sábado, 12 de julho de 2014

Perlíferos segmentos discursivos de políticos

Há tiradas discursivas que são verdadeiras pérolas. Não me atenho, no entanto, nesta reflexão, a qualquer frase sentenciosa ou aforística, algum enunciado filosófico, inflexa lei física e/ou biológica ou loco literário.
Ocorre-me, sim, uma teia de afirmações de políticos que, pelo seu cariz vago ou distante da verdade, agradam acomodaticiamente a determinadas circunstâncias. Constituindo tais afirmações extenso acerbo do património político doméstico, registo somente aquelas que a memória retém ainda à tona.
Se nos recordarmos da década de noventa do passado século, poderemos encontrar, no catálogo sentencioso, o epigráfico nunca me engano e raramente tenho dúvidas e o deixem-nos trabalhar, do então primeiro-ministro e hoje, entre outras coisas, comandante supremo das forças armadas. O seu sucessor primoministerial justificava a sua presidência em inaugurações de obras públicas com a asserção de que as obras não eram do governo, mas do país; e, quando, à semelhança do ilustre predecessor, resolveu atirar com o poder pela janela fora, fê-lo presumivelmente para que o país não mergulhasse no pântano.
Fernando Nogueira, ministro da Defesa de Cavaco Silva, garantia aos deputados e à Televisão que os motores não tinham marca de origem nem número de série, pelo que as OGMA não sabiam que estavam efetivamente a reparar motores de aviões indonésios (por ocasião da luta internacional pela autodeterminação de Timor Lorosae, ocupado pela Indonésia); e, ao suceder a Cavaco na liderança do partido (o estadista que, em fins de 1995, tinha como objetivo prioritário o netinho), declarou ter receio de não ser capaz de suceder com eficácia ao carismático líder, pelo que, ao invés de intentar robustecer o partido, órfão de pai vivo, vai até ao Parlamento reformar o Estado e pôr ética nos partidos e na coisa pública.
Barroso, perante a Assembleia da República, profetizou que o país estava de tanga, mas, em vez de o vestir e preservar em condições, limitou-se a “destangá-lo”. Como não conseguiu mais, até porque não percebera que há mais vida para lá do orçamento – Sampaio dixit – foi-se para a Europa engrossar o painel dos países da União.
Mas Soares não ficou atrás no atinente a pérolas discursivas. Desde a reação à sua exoneração determinada por Eanes em 1978 – livre como passarinho fora da gaiola – ou, ao querer entrar em Lisboa como cidadão comum, que não era, a bradar ao senhor guarda que desapareça e diga ao colega que faça o mesmo, até ao reconhecimento do direito à indignação, os ditos episódicos não deixaram de marcar recorrentemente o ponto. No entanto, não deixa de ser caricato que, no âmbito de uma presidência aberta, em resposta a uma menina de uma escola básica que pedia ao Presidente que desse à escola um retroprojetor, haja prometido, sem mais, que os meninos iam ter um retroprojetor. No entanto, de imediato, volta-se para um membro do séquito e pergunta: “O que é um retroprojetor”?
E caso parecido sucedeu com Sampaio presidente. Um dos meninos de escola, em discurso de circunstância, pedia ao senhor Presidente uma extensa lista de coisas para a sua escola. E o generoso presidente respondeu com palavras, que cito de cor: Está bem, meu menino, ides ter tudo isso. Mas dá cá o papel, para dar ao senhor Ministro, àquele que trata disto.
Quando Vítor Constâncio, ao tempo governador do BdP Banco de Portugal, decretou que o défice real para 2005, como efetiva herança dos governos de Barroso e Santana, seria de 6,83% do PIB, Ferreira Leite, atualmente tida por irónicos comentadores como uma perigosíssima militante de esquerda, clamava que isso seria verdade se não houvesse Ministro das Finanças.
Do tempo de Sócrates, são de recordar plúrimas joias sentenciosas cheias de mentira como aquela de que os professores há trinta anos que não eram avaliados, na linha barrosista de que os professores podiam ser competentes para ensinar, mas podiam não o ser para gerir ou aquela gafe de que tudo estava a fazer para termos um país cada vez mais pobre. E a sua colaboradora vinha dizendo que perdera os professores, mas ganhou os pais, tal como a sucessora Isabel Vilar dizia que sabia fazer e tinha vontade.
