– a pedagogia inovadora, a
descoberta de novo caminho de Igreja –
Por ocasião do
aniversário da Obra da Rua e evocando
mais um aniversário da morte do seu fundador (ocorrida a 16 de julho de 1956,
no Hospital Geral de Santo António, em consequência de brutal acidente de
viação no lugar de Campo, em Valongo), o Bispo do Porto, presidiu à celebração
eucarística na Casa Diocesana do Vilar. Na homilia, o prelado diocesano lançou
um bom augúrio, sobretudo orante, pela beatificação e canonização do Padre Américo
Monteiro de Aguiar, mais conhecido por Padre
Américo ou, como passaram a tratá-lo carinhosamente os rapazes, Pai Américo – processo de glorificação canónica
que teve início em 1986.
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Nasceu este
benfazejo cidadão a 23 de outubro de 1887 na freguesia de Galegos, do concelho
de Penafiel, tendo recebido o
Batismo em 4 de novembro daquele
ano. Frequentou o ensino primário na terra natal, transitando, em 1898, para o
Colégio do Carmo, de Penafiel, e no ano seguinte para o Colégio de Santa
Quitéria, de Felgueiras. Após o término do curso liceal, em 1902, emprega-se numa
loja de ferragens na cidade do Porto.
Quatro anos depois, parte para
Moçambique, estabelecendo-se em Chinde, onde trabalha como despachante na
companhia The
British Central Africa e na African
Lake – ocasião em que entra em contacto com o padre Rafael Maria da
Assunção, futuro Bispo de Cabo Verde.
De volta a Penafiel, em 1923,
abeira-se do pároco local, que fora seu companheiro de infância, a quem confia
o desejo de ingressar num convento franciscano, sob o signo de uma justificação
enigmática. Dois meses depois, ingressa no Convento
de Santo António de Vilariño, em Tui
(Espanha), onde permanece como postulante durante 9 meses, entregando-se
ao estudo do latim e das ciências e,
depois da tomada do hábito, mais um ano ainda. No entanto, por razões de
temperamento e devido ao avançado da idade, avolumam-se as dificuldades em se
adaptar à vida conventual, motivo pelo qual se processa a sua desvinculação em
Julho de 1925. Porém, tenta ingressar no seminário diocesano
do Porto, através de requerimento a que o Bispo Dom António Barbosa Leão não
deu seguimento. Tal adversidade não lhe provoca desistência do intento de se
fazer sacerdote e contacta com o Bispo de Coimbra, Dom Manuel Luís Coelho da
Silva, que o aceita.
Após a formação teológica no
Seminário Maior de Coimbra, é ordenado sacerdote e nomeado prefeito do
Seminário e professor de Português. É igualmente capelão em
Casais do Campo, freguesia de São Martinho do Bispo. Depois, é nomeado pároco
de São Paulo de Frades, cargo de que não chega a tomar posse, incapacitado por
um esgotamento. É então, em 1932,
que o antístite conimbricense lhe entrega a Sopa dos Pobres. Aí, ele começa a revelar a sua verdadeira
vocação apostólico-social. Daí em diante não mais parou na faina sociocaritativa.
Convidado a pregar à população de
São Pedro de Alva, do concelho
de Penacova, em maio de 1935, o
pároco, num dos dias de pregação, leva-o à escola primária. Em face daquelas
crianças, o Padre Américo idealiza e formula a visão da Obra da Rua – caminho novo de serviço à Igreja.
Logo aí começou a marcha da obra
com a fundação da primeira Casa da Colónia. Em agosto, decidiu ir para a capital de distrito, onde
inicia as Colónias de Férias do Garoto da
Baixa, em Coimbra, estágio embrionário do que viria a ser a Casa do
Gaiato. Vêm, a seguir, Vila
Nova do Ceira e Miranda do Corvo. E, finalmente, a 7 de janeiro de 1940, o Apóstolo dos
Rapazes funda a primeira Casa do Gaiato
no lugar de Bujos, em Miranda do Corvo. Por seu turno, a segunda Casa do Gaiato, implanta-se no lugar do
antigo mosteiro beneditino de Paço de Sousa, de que surge a Aldeia do Gaiato para acolhimento e
alojamento de crianças e jovens, complementada pelo Lar do Gaiato, no Porto, que se lhe seguiria. No mesmo âmbito e sob
o lema “cada freguesia cuide dos seus pobres” concretiza o projeto de
construção das primeiras casas do Património dos Pobres, também em Paço de
Sousa, no mês de fevereiro de 1951.
Consagrada ao Santíssimo Nome de
Jesus, a Obra da Rua ostenta como ex-líbris o Quim Mau, o garoto de braços
abertos a solicitar o amor do próximo.
