sábado, 30 de abril de 2016

A postura errática do Presidente

Passos Coelho, no congresso partidário em que tentou definir o candidato presidencial a apoiar pelo PSD, falava em ideias erráticas e em estilo de catavento como caraterísticas que o seu candidato não deveria ter. Muitos (incluindo o próprio Marcelo) pensaram que subentendidamente se referia ao antigo líder socialdemocrata professor. O ex-presidente da Câmara do Porto, seu potencial adversário, da mesma área partidária, na carta aberta em que informava o eleitorado da sua desistência da corrida para Belém, afirmava que sabia que era a figura da direita com melhor perfil e que não seria foco de instabilidade no palácio presidencial – o que parecia uma clara referência ao ex-presidente partidário de que Rio fora secretário-geral.
Marcelo desenvolveu uma campanha eleitoral atípica, mas que, servindo de corolário ao notório percurso de visibilidade pública, via televisão, lhe deu folgada vitória.
E é verdade que, de um modo geral, as suas inovações caíram bem e os seus discursos emblemáticos (da tomada de posse, ao Parlamento Europeu e das comemorações do 25 de abril) podem e devem considerar-se bem conseguidos.
Não obstante, como é do conhecimento público, o Presidente não perde a oportunidade de intervir sempre que haja tema, assunto ou caso. Se lhe parecer conveniente, tudo observa, tudo comenta e em tudo diligencia. Com Marcelo pode haver outras personagens, outros agentes, outros atores, mas não outros protagonistas. Pelo menos, quer figurar como primus inter pares. O próprio Primeiro-Ministro o vai acolitando com o recorrente Ámen.
Não dúvida de que, sempre que dirige a palavra ex catedra praesidentiali, faz jus aos dons oratórios de que é dotado por natureza, por exercício e por experiência, excetuando aquele martelar gestual de mão direita a acompanhar quase ininterruptamente o ritmo frásico, mas sem que sirva de considerável mais-valia na expressividade discursiva.
***
João Semedo, em artigo de opinião publicado na revisa Visão, de 28 de abril, faz derivar o presuntivo facto de os portugueses estarem a viver “uma overdose de Presidente, uma overdose de Marcelo” da “insustentável leveza do Presidente”.
Já me referi a alguns exemplos da sua ligeireza. Recordo-me, a propósito, das palavras que proferiu em comentário à audiência com o Papa, revelando entre linhas o que dizia não revelar; das justificações que dá sobre futura promulgação de diplomas legais, atuação do Governo, posição do CDS, questões com o BPI e de tantas outras circunstâncias em que se abeira dos microfones públicos.
João Semedo arrisca escrever que hoje notícia será “Marcelo não querer comentar algum facto ou situação” e que, se Marcelo deixou o comentário, o comentário não deixou Marcelo”.
Há quem diga que é defeito, há quem diga que assim é que está bem (temos presidente próximo do povo e da realidade). Outros avançam que é para mostrar a diferença entre o seu exercício da presidência, próximo e afável, e o de Cavaco, frio e distante. E outros ainda explicam este afã da chefatura do Estado para ganhar terreno, marcar agenda e conquistar a simpatia popular para que, em momento de crise aguda, consiga ser ouvido por todos e obter o favor do consenso para a ultrapassagem das situações problemáticas.
Ora, um defeito ultrapassa-se com o exercício da lima; a proximidade não implica pronunciar-se sobre tudo e todos (temos uma boca e dois ouvidos, um nariz e dois olhos); para ser diferente de Aníbal não é preciso muito; e, quanto à conveniência de obter o favor popular para ser ouvido em tempo de crise, pode suceder o efeito contrário, a saturação ante a palavra do Presidente. E, mais do que a palavra do poder, é importante o poder da palavra. E que sucederá se a palavra do poder já não tiver poder?
Semedo, ao verificar que aquilo que acontecia “apenas ao domingo, é agora diário e, com frequência, mais do que uma vez por dia”. E vai mais longe ao frisar:
“Não importa se é defeito ou feitio, tática ou estratégia, se é estilo para os primeiros tempos ou se veio para ficar. Nem tão pouco interessa saber se Marcelo quer apenas exibir o que o distingue de Cavaco ou se quer mesmo concorrer com o primeiro-ministro António Costa, não tanto na notoriedade pública e mediática mas, sim, na efetiva condução do país e na ocupação do centro da vida política portuguesa. Não adianta especular muito sobre as motivações de Marcelo, o tempo se encarregará de as tornar transparentes.”.
