas regiões marítimas. Com sua irmã e irmão, por direito de herança materna, possuía três fortalezas: Magdala, Betânia e parte da cidade de Jerusalém. Nunca se disse que tivesse marido ou vivesse com homem algum. Era a anfitriã e a dona da casa por ser a irmã mais velha. Quando Jesus se hospedava em sua casa, em Betânia, Marta era solícita e cuidava do seu bem-estar. Numa visita, recorda Lucas no seu Evangelho, Marta reclamou por Maria ter ficado sentada a ouvir Jesus, deixando-a com o trabalho todo. Jesus, porém, sentenciou: “Marta, Marta, andas inquieta e agitada com muita coisa, quando uma só é necessária. De facto, Maria escolheu a melhor parte, que lhe não será tirada” (Lc 10,41-42). Marta tornou-se, pois, o protótipo da ativista cristã e Maria o símbolo da vida contemplativa.
Marta, dado o seu temperamento ativo e pressuroso, foi a única que foi procurar Jesus e sair-lhe ao encontro, quando Lázaro morreu, ao passo que Maria ficou recatada em casa. A tradição diz ainda que, para aqueles que diziam que já era tarde e que Lázaro já estava morto, Marta retrucou energicamente que não tinha a menor importância e que Jesus iria curá-lo. E de facto, quando Jesus chegou, Lázaro já estava enterrado e o seu corpo já apresentava sinais de putrefação, mas Marta não se abalou, e com enorme fé, falou a Jesus: “Senhor, se cá estivesses, meu irmão não teria morrido, mas eu sei que tudo o que pedires a Deus, Deus To concederá!” (Jo 11,21-22). E, quando o Mestre afiança que o irmão ressuscitará, ela remete a fé para a ressurreição no último dia. Porém, Jesus lança-lhe um repto de fé: “Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita em Mim não morrerá jamais. Acreditas nisto?”. Ao que Marta respondeu com firmeza: “Acredito, Senhor, eu já acreditava que Tu és o Messias, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo” (cf Jo 11,23-27). Então, muitos dos judeus que tinham vindo ter com Maria, ao verem o que Jesus fizera, acreditaram (Jo 11,45). E não digam que esta alma ativista não é também alma de contemplação!
Como se pode verificar, o ativismo de Marta é condimentando por uma fé profunda em Cristo. E é um ativismo incessante que, se parece emulatório perante a sobredita atitude de Maria (só que também queria que sua irmã O servisse, porque estava convencida de que não bastaria o mundo inteiro para servir hóspede tão nobre), seis dias antes da Páscoa, quando ofereceram um jantar a Jesus, enquanto Maria ungia os pés de Jesus com o perfume de espicanardo genuíno e os enxugava com os cabelos, Marta andava a servir (cf Jo 12, 1-2).
Uma tradição refere que Lázaro e suas irmãs, Marta e Maria, foram para Chipre onde ele se tornara bispo de Kition ou Lanarka. As suas supostas relíquias teriam sido trasladadas para Constantinopla e várias igrejas e capelas foram erigidas em sua honra na Síria. A Basílica de São Lázaro, santo padroeiro de Lanarka, construída em 890 da nossa era, era um templo cristão do século V, no qual existia um sarcófago com a com a inscrição: “Lázaro, o amigo de Cristo”. Isto reforça a tradição de que ele vivera sua “segunda vida ressuscitado” em Kition, Lanarka.
Porém, segundo outra tradição, depois da Ascensão do Senhor, quando da dispersão dos discípulos, ela, seu irmão Lázaro, sua irmã Maria Madalena e ainda São Maximino — que as tinha batizado e a quem foram entregues pelo Espírito Santo — além de muitos outros, foram colocados num barco pelos infiéis, sem remos, nem velas, nem leme, nem alimentos, pois tudo lhes roubaram. Mas, guiados pelo Senhor, chegaram a Marselha, na região da Provença; depois, foram para o território de Aix e lá missionaram e converteram o povo à fé.
Ainda, segundo esta tradição, Santa Marta era muito eloquente e toda a gente se agradava dela. Naquele tempo, vivia nas margens do Ródano, num bosque, entre Arles e Avinhão, um dragão, metade animal, metade peixe, maior do que um boi e mais comprido que um cavalo, com dentes afiados como espadas, e protegido de ambos os lados por escamas como escudos. Ocultando-se no rio, matava todos os transeuntes e fazia naufragar os barcos. Tinha, como reza a lenda, ido por mar desde a Galácia da Ásia, fora gerado por Leviatã – que era uma ferocíssima serpente aquática – e por um animal chamado ónaco, oriundo da região da Galácia, que expele os seus dejetos até à distância de uma jarda como se fosse a ponta de um dardo, queimando como fogo tudo o que atingem. Marta, a pedido do povo, foi procurá-lo e encontrou-o no bosque a devorar um homem; atirou água benta sobre ele e mostrou-lhe uma cruz.
Em seguida, vencido e parado como uma ovelha, Marta atou-lhe o seu cinto e ali mesmo foi morto pelo povo com lanças e pedras. Os naturais dessa região chamavam Tarascurus àquele dragão; por isso, em sua memória, aquele lugar ainda se denomina de Tarasconus (hoje Tarascon), em vez de Nerluc, que significa “lago negro”, porque os bosques eram sombrios e escuros.