Entretanto, a 1 de janeiro de
1941, abrira o lar do Ex-Pupilo das Tutorias e dos Reformatórios,
na Rua da Trindade, em Coimbra, instituição que viria a ser entregue aos
Serviços Jurisdicionais de Menores em 1950.
E, em junho daquele mesmo ano, o fundador publicou o primeiro volume do Pão
dos Pobres. Logo no ano seguinte, em 1942, publicou Obra
da Rua. E, a 5 de março de 1944, começou
a publicar-se o jornal O Gaiato, quinzenário da Obra da
Rua, de que foi o fundador e o primeiro diretor.
A 4 de janeiro de 1948, foi inaugurada a
Casa do Gaiato de Lisboa, sita na
quinta da Mitra, em Santo Antão do Tojal, em Loures. Em 1950, vêm a lume o
opúsculo Do Fundamento da Obra da Rua e
do Teor dos seus Obreiros e o primeiro volume do livro Isto é a Casa do Gaiato.
Em 1952, realiza uma viagem a
África, de que resultarão também casas do gaiato em terras de Além-Mar; e publica
um novo livro, O Barredo, sobre um dos bairros mais
degradados do Porto, a que se seguem, em 1954, Ovo
de Colombo e Viagens,
justamente no ano em que toma posse da quinta da Torre, em Beire, freguesia de Paredes, onde instala uma Casa do Gaiato e o Calvário, para o abrigo de doentes incuráveis.
Finalmente, a 1 de julho de 1955,
no ano anterior ao da sua morte, abre a Casa
do Gaiato de Setúbal, em Algeruz.
***
Este notável benfeitor
português, que dedicou a sua vida
aos mais carenciados, principalmente crianças e jovens, com um rol humanamente
inimaginável de inúmeras e diversificadas realizações, afirma-se como o inquestionável
protagonista de uma inovadora pedagogia centrada nos rapazes – pelos rapazes, com os rapazes e pelos
rapazes. Parece esta forma de promoção de ensino/aprendizagem a antecipação
da pedagogia do oprimido, atribuível a Paulo Freire, ou uma pedagogia de
promoção do indivíduo cuja dignidade postula para ele um lugar de pleno direito
na sociedade, designadamente no campo do trabalho. Tal pedagogia, de sentido
holístico e personalista, segue por dois caminhos complementares: a
aprendizagem do saber intelectual caldeada com o exercício manual (casa, campo,
oficinas…) e com o ludismo (que inclui a natação, em piscina e praia), a
desembocar na capacitação para uma atividade profissional; e um estilo de
liberdade (a porta da quinta está aberta, os visitantes encontram os rapazes na
atividade normal), secundada pela responsabilidade (o dia terminava com o
“tribunal” – de elogio e de penalização simbólica, a partir da autoacusação) e
a procura da autossuficiência progressiva, aberta à solidariedade, mas
abjurando do subsídio controlador, sobretudo do Estado.
Mas o fundador-promotor
não se circunscreve à obra: ele vê e escuta; ele fala e escreve; ele escreve,
ensina a escrever e faz escrever. A obra é feita pelos seus beneficiários, que
também fazem a sua divulgação. Quem não se lembra dos ardinas de O Gaiato ou dos seus espetáculos dos
rapazes, acarinhados por números simpatizantes e amigos?
***
Bem apoiado na
História da Obra se posiciona o senhor Bispo do Porto ao proclamar que “a Diocese do Porto vive com
alegria e gratidão este dia de aniversário da Obra da Rua e evoca com devoção e
emoção a memória do seu Fundador, Padre Américo Monteiro de Aguiar, de quem
celebrámos o aniversário da morte, no passado dia 16 deste mês de julho”. Não se
esquece o Ordinário Diocesano de destacar as duas casas mais emblemáticas: a Casa de Paço de Sousa e a Casa do Calvário, em Beire. Mas também salienta
o conhecimento que Pai Américo tinha da cidade do Porto, onde foi muito acarinhado
e de quem se tornou profundamente grato.
Depois de acentuar que a Cidade
cultua a cidadania portuense do Apóstolo dos pobres ou doentes e da Rua –
apontando a estátua erguida “numa das praças maiores e mais belas da nossa
terra” e “as flores viçosas que pessoas anónimas em cada madrugada ali colocam
e o carinho e devoção dos olhares que diariamente com ele ali se cruzam” – recordou
as palavras de Dom António Ferreira Gomes na homilia da Eucaristia que celebrou
em Paço de Sousa, a 16 de julho de 1969, na sua primeira visita, aquando do
regresso do exílio a que fora votado pelos poderes. “Pediu compreensão ao Padre
Américo, ali sepultado”, refere Dom António Francisco, “pelas portas fechadas
que encontrou no coração da Igreja, quando manifestava o seu desejo de ser
padre para se entregar aos mais pobres”. Sobre as crianças e jovens da Casa,
afirmou que ‘as flores mais belas não são as que nascem cuidadas nos melhores
jardins, mas sim aquelas que se encontram à beira dos caminhos ou na aridez das
montanhas ignoradas e dos tugúrios desconhecidos’”.
