terça-feira, 22 de julho de 2014

Padre Américo Monteiro de Aguiar

– a pedagogia inovadora, a descoberta de novo caminho de Igreja –

Por ocasião do aniversário da Obra da Rua e evocando mais um aniversário da morte do seu fundador (ocorrida a 16 de julho de 1956, no Hospital Geral de Santo António, em consequência de brutal acidente de viação no lugar de Campo, em Valongo), o Bispo do Porto, presidiu à celebração eucarística na Casa Diocesana do Vilar. Na homilia, o prelado diocesano lançou um bom augúrio, sobretudo orante, pela beatificação e canonização do Padre Américo Monteiro de Aguiar, mais conhecido por Padre Américo ou, como passaram a tratá-lo carinhosamente os rapazes, Pai Américoprocesso de glorificação canónica que teve início em 1986.
***
Nasceu este benfazejo cidadão a 23 de outubro de 1887 na freguesia de Galegos, do concelho de  Penafiel, tendo recebido o Batismo em 4 de novembro daquele ano. Frequentou o ensino primário na terra natal, transitando, em 1898, para o Colégio do Carmo, de Penafiel, e no ano seguinte para o Colégio de Santa Quitéria, de Felgueiras. Após o término do curso liceal, em 1902, emprega-se numa loja de ferragens na cidade do Porto.
Quatro anos depois, parte para Moçambique, estabelecendo-se em Chinde, onde trabalha como despachante na companhia The British Central Africa e na African Lake – ocasião em que entra em contacto com o padre Rafael Maria da Assunção, futuro Bispo de Cabo Verde.
De volta a Penafiel, em 1923, abeira-se do pároco local, que fora seu companheiro de infância, a quem confia o desejo de ingressar num convento franciscano, sob o signo de uma justificação enigmática. Dois meses depois, ingressa no Convento de Santo António de Vilariño, em Tui (Espanha), onde permanece como postulante durante 9 meses, entregando-se ao estudo do latim e das ciências e, depois da tomada do hábito, mais um ano ainda. No entanto, por razões de temperamento e devido ao avançado da idade, avolumam-se as dificuldades em se adaptar à vida conventual, motivo pelo qual se processa a sua desvinculação em Julho de 1925. Porém, tenta ingressar no seminário diocesano do Porto, através de requerimento a que o Bispo Dom António Barbosa Leão não deu seguimento. Tal adversidade não lhe provoca desistência do intento de se fazer sacerdote e contacta com o Bispo de Coimbra, Dom Manuel Luís Coelho da Silva, que o aceita.
Após a formação teológica no Seminário Maior de Coimbra, é ordenado sacerdote e nomeado prefeito do Seminário e professor de Português. É igualmente capelão em Casais do Campo, freguesia de São Martinho do Bispo. Depois, é nomeado pároco de São Paulo de Frades, cargo de que não chega a tomar posse, incapacitado por um esgotamento. É então, em 1932, que o antístite conimbricense lhe entrega a Sopa dos Pobres. Aí, ele começa a revelar a sua verdadeira vocação apostólico-social. Daí em diante não mais parou na faina sociocaritativa.
Convidado a pregar à população de São Pedro de Alva,  do concelho de Penacova, em maio de 1935, o pároco, num dos dias de pregação, leva-o à escola primária. Em face daquelas crianças, o Padre Américo idealiza e formula a visão da Obra da Rua – caminho novo de serviço à Igreja.
Logo aí começou a marcha da obra com a fundação da primeira Casa da Colónia. Em agosto, decidiu ir para a capital de distrito, onde inicia as Colónias de Férias do Garoto da Baixa, em Coimbra, estágio embrionário do que viria a ser a Casa do Gaiato. Vêm, a seguir, Vila Nova do Ceira e Miranda do Corvo. E, finalmente, a 7 de janeiro de 1940, o Apóstolo dos Rapazes funda a primeira Casa do Gaiato no lugar de Bujos, em Miranda do Corvo. Por seu turno, a segunda Casa do Gaiato, implanta-se no lugar do antigo mosteiro beneditino de Paço de Sousa, de que surge a Aldeia do Gaiato para acolhimento e alojamento de crianças e jovens, complementada pelo Lar do Gaiato, no Porto, que se lhe seguiria. No mesmo âmbito e sob o lema “cada freguesia cuide dos seus pobres” concretiza o projeto de construção das primeiras casas do Património dos Pobres, também em Paço de Sousa, no mês de fevereiro de 1951.
Consagrada ao Santíssimo Nome de Jesus, a Obra da Rua ostenta como ex-líbris o Quim Mau, o garoto de braços abertos a solicitar o amor do próximo.
