Sobre o valor padrão das deduções
do IRS
Há dias a esta parte, li em nota
de rodapé a informação de que poderia deixar de ser obrigatória a declaração
anual de IRS (imposto sobre o rendimento das pessoas singulares). E pensei que
lá iria “por água abaixo” a tão propalada e “eficaz”, obrigação declarativa de
rendimentos das pessoas singulares, prévia à obrigação contributiva, antanho estabelecida,
em vigor a partir das calendas de janeiro de 1989, durante o consulado
governativo de Cavaco, devidamente acolitado por Miguel Cadilhe, aquele que
mais tarde veio a comparar o então primeiro-ministro a um eucalipto que seca
tudo quanto está à sua volta.
Entretanto, ao ler no Dinheiro Vivo on line, de 15 de julho,
que a reforma do IRS vai
prever um sistema padronizado do valor das deduções fiscais proporcionadas
pelas despesas de casa, educação e saúde, comecei a perceber um pouco da
questão.
Hoje, a Autoridade
Tributária aceita que os contribuintes abatam ao seu rendimento anual uma
percentagem dos gastos realizados ao longo do ano transato, embora com o
estabelecimento de um teto monetário. Ora, se tiver êxito a proposta da criação
de um esquema padronizado de deduções nessas áreas – considerando o rendimento
bruto percebido do sujeito passivo, os respetivos descontos obrigatórios sobre
o mesmo e os encargos patrimoniais e familiares – a obrigação declarativa como
tal não fará sentido. Ademais, tenha-se em conta que muitos dos cidadãos já
dispõem de formulário pré-preenchido pelos serviços da Autoridade Tributária,
em resultado do cruzamento de dados, competindo ao sujeito passivo a mera
confirmação ou o desmentido corretor dos dados de preenchimento. Por outro
lado, o sistema de cruzamento de dados tem sido significativamente enriquecido
pelos esquemas de dedução de uma percentagem do IVA em sede de IRS por despesas
assumidas nas áreas de reparação automóvel, cabeleireiro e restauração e pela
fatura da sorte. Só não concordo que, para travar a evasão fiscal se recorra ao
prémio por sorteio, como se a vida, e em concreto a obrigação para com a comum idade
fosse um jogo – voluntário, de azar ou de sorte, disponível para todos, mas
acessível apenas aos beneficiários da sorte ou do acaso.
Sendo assim, o
imperativo da declaração de rendimentos, descontos e despesas nas áreas
elegíveis para dedução, a maior parte das vezes não passaria de simples
formalismo, obviamente dispensável, a não ser que a penalização do contribuinte
faltoso em termos declarativos constitua uma fonte de rendimento para o Estado,
irrenunciável na perspetiva de um fisco ávido e insaciável.
Segundo o citado
periódico, entre as propostas que integram o anteprojeto para a reforma do IRS,
que está a ser delineado pela Comissão a que preside Rui Morais, prevê-se que
sejam assumidos à partida determinados valores de despesa dedutíveis por agregado
familiar. O modo de funcionamento (que não os quantitativos) será semelhante ao
vigente para os trabalhadores independentes do chamado regime simplificado, em
que uma parte do rendimento é considerada despesa, não sendo necessária a
apresentação de faturas para a justificar. Perante tal simplificação de
deduções, as obrigações declarativas deixarão de ser imperativas, por
desnecessárias, pelo que, em muitas situações, os contribuintes ficarão
dispensados de entregar declaração anual atinente a este imposto. Nos termos do
anteprojeto é óbvio que a isenção de entrega deverá cingir-se a quem tem
exclusivamente rendimentos de trabalho dependente e de pensões.
Acresce que, entre as
propostas na calha se prevê também que o atual coeficiente conjugal do IRS, que
divide por dois o rendimento dos agregados, seja substituído por um coeficiente
familiar em que os filhos também sejam tidos em conta na repartição do
rendimento e dos encargos.
