quinta-feira, 17 de julho de 2014

Sobre o valor padrão das deduções do IRS

Sobre o valor padrão das deduções do IRS
Há dias a esta parte, li em nota de rodapé a informação de que poderia deixar de ser obrigatória a declaração anual de IRS (imposto sobre o rendimento das pessoas singulares). E pensei que lá iria “por água abaixo” a tão propalada e “eficaz”, obrigação declarativa de rendimentos das pessoas singulares, prévia à obrigação contributiva, antanho estabelecida, em vigor a partir das calendas de janeiro de 1989, durante o consulado governativo de Cavaco, devidamente acolitado por Miguel Cadilhe, aquele que mais tarde veio a comparar o então primeiro-ministro a um eucalipto que seca tudo quanto está à sua volta.
Entretanto, ao ler no Dinheiro Vivo on line, de 15 de julho, que a reforma do IRS vai prever um sistema padronizado do valor das deduções fiscais proporcionadas pelas despesas de casa, educação e saúde, comecei a perceber um pouco da questão.
Hoje, a Autoridade Tributária aceita que os contribuintes abatam ao seu rendimento anual uma percentagem dos gastos realizados ao longo do ano transato, embora com o estabelecimento de um teto monetário. Ora, se tiver êxito a proposta da criação de um esquema padronizado de deduções nessas áreas – considerando o rendimento bruto percebido do sujeito passivo, os respetivos descontos obrigatórios sobre o mesmo e os encargos patrimoniais e familiares – a obrigação declarativa como tal não fará sentido. Ademais, tenha-se em conta que muitos dos cidadãos já dispõem de formulário pré-preenchido pelos serviços da Autoridade Tributária, em resultado do cruzamento de dados, competindo ao sujeito passivo a mera confirmação ou o desmentido corretor dos dados de preenchimento. Por outro lado, o sistema de cruzamento de dados tem sido significativamente enriquecido pelos esquemas de dedução de uma percentagem do IVA em sede de IRS por despesas assumidas nas áreas de reparação automóvel, cabeleireiro e restauração e pela fatura da sorte. Só não concordo que, para travar a evasão fiscal se recorra ao prémio por sorteio, como se a vida, e em concreto a obrigação para com a comum idade fosse um jogo – voluntário, de azar ou de sorte, disponível para todos, mas acessível apenas aos beneficiários da sorte ou do acaso.  
Sendo assim, o imperativo da declaração de rendimentos, descontos e despesas nas áreas elegíveis para dedução, a maior parte das vezes não passaria de simples formalismo, obviamente dispensável, a não ser que a penalização do contribuinte faltoso em termos declarativos constitua uma fonte de rendimento para o Estado, irrenunciável na perspetiva de um fisco ávido e insaciável.
Segundo o citado periódico, entre as propostas que integram o anteprojeto para a reforma do IRS, que está a ser delineado pela Comissão a que preside Rui Morais, prevê-se que sejam assumidos à partida determinados valores de despesa dedutíveis por agregado familiar. O modo de funcionamento (que não os quantitativos) será semelhante ao vigente para os trabalhadores independentes do chamado regime simplificado, em que uma parte do rendimento é considerada despesa, não sendo necessária a apresentação de faturas para a justificar. Perante tal simplificação de deduções, as obrigações declarativas deixarão de ser imperativas, por desnecessárias, pelo que, em muitas situações, os contribuintes ficarão dispensados de entregar declaração anual atinente a este imposto. Nos termos do anteprojeto é óbvio que a isenção de entrega deverá cingir-se a quem tem exclusivamente rendimentos de trabalho dependente e de pensões.
Acresce que, entre as propostas na calha se prevê também que o atual coeficiente conjugal do IRS, que divide por dois o rendimento dos agregados, seja substituído por um coeficiente familiar em que os filhos também sejam tidos em conta na repartição do rendimento e dos encargos.
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A medida vem, do meu ponto de vista, quebrar a blindagem da declaração de IRS, a vaca sagrada até ao presente, a pautar quase todas as decisões de benefício para os utentes dos serviço públicos e similares, como o apoio sócio educativo nas escolas básicas e secundárias, as bolsas e isenção de propinas no ensino superior, as taxas moderadoras no serviço nacional de saúde, o complemento solidário de pensão de idosos em dificuldade, o rendimento social de inserção, o apoio judiciário e assim por diante.
