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E se a moda pega?!
Perante
o requerimento de uma procuradora-adjunta, membro da Igreja Adventista, que
exerce funções públicas no distrito da Guarda, em que solicitava dispensa de
serviço ao sábado, o dia de descanso estabelecido pela religião que professa, tanto
o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) como o Supremo Tribunal
Administrativo (STA) se pronunciaram pelo indeferimento. A magistrada
reivindicava o direito à liberdade religiosa, escudada na lei e na Constituição
e o seu pedido vinha fundamentado em “razões de culto religioso”,
dado que ela é membro de organização religiosa que a obriga à observância do
sábado como dia de descanso, adoração e ministério.
Ora, em abril
do ano passado, o CSMP havia deliberado, por maioria, mas com uma abstenção,
indeferir o pedido da procuradora de ser dispensada dos turnos de serviço
urgente que vem assegurando, aos sábados, na comarca onde trabalha. E um acórdão do STA, na sequência de interposição de recurso contencioso,
estipula que, “no caso de conflituosidade de dois interesses fundamentais, um
de natureza pública e outro de natureza privada, por princípio, deve prevalecer
o interesse público”.
Em abono
da verdade das alegações da magistrada e para que essa obrigação fosse cumprida,
a Igreja Adventista enviara ao Governo, já em 2010, uma lista com indicação dos
períodos e horários dos dias de descanso relativos a 2011 e anos seguintes. Por
isso, nos termos estatutários, a magistrada requerera ao respetivo superior
hierárquico a dispensa do seu trabalho nos turnos marcados para os sábados em
2011. Pedia também autorização para compensar esses dias com outros dias de
turno que não coincidissem com o sábado. Tal pretensão, formulada em termos de
equilíbrio profissional, foi indeferida por decisão do CSMP, com o fundamento
de que as funções que a magistrada exerce não correspondiam a um horário de
trabalho flexível previsto no art.º 14.º da Lei de Liberdade Religiosa (LLR).
De acordo com o que o predito normativo estabelece, “os funcionários e agentes
do Estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de
contrato de trabalho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no
dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que
lhes sejam prescritos pela confissão que professam”.
Porém, a magistrada interpôs recurso
para o STA, que considerou, independentemente da análise dos aspetos
processuais, que “o interesse público assume uma muito maior relevância do que
o interesse da requerente”, não se vendo que “o indeferimento da sua pretensão
possa contribuir para a constituição de uma situação de facto irreversível ou “determinar
a produção de prejuízos irreparáveis”.
Entendo a
supremacia do interesse público sobre o interesse privado, mas não percebo a
que propósito venha o relacionamento de um direito fundamental (cívico, social
e cultural), como o da liberdade religiosa, com a determinação ou não de
prejuízos irreparáveis. Aceitaria a incompatibilidade do exercício de um
direito fundamental (direito cujo exercício não pode ser tido como absoluto, ou
seja, sem exceções hic et nunc) com o
exercício urgente e inadiável de um serviço público. E, em socorro do que vimos
dizendo, atente-se no que, a propósito deste caso, Jónatas Machado, professor
da Faculdade de Direito de Coimbra, defende ao afirmar que “também é do
interesse público garantir o direito da liberdade religiosa, um direito
constitucionalmente protegido” e ao observar que “os direitos humanos prevalecem
diante do interesse público”. Mais: frisou ainda aquele professor de Direito que
“a liberdade é a regra, a restrição é que é a exceção e tem de ser devidamente
fundamentada”. E verifica lamentando: “Com jurisprudência como esta, não admira
que Portugal seja tantas vezes condenado no Tribunal dos Direitos do Homem”.
***
Entretanto, a magistrada,
invocando a proteção da liberdade religiosa, interpôs recurso para o Tribunal
constitucional (TC). E, se o STA e o CSMP aceitariam a dispensa do trabalho ao
sábado como possível só no regime de horário flexível, o TC considera que tal
não tem “qualquer cabimento” e salienta que está em causa a garantia da
liberdade religiosa. E, assim, em acórdão recente, o TC dá razão à magistrada e
revoga a decisão do STA.