***
A medida vem, do meu
ponto de vista, quebrar a blindagem da declaração de IRS, a vaca sagrada até ao
presente, a pautar quase todas as decisões de benefício para os utentes dos
serviço públicos e similares, como o apoio sócio educativo nas escolas básicas
e secundárias, as bolsas e isenção de propinas no ensino superior, as taxas
moderadoras no serviço nacional de saúde, o complemento solidário de pensão de
idosos em dificuldade, o rendimento social de inserção, o apoio judiciário e
assim por diante.
Quando se preconiza
aos quatro ventos que deve pagar mais quem mais tem ou quando um cidadão é
apontado como se tendo evadido ao fisco, logo vem à tona a fotocópia da
liquidação de IRS ou a certidão emitida pela Autoridade Tributária onde consta
nada haver de dívida ao fisco. Só que, por vezes, quase nos esquecemos de que
os serviços se pronunciam somente sobre os rendimentos e património inscrito
explicitamente em nome dos sujeitos passivos em causa, ou seja, estão longe de
comprovar a eventual verdadeira situação de fruição de rendimento. É óbvio que
o sujeito passivo que viva exclusivamente do trabalho por conta de outrem (que
tenha contabilidade organizada e certificada) ou de pensões não foge aos
impostos nem às legais contribuições para a Segurança Social. Trata-se de dinheiro
que já nem lhe vem parar às mãos.
E assim, no estrito
cumprimento nominal da lei tributária e contributiva, olvidando a real situação
de rendimento, se apadrinham tantas vezes posturas de clamorosa injustiça.
Bem creio que a
medida respeitante ao IRS será bem-vinda, desde que acautele a obrigação
declarativa da parte de quem registe uma substancial alteração da situação de
rendimento e de família no decurso de um determinado ano civil. Por outro lado,
o fisco terá de ser mais eficaz no combate à evasão fiscal, à economia
subterrânea e à corrupção, o que implica também uma legislação de verdadeiro
combate a determinado jogo empresarial em termos da detenção de património
mobiliário e imobiliário, falências empresariais seguidas de criação de novas
empresas (em nome seu ou de outrem) pelos que promoveram a declaração de
falência.
Já agora a talho de
foice, será mesmo relevante a obrigação de entrega de declaração de rendimentos
da parte dos políticos no Tribunal Constitucional? Porque não lhes basta a
declaração perante a Autoridade Tributária?
***
Há quem alvitre que
as aludidas medidas de reforma do IRS correspondem à bondade das sugestões do
grupo de trabalho para estudo do sistema de incentivos à natalidade. Aliás,
segundo o já referido jornal, “esta solução está entre as que visam promover a
proteção da família em sede de IRS, tal como tinha sido sinalizado pelo Governo
e consta do despacho divulgado em meados de março pelo secretário de Estado dos
Assuntos Fiscais”.
Ora, isso poderá
afirmar-se seguramente se os montantes dos padrões de valores das deduções
forem adequados e se as medidas forem um simples complemento das demais,
sobretudo a das facilidades atribuídas à mãe apara acompanhamento do filho e a
conciliação entre a componente laboral e a familiar. E porque não pensar numa
intervenção dos Estados em relação aos materiais que rodeiam a maternidade, o
nascimento e o crescimento das crianças, tal como o fizeram em relação ao
medicamento ou aos computadores portáteis? A vida das crianças e a maternidade
ficam demasiado caras, não?
Apesar das asserções
clarividentes do Professor Doutor Joaquim Azevedo e do teor do relatório que o
seu grupo de trabalho elaborou, o Primeiro-Ministro prestou declarações de
dúbio comprometimento. Opinam alguns que se trata de uma postura pré-eleitoral
a perder força após as eleições legislativas, ao passo que outros anotam que o
grupo de trabalho foi constituído pelo PSD, que não pelo Governo.
Seja como for, a
política de natalidade tem de ser encarada com seriedade e a intervenção apoiante
do Estado na matéria tem se constituir em prioridade nacional, se efetivamente
se quer mesmo um futuro para o país e para a Europa visivelmente envelhecida. É
certo que o défice da natalidade vem já de muito tempo – os bispos portugueses
o apontaram já em fevereiro de 1975 com o espanto de muitos – mas o nu do
fenómeno ressalta no contexto da crise.
Por isso, ao invés do
acento no capital ou no mercado, venha daí o investimento na família, na
pessoa, no futuro!
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