Quando se preconiza aos quatro ventos que deve pagar mais quem mais tem ou quando um cidadão é apontado como se tendo evadido ao fisco, logo vem à tona a fotocópia da liquidação de IRS ou a certidão emitida pela Autoridade Tributária onde consta nada haver de dívida ao fisco. Só que, por vezes, quase nos esquecemos de que os serviços se pronunciam somente sobre os rendimentos e património inscrito explicitamente em nome dos sujeitos passivos em causa, ou seja, estão longe de comprovar a eventual verdadeira situação de fruição de rendimento. É óbvio que o sujeito passivo que viva exclusivamente do trabalho por conta de outrem (que tenha contabilidade organizada e certificada) ou de pensões não foge aos impostos nem às legais contribuições para a Segurança Social. Trata-se de dinheiro que já nem lhe vem parar às mãos.
E assim, no estrito cumprimento nominal da lei tributária e contributiva, olvidando a real situação de rendimento, se apadrinham tantas vezes posturas de clamorosa injustiça.
Bem creio que a medida respeitante ao IRS será bem-vinda, desde que acautele a obrigação declarativa da parte de quem registe uma substancial alteração da situação de rendimento e de família no decurso de um determinado ano civil. Por outro lado, o fisco terá de ser mais eficaz no combate à evasão fiscal, à economia subterrânea e à corrupção, o que implica também uma legislação de verdadeiro combate a determinado jogo empresarial em termos da detenção de património mobiliário e imobiliário, falências empresariais seguidas de criação de novas empresas (em nome seu ou de outrem) pelos que promoveram a declaração de falência.
Já agora a talho de foice, será mesmo relevante a obrigação de entrega de declaração de rendimentos da parte dos políticos no Tribunal Constitucional? Porque não lhes basta a declaração perante a Autoridade Tributária?
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Há quem alvitre que as aludidas medidas de reforma do IRS correspondem à bondade das sugestões do grupo de trabalho para estudo do sistema de incentivos à natalidade. Aliás, segundo o já referido jornal, “esta solução está entre as que visam promover a proteção da família em sede de IRS, tal como tinha sido sinalizado pelo Governo e consta do despacho divulgado em meados de março pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais”.
Ora, isso poderá afirmar-se seguramente se os montantes dos padrões de valores das deduções forem adequados e se as medidas forem um simples complemento das demais, sobretudo a das facilidades atribuídas à mãe apara acompanhamento do filho e a conciliação entre a componente laboral e a familiar. E porque não pensar numa intervenção dos Estados em relação aos materiais que rodeiam a maternidade, o nascimento e o crescimento das crianças, tal como o fizeram em relação ao medicamento ou aos computadores portáteis? A vida das crianças e a maternidade ficam demasiado caras, não?
Apesar das asserções clarividentes do Professor Doutor Joaquim Azevedo e do teor do relatório que o seu grupo de trabalho elaborou, o Primeiro-Ministro prestou declarações de dúbio comprometimento. Opinam alguns que se trata de uma postura pré-eleitoral a perder força após as eleições legislativas, ao passo que outros anotam que o grupo de trabalho foi constituído pelo PSD, que não pelo Governo.
Seja como for, a política de natalidade tem de ser encarada com seriedade e a intervenção apoiante do Estado na matéria tem se constituir em prioridade nacional, se efetivamente se quer mesmo um futuro para o país e para a Europa visivelmente envelhecida. É certo que o défice da natalidade vem já de muito tempo – os bispos portugueses o apontaram já em fevereiro de 1975 com o espanto de muitos – mas o nu do fenómeno ressalta no contexto da crise.

Por isso, ao invés do acento no capital ou no mercado, venha daí o investimento na família, na pessoa, no futuro! 

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