Considerando que “a densidade das opiniões do Presidente é inversamente proporcional à frequência com que as produz”, afirma Semedo que “a leveza é a marca de muitas das suas afirmações”. Como exemplo, recorre às palavras de Marcelo sobre o “pacto para a saúde”.
Assim, refere que, previamente ao discurso que preferiu na cerimónia das comemorações dos 75 anos da Liga Portuguesa contra o Cancro, pronunciou umas palavras endereçadas ao ministro da Saúde:
“A sua presença aqui… também é… a certeza de que pode vir a ser um protagonista importante num verdadeiro pacto da saúde na sociedade... aceitação de princípios fundamentais pelos mais variados quadrantes da vida nacional. É uma abertura de caminho para um pacto que antes de ser formalizado, já existe.”.
João Semedo, depois de negar a existência de qualquer pacto para a saúde – estribado nas posições conhecidas dos diversos partidos, ao centro e à direita e a uma certa esquerda, em que só por hipocrisia não esmifraram totalmente o serviço nacional de saúde, tolerando, favorecendo e copagando os serviços lucrativos de saúde prestados pelo setor privado – ressalva que o único pacto de saúde que existe é o plasmado no texto constitucional. E bem poderia socorrer-se do preceituado na Lei Fundamental, carateriza o serviço nacional de saúde como universal e geral e tendencialmente gratuito. Com efeito, o artigo 64.º da CRP, depois de reconhecer que “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover”, estabelece que “o direito à proteção da saúde é realizado”:
“a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;
“b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a proteção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável.”
Depois, define as incumbências prioritárias do Estado nesta matéria:
“Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação; e “uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde”;
“Orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;
“Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade;
“Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;
“Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência.”
Por fim, vem a referência constitucional à gestão do serviço:
O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada”.
***
Nestes dias, em visita a Moçambique, país ora dilacerado por grave e global crise política, económica, financeira e social, Marcelo vai relançar o debate sobre o Acordo Ortográfico, aproveitando a boleia da ainda não ratificação do dito acordo por aquele Estado africano.
Pelos vistos, o consultor cultural do presidente da República, Pedro Mexia, está atolado nas mensagens que Marcelo alegadamente tem recebido “de cidadãos e instituições a contestar o acordo e que, se Moçambique e Angola não o ratificarem, “impõe-se uma reflexão sobre a matéria, que é de competência governamental, mas o Presidente não deixará de sublinhar a utilidade de reflexão”.
Ora, mais uma vez Marcelo se mostra “metediço”, como o fez ao pressionar o Ministério da Educação para o estabelecimento dum regime transitório para a avaliação externa das aprendizagens no ensino básico. E tem postura errática, como se pode ver recordando.
Segundo o DN on line de hoje, dia 30 de abril, o Expresso recorda que, em 1991, “Marcelo Rebelo de Sousa foi um dos 400 subscritores de um manifesto contra o Acordo Ortográfico”. Porém, em 2008, manifestou-se a favor, tendo em conta que as alterações não eram substanciais. Depois, em 2014 na TVI, admitiu que, apesar de ter defendido o Acordo, tinha dificuldade em o aplicar. E, durante a campanha para as eleições presidenciais, continuou a desrespeitar as regras da nova ortografia, mas não tomou posição pública sobre o tema. Já em abril mês, em ofício a que o Expresso acedeu, pode ler-se que “sem prejuízo de possíveis desenvolvimentos futuros, o presidente da República, como todas as instituições do Estado português, segue as regras do Acordo Ortográfico no exercício das suas funções”.
E, quando ouviu Manuel Alegre a desdizer da nova ortografia em cerimónia pública de prémio que o Presidente lhe entregou, no dia 25 de abril, não produziu qualquer nota explicativa.
Não pode, em meu entender, o Presidente jogar em matéria tão discutível tomar qualquer iniciativa e muito menos agir contra o posicionamento político de parlamentos e governos de ordens políticas diversas. Se o Governo ou o Parlamento quiserem ter iniciativa política e legislativa sobre a matéria, que a tomem e que arquem com as responsabilidades.
Foi melhor política ou cientificamente a reforma ortográfica do governo provisório da I República (1911) ou a da Ditadura Nacional do Estado Novo (1945)? São mais os falantes de português em Angola e Moçambique que no Brasil e nos demais países lusófonos?
***
Dizem não haver consenso sobre a ortografia, mas também não o há sobre os ditos objetivos nacionais ao contrário do que diz Marcelo, como sustenta Alfredo Barroso: por exemplo, em relação a esta União Europeia, em relação ao transatlantismo, em relação ao Estado Social…
Portanto, que Marcelo seja Presidente e só Presidente. Dispensamos o comentador e o professor.