Entretanto, a 1 de janeiro de 1941, abrira o lar do Ex-Pupilo das Tutorias e dos Reformatórios, na Rua da Trindade, em Coimbra, instituição que viria a ser entregue aos Serviços Jurisdicionais de Menores em 1950. E, em junho daquele mesmo ano, o fundador publicou o primeiro volume do Pão dos Pobres. Logo no ano seguinte, em 1942, publicou Obra da Rua. E, a 5 de março de 1944, começou a publicar-se o jornal O Gaiato, quinzenário da Obra da Rua, de que foi o fundador e o primeiro diretor.
A 4 de janeiro de 1948, foi inaugurada a Casa do Gaiato de Lisboa, sita na quinta da Mitra, em Santo Antão do Tojal, em Loures. Em 1950, vêm a lume o opúsculo Do Fundamento da Obra da Rua e do Teor dos seus Obreiros e o primeiro volume do livro Isto é a Casa do Gaiato.
Em 1952, realiza uma viagem a África, de que resultarão também casas do gaiato em terras de Além-Mar; e publica um novo livro, O Barredo, sobre um dos bairros mais degradados do Porto, a que se seguem, em 1954, Ovo de Colombo e Viagens, justamente no ano em que toma posse da quinta da Torre, em Beire, freguesia de Paredes, onde instala uma Casa do Gaiato e o Calvário, para o abrigo de doentes incuráveis.
Finalmente, a 1 de julho de 1955, no ano anterior ao da sua morte, abre a Casa do Gaiato de Setúbal, em Algeruz.
***
Este notável benfeitor português, que dedicou a sua vida aos mais carenciados, principalmente crianças e jovens, com um rol humanamente inimaginável de inúmeras e diversificadas realizações, afirma-se como o inquestionável protagonista de uma inovadora pedagogia centrada nos rapazes – pelos rapazes, com os rapazes e pelos rapazes. Parece esta forma de promoção de ensino/aprendizagem a antecipação da pedagogia do oprimido, atribuível a Paulo Freire, ou uma pedagogia de promoção do indivíduo cuja dignidade postula para ele um lugar de pleno direito na sociedade, designadamente no campo do trabalho. Tal pedagogia, de sentido holístico e personalista, segue por dois caminhos complementares: a aprendizagem do saber intelectual caldeada com o exercício manual (casa, campo, oficinas…) e com o ludismo (que inclui a natação, em piscina e praia), a desembocar na capacitação para uma atividade profissional; e um estilo de liberdade (a porta da quinta está aberta, os visitantes encontram os rapazes na atividade normal), secundada pela responsabilidade (o dia terminava com o “tribunal” – de elogio e de penalização simbólica, a partir da autoacusação) e a procura da autossuficiência progressiva, aberta à solidariedade, mas abjurando do subsídio controlador, sobretudo do Estado.
Mas o fundador-promotor não se circunscreve à obra: ele vê e escuta; ele fala e escreve; ele escreve, ensina a escrever e faz escrever. A obra é feita pelos seus beneficiários, que também fazem a sua divulgação. Quem não se lembra dos ardinas de O Gaiato ou dos seus espetáculos dos rapazes, acarinhados por números simpatizantes e amigos?  
***
Bem apoiado na História da Obra se posiciona o senhor Bispo do Porto ao proclamar que “a Diocese do Porto vive com alegria e gratidão este dia de aniversário da Obra da Rua e evoca com devoção e emoção a memória do seu Fundador, Padre Américo Monteiro de Aguiar, de quem celebrámos o aniversário da morte, no passado dia 16 deste mês de julho”. Não se esquece o Ordinário Diocesano de destacar as duas casas mais emblemáticas: a Casa de Paço de Sousa e a Casa do Calvário, em Beire. Mas também salienta o conhecimento que Pai Américo tinha da cidade do Porto, onde foi muito acarinhado e de quem se tornou profundamente grato.
Depois de acentuar que a Cidade cultua a cidadania portuense do Apóstolo dos pobres ou doentes e da Rua – apontando a estátua erguida “numa das praças maiores e mais belas da nossa terra” e “as flores viçosas que pessoas anónimas em cada madrugada ali colocam e o carinho e devoção dos olhares que diariamente com ele ali se cruzam” – recordou as palavras de Dom António Ferreira Gomes na homilia da Eucaristia que celebrou em Paço de Sousa, a 16 de julho de 1969, na sua primeira visita, aquando do regresso do exílio a que fora votado pelos poderes. “Pediu compreensão ao Padre Américo, ali sepultado”, refere Dom António Francisco, “pelas portas fechadas que encontrou no coração da Igreja, quando manifestava o seu desejo de ser padre para se entregar aos mais pobres”. Sobre as crianças e jovens da Casa, afirmou que ‘as flores mais belas não são as que nascem cuidadas nos melhores jardins, mas sim aquelas que se encontram à beira dos caminhos ou na aridez das montanhas ignoradas e dos tugúrios desconhecidos’”.