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O atual Presidente, neste aspeto, é uma verdadeira enciclopédia, não somente ao nível do discurso como em alguns aspetos de postura. Citam-se necessariamente apenas algumas tiradas.
Ninguém esquece os momentos em que o país esteve suspenso duma comunicação ao país sobre o estatuto político-administrativo da Região Autónoma dos Açores ou sobre as putativas escutas telefónicas gizadas em Belém por São Bento. Os registos de agenda reterão afirmações como a de ainda estar para nascer quem seja mais honesto que o hodierno inquilino de Belém ou a acusação de deslealdade institucional ao anterior chefe do governo e o apelo ao sobressalto democrático, incitando os jovens a manifestarem-se (na rua, claro!).
Quem não se lembra de discurso de antanho proferido com insuspeita sinceridade e hoje esvaziado de sentido sobre o não se dever enervar os mercados, a inconveniência da ultrapassagem dos sacrifícios, a necessidade da sua distribuição equitativa, a espiral recessiva, a ineficácia das eleições para infletir a mudança da governação ou a insistência na índole nacional da crise. Não obstante, os diplomas legais que aumentam os sacrifícios e sem a sua distribuição equitativa, vão tendo em paz a conveniente promulgação, a dívida ou a crise já têm uma dimensão claramente europeia, as coisas não estão assim tão más (Portugal até aprendeu a lição e a Alemanha tem-nos ajudado: Muito obrigado, pela minha parte, senhora Merkel!) e até era possível uma antecipação a prazo das eleições, se o maroto do Seguro, em julho de 2013, tivesse cooperado assinando de cruz uma solução de salvação nacional.
Por outro lado, a governança não fica atrás do PR nas contradições. Só que, enquanto o PR muda de discurso e de perspetiva conforme a leitura que faz da realidade, o Governo mantém o discurso contraditório com o anteriormente prometido e não muda de perspetiva governativa, porque a realidade não muda, a não ser para melhor. Assim, o país, castigado por ter ousado viver acima das suas possibilidades, está melhor, mas os portugueses estão pior (Que raio de discurso!). O infalível Vítor Gaspar – que mandou aos jornalistas registar o dia do início do crescimento económico, que intercalara um segmento frásico entre o nome “desvio” e o adjetivo “colossal” para justificar a inverdadeira expressão de Passos e que explicou aos portugueses que o ano de 2015 era o imediatamente consecutivo a 2014 – reconheceu a sua incapacidade em carta demissória ao Primeiro-Ministro. E Paulo Portas, que tomara a decisão irrevogável de sair do governo, saiu efetivamente de Ministro do Estado e dos Negócios Estrangeiros para Vice-Primeiro-Ministro, com mais uns arreios governativos. E assim continua a procissão de contradições com os diversos andores de estrutura e performance bem semelhantes. Mas, se governam mal, têm via aberta para a Comissão Europeia, FMI, OCDE, BEI, ACNUR e outras coisas mais.
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Esquecendo as contradições entre as triviais promessas eleitorais desmentidas logo pelas primeiras medidas implementadas a seguir à posse dos governos de Barroso, Sócrates ou Passos e perseverantemente aumentadas em contradição com o prometido – assaz conhecidas de todos – falaremos um pouco sobre a banca e quejandos.
Desde logo, para o problema BPN o governo de Sócrates encontrou a solução nacionalizante sem contestação sustentada, até com prévia aprovação parlamentar em tempo relâmpago de lei-quadro de nacionalizações. Porém, a SLN, a dona e detentora do Banco, ficou incólume e permanece operante com outra designação, mas grosso modo com os mesmos atores e objetivos. A razão da nacionalização foi a necessidade de evitar o efeito de dominó sobre o sistema financeiro. Sobre BPP, nada: acionistas e depositantes tiveram que se acomodar. E o governo, felizmente reinante, vendeu o BPN ao BIC, mas ficou com os principais encargos – uma forma de agravar a nacionalização ora contestada a destempo. Já para o BCP, o imaginativo Ministério das Finanças do criativo governo de Sócrates, responsável perante o Presidente Cavaco e perante a AR, encontrou uma solução não nacionalizante: a reformulação da equipa da administração com o ingresso de cidadãos de confiança governamental, aliás do independente BdP.