2016.04.30 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Há 60 anos: 29 de abril de 1956, uma festa civil

Toda a gente falava de festa na terra. Ouviram-se alguns foguetes e dizia-se que ia entrar a música a tocar pelas ruas (na minha terra, música era a banda filarmónica). Mas eu não via nem ouvia música nenhuma. Diziam que ia ser inaugurado o telefone, mas eu não sabia o que era o telefone. E festa eu pensava que era só a Nosso Senhor, a Nossa Senhora, a Santo Antão e a São Brás. E também ao Senhor do Calvário, na freguesia ao lado.
Depois, foi tudo muito estranho. Fui à missa com o meu pai, quando habitualmente ia com a minha mãe ou as minhas irmãs. Fiquei no coro, quando dantes ficava juntamente com as mulheres no corpo da igreja. E vi só um padre na missa (o senhor Abade) e de verde. Ora nas festas, eram três padres e vestidos de branco, que cantavam a missa. E desta vez também a música não estava na missa nem houve procissão com andores com santos.
À tarde, não houve um arraial nem andores de prendas (os chamados “ramos”) nem leilões. Houve um cortejo com dois padres e uns senhores bem vestidos, que iam para a casa aonde as pessoas iam comprar o arroz e a massa, o azeite e o açúcar (tantas outras coisas) e aonde iam levar as cartas. Houve vivas e palmas, música e foguetes. Não percebi nada da poda naquele dia.
Só mais tarde é que percebi que aquela festa era a da inauguração do telefone. E o telefone era uma máquina que estava guardada numa casota. Tocava, pegavam nela e falavam com quem estava longe, mas que não se via. E, quando, alguém queria falar, chegava lá, metia os dedos numa roda com uns buracos, punha uma coisa que dava para a boca e para uma orelha e falava. Depois, ia perguntar quanto era e pagava umas moedas aos donos da loja.
Durante muitos anos, só havia uma máquina daquelas na terra. Mais tarde, outras pessoas também passaram a ter telefone, mas o que tinha sido inaugurado era o posto público.
***
Na missa, perguntei ao meu pai se aquilo era festa. E o meu pai disse-me que a festa não era de igreja: era festa civil.
Então fiquei a pensar que festa civil era uma festa em que a missa era rezada e só tinha um padre, vestido de verde. Não se falava de santos, a música não ia à igreja, não havia procissão. De tarde, havia um cortejo para a casa do arroz e da massa, havia foguetes e música, palmas e vivas, mas sem arraial e leilão.
Quando nos juntávamos para brincar, arremedávamos as festas. Mas, primeiro, combinava-se se eram festas religiosas ou festas civis; depois, festejava-se em conformidade. É claro que nós gostávamos mais das festas religiosas, porque as festas civis não eram bem festas.
Não tínhamos computadores, rádios, televisão, telemóveis nem festas de pijamas, pic-nics, nem mesmo eletricidade. Mas já havia microfones e altifalantes, pelo que nós improvisávamos discursos de sermão pronunciados sobre uma moca e amplificados por um funil. A música saía fazendo nós os sons metendo os dedos na boca e fazendo som parecido com o das cornetas da filarmónica e os foguetes conseguiam-se atando pedacinhos de terra envoltos em papel a caules de junco fazendo subir os sistemas no ar e com a boca imitando o som da subida e dos estrondos (estalaria e morteiro). Para a imitação ser completa, alguns foguetes tinham que estoirar no chão.
A festa era alternativa aos jogos da bola de trapos, do pião, das pedrinhas… e havia padre a cantar a missa, padre a fazer a procissão e padre a pregar o sermão. Fazíamos o arraial com baile, leilão, música e foguetes. E também havia os mordomos, que davam ordens aos padres, e as mordomas, que davam ordens aos mordomos.
***
Mas o dia da inauguração do telefone comportou uma perda de que não me apercebi no próprio dia. Andei todo do dia distraído. Só dei conta de que tinha morrido o meu avô paterno quando no dia seguinte estava muita gente na casa dele. Estava cá fora, vi o senhor abade a chegar, de preto e branco com uns homens de vermelho, que traziam uma cruz e umas velas acesas dentro dumas maçarocas (de lata e vidro, enfiadas num pau) e um quadro pintado enfiado num pau que terminava com uma cruzinha.
Lá consegui entrar. Vi gente a rezar e as minhas irmãs a chorar, mas eu não sabia porquê.
Só depois, quando perguntava por ele, é que me disseram que o avô tinha morrido, aliás que estava no céu.