O CSMP, para não isentar a
procuradora de trabalho aos sábados, como requerera em 2011, argumentava que,
não havendo flexibilidade no horário de trabalho dos procuradores, não era
legítima a dispensa; e o STA, além disso, afirmava que, de outra forma, a procuradora,
então a prestar serviço na Covilhã, ficaria numa situação desigual face os
colegas e que não se podia “decretar que o direito ao culto, por estar
constitucionalmente garantido, deve prevalecer sobre qualquer outro” e sobre os
deveres funcionais. Advertia ainda que a procuradora “deveria ter escolhido
outra profissão” se discordava das “condicionantes e das limitações que o
exercício da magistratura do MP implicava”.
Não discutindo uma certa
razoabilidade na argumentação do STA, considero estapafúrdia a advertência de
que a procuradora deveria ter escolhido outra profissão. Será que aquele
tribunal superior conhece profissões não incompatíveis com os cânones
religiosos? Não estará antes a falar daquilo de que não deve falar? Ou será que
tudo fica bem no discurso dos tribunais, mesmo os superiores?
Mas o TC discordou e diz mesmo,
no acórdão, que tal interpretação “não tem qualquer cabimento”. Considera que
efetivamente os procuradores estão sujeitos a um horário flexível de turnos, o
que deita por terra o único argumento formal de fundo que o STA e o CSMP usavam
para obrigar a procuradora a trabalhar ao sábado. Se a obrigação se mantivesse,
estaria em causa, diz o TC, a legalidade da atuação do Estado: “O Estado não
assegura a liberdade de religião se, apesar de reconhecer aos cidadãos o
direito de terem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a
praticar” – dizem os juízes guardiões da constitucionalidade e da legalidade.
Em consonância com o decidido em
instância de justiça constitucional, a Procuradoria-Geral da República e o CSMP
garantiram que vão “acatar a deliberação do TC” (Pudera, não?!) e “procederão
de acordo com nova decisão a proferir pelo STA em acórdão reformulado”. Não há,
diz a PGR, registo de casos semelhantes no MP.
Assim, o CSMP, sugere o
Constitucional, “pode afetar os magistrados que invoquem a dispensa de serviço
por motivo religioso a comarcas relativamente às quais se verifique uma menor
incidência de serviço de turno aos sábados, de modo a compatibilizar o
exercício do direito com o cumprimento dos deveres funcionais”.
O acórdão do TC chama ainda a
atenção para a garantia da liberdade religiosa na Constituição da República.
Nesta, está previsto que os trabalhadores possam suspender o trabalho “dentro
de certas condições, no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e
nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam”.
Interpretação diversa, que conduza a aplicação deste direito a uma situação
“meramente residual”, “levaria a concluir pela inconstitucionalidade”, explica
o TC.
Aliás, a interpretação do TC não
se restringe a esta profissão, já que a flexibilidade de horário ocorre em
todas as profissões em que “seja possível compatibilizar o cumprimento da duração
do trabalho com a dispensa para efeitos de observância dos deveres religiosos”
(cf art.º 14.º).
E, noutro acórdão recente, o TC
dá razão pelos mesmos motivos a uma funcionária que recorrera à justiça depois
de ter sido despedida por se ausentar do trabalho para culto. Após quatro
processos disciplinares, a empresa em causa considerou que as faltas eram
injustificadas. O Tribunal de Loures e a Relação de Lisboa concordaram, mas o
TC revogou a decisão.
A funcionária trabalhava há 21
anos na mesma empresa e acordara com os patrões que os seus turnos nunca
calhariam ao sábado. Nunca teve problemas até que a entidade empregadora um dia
decidiu mudar-lhe os turnos. Entre faltar ao trabalho e não cumprir o ritual,
optou pela falta.