E, ao celebrar à volta do altar da
Eucaristia “a memória e a identidade, o passado e o presente, as realizações e
os sonhos, as alegrias e as esperanças da Obra da Rua”, enalteceu a “generosidade,
sacrifício e doação, muitas vezes amalgamados com a incompreensão de uns e o
desconhecimento de outros, diante do bem”, que realizam os padres continuadores
da Obra em prol daqueles de quem a sociedade teima em esquecer-se.
Por outro lado, o insigne Bispo
revela a consciência do dever de se assumir a construção conjunta de “uma sociedade
solidária, impregnada dos valores cristãos, neste chão sagrado e nesta terra de
liberdade, de justiça, de caridade e de atenção aos mais pobres, que é o Porto”.
Reconhecendo que o Padre Américo
partira ao encontro do Pai demasiado cedo, aos olhos humanos, “deixando órfãos
os seus filhos espirituais”, entende que nos pertence doravante “implorar de
Deus a sua beatificação e canonização para que a sua presença e a sua bênção se
afirmem mais claramente em nós e na sua vida e missão encontremos um exemplo a
seguir”.
Segundo Dom António Francisco, a
coragem da fé e a firmeza da vocação – “o seu sonho era sonho do amor de Deus
pelas crianças, pelos jovens, pelas famílias, pelos doentes e pelos abandonados
daquele tempo” – levaram-no à superação das naturais e persistentes resistências
do tempo e das humanas incompreensões dos planos por Deus concebidos para ele,
mesmo da parte da Igreja. Todavia, Padre Américo – e o Bispo recorda as suas
palavras – não esquece a tutela determinante e benéfica da Igreja: “Ai da Obra da Rua se não fosse a Igreja! Ai
de mim se não fosse a Igreja! Que podia eu sem ela? E que não posso eu com ela?!”.
Ao glosar a parábola evangélica
do trigo e do joio, que propõe o reconhecimento das plurais diferenças que
coexistem no campo do mundo, o respeito pela liberdade de todos agirem
responsavelmente, a diversidade de tarefas e de missão, a existência de forças
competitivas e rivais que procuram anular os outros, e a chave de leitura da
história e da sua abertura ao porvir definitivo – o celeiro do bom trigo – Dom
António Francisco lê que o “exemplo de vida, o carisma profético do Padre
Américo e o valor reconhecido da Obra da Rua convidam-nos a dar visibilidade e
valor à experiência de comunidades centradas no Evangelho e na Eucaristia,
acolhedoras, atentas e solidárias, que anunciem a alegria do Evangelho e vivam
a caridade na verdade, de forma criativa, ousada e profética”.
Mesmo na verificação de que as circunstâncias
e acontecimentos do presente toldam o horizonte de esperança do nosso mundo, não
deixa de declarar que a Igreja, no quadro da sua missão, não pode limitar-se “a
reconhecer e a conservar o que vive”, mas tem de saber “inspirar critérios de
ética e de responsabilidade social” e, ao mesmo tempo, “mobilizar pessoas,
grupos, movimentos apostólicos e comunidades cristãs para, em conjunto com a
sociedade civil” se construir “com renovada esperança um mundo melhor”, cujos campos
específicos e pertinentes são: “a vida humana, a família, a educação, a
solidariedade social e a solicitude atenta aos doentes, às crianças, aos
reclusos, aos desempregados, aos pobres e aos desfavorecidos”.
Para tanto, sublinhando a
dedicação e o empenho dos padres da Obra
da Rua nesta perspetiva humana e apostólica, o prelado quer expressamente “abrir
as portas do coração e da Cidade aos que nos procuram”. Mais: quer que a
comunidade portuense seja “casa onde a palavra, o pão e o trabalho se
multipliquem e se transformem em alimento de vida, sinal de esperança e em
experiência de fraternidade para todos”.
Que a voz não se lhe enrouqueça
com a persistência da palavra profética, que o olhar não se lhe desvie deste
mundo de Deus, que os pés não se lhe fatiguem na longa caminhada pela paz e
pela justiça e que não deixe no olvido da memória a glorificação do Santo do Gaiato!
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