sexta-feira, 25 de julho de 2014

Procuradora adventista dispensada de trabalhar ao sábado

… E se a moda pega?!

Perante o requerimento de uma procuradora-adjunta, membro da Igreja Adventista, que exerce funções públicas no distrito da Guarda, em que solicitava dispensa de serviço ao sábado, o dia de descanso estabelecido pela religião que professa, tanto o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) como o Supremo Tribunal Administrativo (STA) se pronunciaram pelo indeferimento. A magistrada reivindicava o direito à liberdade religiosa, escudada na lei e na Constituição e o seu pedido vinha fundamentado em “razões de culto religioso”, dado que ela é membro de organização religiosa que a obriga à observância do sábado como dia de descanso, adoração e ministério.
Ora, em abril do ano passado, o CSMP havia deliberado, por maioria, mas com uma abstenção, indeferir o pedido da procuradora de ser dispensada dos turnos de serviço urgente que vem assegurando, aos sábados, na comarca onde trabalha. E um acórdão do STA, na sequência de interposição de recurso contencioso, estipula que, “no caso de conflituosidade de dois interesses fundamentais, um de natureza pública e outro de natureza privada, por princípio, deve prevalecer o interesse público”.
Em abono da verdade das alegações da magistrada e para que essa obrigação fosse cumprida, a Igreja Adventista enviara ao Governo, já em 2010, uma lista com indicação dos períodos e horários dos dias de descanso relativos a 2011 e anos seguintes. Por isso, nos termos estatutários, a magistrada requerera ao respetivo superior hierárquico a dispensa do seu trabalho nos turnos marcados para os sábados em 2011. Pedia também autorização para compensar esses dias com outros dias de turno que não coincidissem com o sábado. Tal pretensão, formulada em termos de equilíbrio profissional, foi indeferida por decisão do CSMP, com o fundamento de que as funções que a magistrada exerce não correspondiam a um horário de trabalho flexível previsto no art.º 14.º da Lei de Liberdade Religiosa (LLR). De acordo com o que o predito normativo estabelece, “os funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de trabalho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam”.
Porém, a magistrada interpôs recurso para o STA, que considerou, independentemente da análise dos aspetos processuais, que “o interesse público assume uma muito maior relevância do que o interesse da requerente”, não se vendo que “o indeferimento da sua pretensão possa contribuir para a constituição de uma situação de facto irreversível ou “determinar a produção de prejuízos irreparáveis”.
Entendo a supremacia do interesse público sobre o interesse privado, mas não percebo a que propósito venha o relacionamento de um direito fundamental (cívico, social e cultural), como o da liberdade religiosa, com a determinação ou não de prejuízos irreparáveis. Aceitaria a incompatibilidade do exercício de um direito fundamental (direito cujo exercício não pode ser tido como absoluto, ou seja, sem exceções hic et nunc) com o exercício urgente e inadiável de um serviço público. E, em socorro do que vimos dizendo, atente-se no que, a propósito deste caso, Jónatas Machado, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, defende ao afirmar que “também é do interesse público garantir o direito da liberdade religiosa, um direito constitucionalmente protegido” e ao observar que “os direitos humanos prevalecem diante do interesse público”. Mais: frisou ainda aquele professor de Direito que “a liberdade é a regra, a restrição é que é a exceção e tem de ser devidamente fundamentada”. E verifica lamentando: “Com jurisprudência como esta, não admira que Portugal seja tantas vezes condenado no Tribunal dos Direitos do Homem”.
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Entretanto, a magistrada, invocando a proteção da liberdade religiosa, interpôs recurso para o Tribunal constitucional (TC). E, se o STA e o CSMP aceitariam a dispensa do trabalho ao sábado como possível só no regime de horário flexível, o TC considera que tal não tem “qualquer cabimento” e salienta que está em causa a garantia da liberdade religiosa. E, assim, em acórdão recente, o TC dá razão à magistrada e revoga a decisão do STA.
O CSMP, para não isentar a procuradora de trabalho aos sábados, como requerera em 2011, argumentava que, não havendo flexibilidade no horário de trabalho dos procuradores, não era legítima a dispensa; e o STA, além disso, afirmava que, de outra forma, a procuradora, então a prestar serviço na Covilhã, ficaria numa situação desigual face os colegas e que não se podia “decretar que o direito ao culto, por estar constitucionalmente garantido, deve prevalecer sobre qualquer outro” e sobre os deveres funcionais. Advertia ainda que a procuradora “deveria ter escolhido outra profissão” se discordava das “condicionantes e das limitações que o exercício da magistratura do MP implicava”.
Não discutindo uma certa razoabilidade na argumentação do STA, considero estapafúrdia a advertência de que a procuradora deveria ter escolhido outra profissão. Será que aquele tribunal superior conhece profissões não incompatíveis com os cânones religiosos? Não estará antes a falar daquilo de que não deve falar? Ou será que tudo fica bem no discurso dos tribunais, mesmo os superiores?
Mas o TC discordou e diz mesmo, no acórdão, que tal interpretação “não tem qualquer cabimento”. Considera que efetivamente os procuradores estão sujeitos a um horário flexível de turnos, o que deita por terra o único argumento formal de fundo que o STA e o CSMP usavam para obrigar a procuradora a trabalhar ao sábado. Se a obrigação se mantivesse, estaria em causa, diz o TC, a legalidade da atuação do Estado: “O Estado não assegura a liberdade de religião se, apesar de reconhecer aos cidadãos o direito de terem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a praticar” – dizem os juízes guardiões da constitucionalidade e da legalidade.