E, ao celebrar à volta do altar da Eucaristia “a memória e a identidade, o passado e o presente, as realizações e os sonhos, as alegrias e as esperanças da Obra da Rua”, enalteceu a “generosidade, sacrifício e doação, muitas vezes amalgamados com a incompreensão de uns e o desconhecimento de outros, diante do bem”, que realizam os padres continuadores da Obra em prol daqueles de quem a sociedade teima em esquecer-se.
Por outro lado, o insigne Bispo revela a consciência do dever de se assumir a construção conjunta de “uma sociedade solidária, impregnada dos valores cristãos, neste chão sagrado e nesta terra de liberdade, de justiça, de caridade e de atenção aos mais pobres, que é o Porto”.
Reconhecendo que o Padre Américo partira ao encontro do Pai demasiado cedo, aos olhos humanos, “deixando órfãos os seus filhos espirituais”, entende que nos pertence doravante “implorar de Deus a sua beatificação e canonização para que a sua presença e a sua bênção se afirmem mais claramente em nós e na sua vida e missão encontremos um exemplo a seguir”.
Segundo Dom António Francisco, a coragem da fé e a firmeza da vocação – “o seu sonho era sonho do amor de Deus pelas crianças, pelos jovens, pelas famílias, pelos doentes e pelos abandonados daquele tempo” – levaram-no à superação das naturais e persistentes resistências do tempo e das humanas incompreensões dos planos por Deus concebidos para ele, mesmo da parte da Igreja. Todavia, Padre Américo – e o Bispo recorda as suas palavras – não esquece a tutela determinante e benéfica da Igreja: “Ai da Obra da Rua se não fosse a Igreja! Ai de mim se não fosse a Igreja! Que podia eu sem ela? E que não posso eu com ela?!”.
Ao glosar a parábola evangélica do trigo e do joio, que propõe o reconhecimento das plurais diferenças que coexistem no campo do mundo, o respeito pela liberdade de todos agirem responsavelmente, a diversidade de tarefas e de missão, a existência de forças competitivas e rivais que procuram anular os outros, e a chave de leitura da história e da sua abertura ao porvir definitivo – o celeiro do bom trigo – Dom António Francisco lê que o “exemplo de vida, o carisma profético do Padre Américo e o valor reconhecido da Obra da Rua convidam-nos a dar visibilidade e valor à experiência de comunidades centradas no Evangelho e na Eucaristia, acolhedoras, atentas e solidárias, que anunciem a alegria do Evangelho e vivam a caridade na verdade, de forma criativa, ousada e profética”.
Mesmo na verificação de que as circunstâncias e acontecimentos do presente toldam o horizonte de esperança do nosso mundo, não deixa de declarar que a Igreja, no quadro da sua missão, não pode limitar-se “a reconhecer e a conservar o que vive”, mas tem de saber “inspirar critérios de ética e de responsabilidade social” e, ao mesmo tempo, “mobilizar pessoas, grupos, movimentos apostólicos e comunidades cristãs para, em conjunto com a sociedade civil” se construir “com renovada esperança um mundo melhor”, cujos campos específicos e pertinentes são: “a vida humana, a família, a educação, a solidariedade social e a solicitude atenta aos doentes, às crianças, aos reclusos, aos desempregados, aos pobres e aos desfavorecidos”.
Para tanto, sublinhando a dedicação e o empenho dos padres da Obra da Rua nesta perspetiva humana e apostólica, o prelado quer expressamente “abrir as portas do coração e da Cidade aos que nos procuram”. Mais: quer que a comunidade portuense seja “casa onde a palavra, o pão e o trabalho se multipliquem e se transformem em alimento de vida, sinal de esperança e em experiência de fraternidade para todos”.

Que a voz não se lhe enrouqueça com a persistência da palavra profética, que o olhar não se lhe desvie deste mundo de Deus, que os pés não se lhe fatiguem na longa caminhada pela paz e pela justiça e que não deixe no olvido da memória a glorificação do Santo do Gaiato!

Sem comentários:

Enviar um comentário