A partir de então, com o beneplácito de seu mestre Maximino e de sua irmã, Marta ali permaneceu entregue, sem desfalecimento, às orações e aos jejuns. Depois, tendo-se reunido nesse lugar uma multidão de religiosas e construído uma grande basílica em honra da Bem-aventura Virgem Maria, levou uma vida austera: abstinha-se de carne, de toda a gordura, de ovos, de queijo e de vinho; só comia uma vez por dia, fazia cem genuflexões de dia e outras tantas à noite. Uma vez, a crer em La Légende Dorée, quando pregava junto de Avinhão, entre a cidade e o rio Ródano, um jovem que, estando além do rio, queria ouvir suas palavras, mas não tinha barco; e, tendo começado a nadar, foi levado pela força da corrente e logo morreu afogado. Muito a custo, encontraram o seu corpo ao segundo dia e colocaram-no aos pés de Marta para que o ressuscitasse. Ela prostrou-se ao chão de braços abertos em cruz e orou assim: “Senhor Jesus Cristo, que outrora ressuscitastes o meu querido irmão, olha, ó meu hóspede caríssimo, para a fé destes circunstantes e ressuscita este rapaz. Pegou-lhe na mão e ele imediatamente ressuscitou, recebendo o santo batismo.
Santo Eusébio conta no livro quinto da História Eclesiástica, que uma mulher que sofria de um fluxo de sangue, depois de sarada, foi para o seu jardim e fez uma estátua parecida com Nosso Senhor Jesus Cristo, com a túnica e a fímbria como tinha visto, reverenciando-a com muita frequência. Mas cresceram as ervas, até então destituídas de qualquer virtude, e ficaram com tal poder que, daí em diante, curaram muitos enfermos. Santo Ambrósio diz que essa mulher fora precisamente Santa Marta. Da mesma forma São Jerónimo refere, como conta na História Tripartida, que Juliano, o Apóstata, tirou a estátua feita por ela para lá colocar a sua, que logo foi destruída por um raio.
Os tarasconenses, lembrados da história do dragão Tarasca, resolveram procurar as relíquias de Marta, que encontraram em 1187, construíram um templo, em 1197, para a guarda das mesmas e tomaram como sua padroeira a benfeitora dos seus antepassados.
***
Santo Agostinho, bispo de Hipona, no século V, no Sermo 103, 1-2. 6 (PL 38, 613.615), elogia a hospitalidade de Marta, cujas recompensas estende a todos os que se tornarem hospitaleiros para Jesus Cristo e para aqueles em cuja figura humana Ele sofre: Felizes os que mereceram receber a Cristo em sua casa. Ante a multiplicidade de ocupações, “devemos aspirar a um único fim”, porque estamos a caminho e não em morada permanente, em viagem e não na pátria definitiva, no tempo do desejo e não no da posse plena. Mas devemos aspirar, sem preguiça e sem desânimo – sublinha Agostinho – para um dia podermos chegar ao fim.
E explica o sentido da irmandade de Marta e de Maria e o sentido do serviço ao Mestre:
Eram irmãs, não apenas de sangue, mas também pelos sentimentos religiosos. Ambas unidas ao Senhor, em perfeita harmonia, serviam ao Senhor corporalmente presente. Marta recebeu-O como se fora peregrino. Todavia, era a serva que recebia o Senhor, a doente que acolhia o Médico; a criatura que hospedava o Criador. Recebeu o Senhor para lhe dar o alimento corporal, enquanto ela precisava do alimento espiritual. O Senhor toma a forma de servo e possuía um corpo que lhe fazia sentir fome e sede. Nesta condição, é alimentado pelos servos, por condescendência, não por necessidade. Portanto, o Senhor foi recebido por Marta como hóspede, enquanto Ele, por desígnio divino, veio para o que era seu, e os seus não o acolheram. Mas a todos que o receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,11-12).
E o santo Bispo de Hipona explicita o mistério da condescendência divina em Cristo:
Adotou os servos, que fez irmãos; remiu os cativos, que fez co-herdeiros. Ninguém de vós diga só para os antigos: Felizes os que mereceram receber Cristo em casa! Não te entristeças, não te lamentes por teres nascido em tempo que já não podes ver o Senhor corporalmente. Não te privou desta honra, pois afirmou: Todas as vezes que fizestes isso a um de meus irmãos, foi a mim que o fizestes (Mt 25,40).
E interpela quem segue os passos de Marta sobre os últimos tempos, os da parusia:
Quando chegares à outra pátria, encontrarás peregrinos para hospedar? Famintos para repartires com eles o pão? Sedentos para lhes dares de beber? Doentes para visitar? Desunidos para reconciliar? Mortos para sepultar? Lá não haverá nada disso. Haverá o que Maria escolheu: seremos alimentados, não alimentaremos. Lá se cumprirá em perfeição e plenitude o que Maria escolheu aqui: daquela mesa farta, recolhia as migalhas da palavra do Senhor. Queres saber o que há de acontecer lá? É o Senhor que o diz a respeito dos servos: Em verdade vos digo: Ele mesmo vai fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá (Lc 12,37).
Referências:

Bíblia Sagrada – MEL EDITORES – Estarreja, 2012;
http://www.aascj.org.br/home/2010/07/29/conheca-a-historia-da-vida-de-santa-marta-a-hospedeira-de-nosso-senhor-jesus-cristo/, ac. Julho de 2014;
Leite, J.; Coelho, A. (2005). Santos de Todos os Dias. Vol. de julho. Matosinhos: Quid novi;
Sacra Congregatio pro Cultu Divino (1989). Liturgia das Horas, III. Coimbra: Gráfica de Coimbra;

Nova Bíblia dos Capuchinhos – Difusora Bíblica – Lisboa/Fátima, 1998

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