Em consonância com o decidido em instância de justiça constitucional, a Procuradoria-Geral da República e o CSMP garantiram que vão “acatar a deliberação do TC” (Pudera, não?!) e “procederão de acordo com nova decisão a proferir pelo STA em acórdão reformulado”. Não há, diz a PGR, registo de casos semelhantes no MP.
Assim, o CSMP, sugere o Constitucional, “pode afetar os magistrados que invoquem a dispensa de serviço por motivo religioso a comarcas relativamente às quais se verifique uma menor incidência de serviço de turno aos sábados, de modo a compatibilizar o exercício do direito com o cumprimento dos deveres funcionais”.
O acórdão do TC chama ainda a atenção para a garantia da liberdade religiosa na Constituição da República. Nesta, está previsto que os trabalhadores possam suspender o trabalho “dentro de certas condições, no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam”. Interpretação diversa, que conduza a aplicação deste direito a uma situação “meramente residual”, “levaria a concluir pela inconstitucionalidade”, explica o TC.
Aliás, a interpretação do TC não se restringe a esta profissão, já que a flexibilidade de horário ocorre em todas as profissões em que “seja possível compatibilizar o cumprimento da duração do trabalho com a dispensa para efeitos de observância dos deveres religiosos” (cf art.º 14.º).
E, noutro acórdão recente, o TC dá razão pelos mesmos motivos a uma funcionária que recorrera à justiça depois de ter sido despedida por se ausentar do trabalho para culto. Após quatro processos disciplinares, a empresa em causa considerou que as faltas eram injustificadas. O Tribunal de Loures e a Relação de Lisboa concordaram, mas o TC revogou a decisão.
A funcionária trabalhava há 21 anos na mesma empresa e acordara com os patrões que os seus turnos nunca calhariam ao sábado. Nunca teve problemas até que a entidade empregadora um dia decidiu mudar-lhe os turnos. Entre faltar ao trabalho e não cumprir o ritual, optou pela falta.
Casos como este e o da procuradora já tinham levado o ex-provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa, a defender que a dispensa de trabalho por motivos religiosos deveria ser estendida a todos os trabalhadores e não ser circunscrita aos que estão em regime de flexibilidade de horário, como prevê a lei. O TC defende agora uma interpretação mais aberta desse critério para que se possam garantir “os direitos fundamentais do trabalhador”.
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Saudando a lucidez do anterior provedor de justiça, a generosidade do TC e o seu entendimento literal da CRP, bem como a garantia da liberdade religiosa, pretendo explicitar duas questões.
A primeira é que ressalta uma confusão entre a dispensa de todo um dia de trabalho e a dispensa por um lapso de tempo razoável para o exercício do culto. Não sei mesmo se cabe à justiça, mesmo constitucional, que interprete num sentido tão lato os deveres religiosos, que as religiões não impõem tão inflexivelmente (nem sei se teriam esse direito!). Os próprios juízes constitucionais parecem laborar num equívoco, quando sugerem que o CSMP “pode afetar os magistrados que invoquem a dispensa de serviço por motivo religioso a comarcas relativamente às quais se verifique uma menor incidência de serviço de turno aos sábados (sublinhei), de modo a compatibilizar o exercício do direito com o cumprimento dos deveres funcionais”. Ou o serviço de turno ao sábado, domingo ou feriado é essencial e a sua vez deve caber a todos; ou não é essencial e então deverá ser suprimido.
A segunda questão que se me oferece levantar é a seguinte: Como decidiria o TC, se, por obra divina ou do diabo, todos os magistrados católicos e de outras religiões, cujo dia de descanso semanal e de prestação de culto divino é o domingo, viessem a suscitar a problemática da dispensa de trabalho ao domingo e demais dias santificados? Ou se todos os profissionais católicos que têm de trabalhar ao domingo – médicos, enfermeiros, juízes, políticos, polícias, militares, bombeiros, jogadores de futebol, jornalistas, transportadores, etc., etc. – também entenderia tão literalmente o preceito constitucional da liberdade religiosa (CRP, art.º 41.º) e os congruentes artigos da lei da liberdade religiosa (Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, art.os 1.º e 14.º). Não teriam os juízes constitucionais pena do serviço público e, por consequência, não iriam restringir a interpretação do n.º 1 do art.º 6.º da mesma lei (a liberdade de consciência, de religião e de culto só admite as restrições necessárias para salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos)? Aconselhá-los-iam a tomar outra profissão ou a emigrar? Ou será que grupos minoritários terão mais direitos que outros numa sociedade pluralista como a nossa (como, aliás se verifica já em tantos setores)?
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Mas fiquem tranquilos. Os cristãos em geral são sensatos e leem o preceito sabático (entre nós, dominical) de forma humanista como Jesus Cristo: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). Ou: “Os doutores da Lei e os fariseus observavam-no, a ver se iria curá-lo (ao homem de mão ressequida) ao sábado… Jesus perguntou-lhes: o que é preferível, ao sábado, fazer bem ou fazer mal, salvar uma vida ou perdê-la?” (cf Lc 6,7-10).

Em conformidade com o texto bíblico, a Igreja Católica determina, quer no Catecismo da Igreja Católica (cf CIC, apartado 2042) quer no código de direito canónico (cf CDC, cânone 1247) que os fiéis participem na celebração eucarística, em que a comunidade cristã se reúne, e se abstenham dos trabalhos e negócios que impeçam o culto, a alegria e o devido repouso da mente e do corpo (onde não se incluem como proibidos os serviços urgentes ou inadiáveis, de genuíno superior interesse público ou dever de premente caridade). Nada de excessivo ou de impeditivo para a marcha da comunidade, como se vê!

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