 Agora, enquanto alguns comentadores vinham apontando a gravidade da situação do BES, ou corrigindo, do GES, a Administração rejeitou o recurso à capitalização com base na verba disponibilizada para o efeito pela troika, mas refugiando-se no recurso aos acionistas. Perante os indícios percebidos pelos reguladores, mercê do acompanhamento assíduo que vinham fazendo, recentemente a situação difícil veio à tona. E o BdP achou que a solução passaria necessariamente pela obrigação de aumento de capital e pela retirada da família da zona da Administração.
Num primeiro momento, Passos escudava-se na asserção de que o Estado não teria de pronunciar-se em assuntos respeitantes a uma organização da iniciativa privada e respetiva gestão. Só que o panorama apareceu bem mais grave. E os reguladores BdP e CMVM (Comissão do Mercado de Valores Mobiliários) mantêm uma postura de atenção e de condicionamento de decisões e procedimentos, a ponto de o Primeiro-Ministro vir afirmar, com Ferreira Leite, que o problema não é do Banco, mas do Grupo, assegurando que não há risco para os depositantes. Todavia, não deixa de sentenciar que os privados “têm de suportar as consequências dos maus negócios que fazem”; e o político que recusa qualquer hipótese de renegociação da dívida soberana, pediu ao Grupo Espírito Santo que negociasse com os seus credores. E para a Comissão Europeia, que acredita que quaisquer problemas serão geridos de forma “atempada e eficaz”, a situação no BES e a volatilidade que a mesma está a provocar nos mercados não representa uma preocupação significativa.
Hoje sabe-se que, no aumento de capital de há um mês do Banco, a família obteve, segundo o Expresso, um crédito do Nomura, com a garantia de 5% do capital do BES, como se sabe que a PT entrou com cerca de 900 milhões de financiamento do GES, o que fez rolar cabeças na PT/OI.
Entretanto, a descida em Bolsa levou o Banco a exigir as ações, que agora quer vender – o que induz à perda pela família de parte do seu maior ativo, passando a ficar com pouco mais de 20% do BES, o qual dispõe da almofada de 2,1 mil milhões para obviar a situações surpreendentes.
Por seu turno, a Moody's baixa rating do BES em três níveis, para B3, um patamar reservado a dívida considerada especulativa e com risco de crédito elevado.
E a CMVM, que suspendera a venda de ações do BES, decidiu a extensão, por um período adicional de dois dias de negociação, da proibição das vendas a descoberto das ações representativas do capital social do Banco Espírito Santo, S.A no Euronext Lisbon.
Porém, o BdP veio dizer que estava tudo bem com o BES – informação confirmada pelo Ministro da Presidência, Marques Guedes – e Seguro confessou já não deter tantos receios sobre o sistema financeiro, após as explicações do governador do BdP.
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Tudo isto levanta algumas interrogações, pelo que seria bom que se explicasse:
– Como é possível que o Banco (instrumento financeiro do Grupo) esteja de boa saúde e o grupo se esteja a afogar em mar de procelas e escolhos?
– Se o Banco está bem, por que motivo tem de ser mudada a administração, a nova equipa tem de entrar célere em funções, como quer o Governo, e o Banco tem de negociar com os credores?
– Se não há risco sistémico, porque aumentaram, embora episodicamente, os juros da dívida pública, a Bolsa de Lisboa teve momentos de queda e a CMVM suspendeu a negociação das ações do BES? Ou porque será que uma agência de notificação decide baixar o rating em três níveis e o FMI recomenda cuidados especiais ao Governo?
– Como é possível que a situação do BES ou do GES, um grupo de tão grande dimensão e de tão influente presença na economia (e na política), não tenha efeitos no sistema financeiro, quando a situação do BPN, de diminuta dimensão, poderia replicar-se no sistema?
– Será que miraculosamente mercados, instituições democráticas e povo passaram a levar em linha de conta as palavras dos governantes, até há pouco alegadamente despedidas de credibilidade?
– Não terão os portugueses direito a uma informação atempada, rigorosa e credível ou terão que se sujeitar à litania de palavras ocas promovidas a pérolas?

Estranha situação, medíocre discurso, abençoado milagre!

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