Casos como este e o da
procuradora já tinham levado o ex-provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa, a
defender que a dispensa de trabalho por motivos religiosos deveria ser
estendida a todos os trabalhadores e não ser circunscrita aos que estão em
regime de flexibilidade de horário, como prevê a lei. O TC defende agora uma
interpretação mais aberta desse critério para que se possam garantir “os
direitos fundamentais do trabalhador”.
***
Saudando
a lucidez do anterior provedor de justiça, a generosidade do TC e o seu
entendimento literal da CRP, bem como a garantia da liberdade religiosa,
pretendo explicitar duas questões.
A
primeira é que ressalta uma confusão entre a dispensa de todo um dia de
trabalho e a dispensa por um lapso de tempo razoável para o exercício do culto.
Não sei mesmo se cabe à justiça, mesmo constitucional, que interprete num
sentido tão lato os deveres religiosos, que as religiões não impõem tão
inflexivelmente (nem sei se teriam esse direito!). Os próprios juízes
constitucionais parecem laborar num equívoco, quando sugerem que o CSMP “pode afetar os magistrados que
invoquem a dispensa de serviço por motivo religioso a comarcas relativamente às
quais se verifique uma menor incidência de serviço de turno aos sábados (sublinhei),
de modo a compatibilizar o exercício do direito com o cumprimento dos deveres
funcionais”. Ou o serviço de turno ao sábado, domingo ou feriado é essencial e
a sua vez deve caber a todos; ou não é essencial e então deverá ser suprimido.
A segunda questão que se me
oferece levantar é a seguinte: Como decidiria o TC, se, por obra divina ou do
diabo, todos os magistrados católicos e de outras religiões, cujo dia de
descanso semanal e de prestação de culto divino é o domingo, viessem a suscitar
a problemática da dispensa de trabalho ao domingo e demais dias santificados?
Ou se todos os profissionais católicos que têm de trabalhar ao domingo –
médicos, enfermeiros, juízes, políticos, polícias, militares, bombeiros,
jogadores de futebol, jornalistas, transportadores, etc., etc. – também
entenderia tão literalmente o preceito constitucional da liberdade religiosa (CRP,
art.º 41.º) e os
congruentes artigos da lei da liberdade religiosa (Lei
n.º 16/2001, de 22 de junho, art.os 1.º e 14.º). Não teriam os juízes
constitucionais pena do serviço público e, por consequência, não iriam
restringir a interpretação do n.º 1 do art.º 6.º da mesma lei (a
liberdade de consciência, de religião e de culto só admite as restrições
necessárias para salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos)?
Aconselhá-los-iam a tomar outra profissão ou a emigrar? Ou será que grupos
minoritários terão mais direitos que outros numa sociedade pluralista como a
nossa (como, aliás se verifica já em tantos setores)?
***
Mas fiquem tranquilos. Os
cristãos em geral são sensatos e leem o preceito sabático (entre nós,
dominical) de forma humanista como Jesus Cristo: “O sábado foi feito para o
homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). Ou: “Os doutores da Lei e os
fariseus observavam-no, a ver se iria curá-lo (ao homem de mão ressequida) ao
sábado… Jesus perguntou-lhes: o que é preferível, ao sábado, fazer bem ou fazer
mal, salvar uma vida ou perdê-la?” (cf Lc 6,7-10).
Em conformidade com o texto
bíblico, a Igreja Católica determina, quer no Catecismo da Igreja Católica (cf
CIC, apartado 2042) quer
no código de direito canónico (cf CDC, cânone 1247) que os fiéis participem na celebração
eucarística, em que a comunidade cristã se reúne, e se abstenham dos trabalhos
e negócios que impeçam o culto, a alegria e o devido repouso da mente e do
corpo (onde não se incluem como proibidos os serviços urgentes ou inadiáveis,
de genuíno superior interesse público ou dever de premente caridade). Nada de excessivo
ou de impeditivo para a marcha da comunidade, como se vê!
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