***
E assim, no dia em que a minha aldeia festejava a chegada do progresso materializado numa máquina de falar, com uma festa de que eu não gostava, os anjos festejavam a chegada do avô de que eu gostava. Foi o único avô que conheci, de quem gostei e de cuja vida (já em idade avançada) guardo memória.
É a vida. E por quem espera por nós a oração e a memória, sessenta anos depois!
2016.04.29 – Louro de Carvalho

Escândalo: padre afasta funcionária por não trabalhar ao domingo

O JN de 28 de abril traz em primeira página a escandalosa notícia vazada em epígrafe. Um padre chegou ao desplante de punir uma trabalhadora por ela se recusar a trabalhar ao domingo e, questionado pelo jornal, remeteu-se ao silêncio.
Vamos a ler o desenvolvimento na página 20 e, afinal, a montanha pariu um rato. Na verdade, uma auxiliar de Centro Social e Paroquial, recusou o novo horário de trabalho numa instituição que tem uma valência que implica o trabalho por turnos, o que postula a prestação de serviço também em sábado, feriado e domingo – não todos os sábados, feriados e domingos. Compete à direção o estabelecimento do horário de trabalho, obviamente que, se possível, com a concordância do trabalhador. O caso terá sido objeto de processo disciplinar, intervenção de polícia, perda de salário, proibição de entrada nas instalações e, desde agora, de ação judicial.
Trata-se de situações recorrentes no campo laboral – o que deverá ser apreciado em termos de direito do trabalho e provavelmente à luz das liberdades, direitos e garantias pessoais.
Quem se ficasse pela leitura de títulos poderia erradamente ser induzido a pensar que um sacerdote teria querido proibir uma cristã do cumprimento do preceito do descanso dominical, contrariando quer o 3.º mandamento da Lei de Deus, quer o 2.º mandamento da Igreja.
***
Que nos dizem os tais mandamentos?
O Compêndio do Catecismo da Igreja Católica (CCIC), nos seus números 453 e 454, resume o conteúdo dos preceitos atinentes à santificação semanal do Dia do Senhor, respondendo a duas questões: como santificar o domingo; e porque é importante reconhecer civilmente o domingo como dia festivo. Assim:
– “Os cristãos santificam o domingo e as festas de preceito participando na Eucaristia do Senhor e abstendo-se das atividades que o impedem de prestar culto a Deus e perturbam a alegria própria do dia do Senhor ou o devido descanso da mente e do corpo. São permitidas as atividades ligadas a necessidades familiares ou a serviços de grande utilidade social, desde que não criem hábitos prejudiciais à santificação do domingo, à vida de família e à saúde.” (n.º 453).
 – “Para que todos possam gozar de repouso suficiente e tempo livre, que lhes permitam cuidar da vida religiosa, familiar, cultural e social; para dispor de tempo propício à meditação, reflexão, silêncio e estudo; e para fazer boas obras, servir os doentes e os anciãos” (n.º 454).
E, na alínea b) do apêndice, a atinente a fórmulas de doutrina católica, enuncia como o primeiro dos cinco preceitos da Igreja: “participar na Missa, aos domingos e festas de guarda e abster-se de trabalhos e atividades que impeçam a santificação desses dias”. 
É um preceito (tanto no decálogo como na doutrina católica) de dupla vertente: a prestação de culto e a observância do repouso. Porém, é de notar que a observância do repouso está concebida em função quer da criação da oportunidade da prestação do culto a Deus e do revigoramento espiritual da pessoa humana, quer das necessidades de prestação do apoio e serviço à família quer de serviços de grande utilidade social.
Já, quando estudávamos a catequese pelos catecismos nacionais organizados por Amílcar do Amaral, nos ensinavam as situações em que estávamos dispensados do preceito dominical. Da missa dispensavam-nos o estado grave de doença própria ou de família e a distância excessiva; do repouso, os serviços urgentes ou os inadiáveis deveres de justiça e caridade. Todavia, nunca ficávamos dispensados da oração nem de perder de vista o sentido cristão do repouso, incompatível como o ócio puro e simples e sobretudo se pecaminoso.
***
Talvez seja conveniente ver o que efetivamente nos diz o Catecismo da Igreja Católica (CIC), à luz do qual se elaborou o CCIC. Assim, quanto ao dever do repouso, o n.º 2185 estabelece:
“Aos domingos e outros dias festivos de preceito, os fiéis abstenham-se de trabalhos e negócios que impeçam o culto devido a Deus, a alegria própria do Dia do Senhor, a prática das obras de misericórdia ou o devido repouso do espírito e do corpo”.
Em termos da atenção solidária, o n.º 2186, dispõe:
“Os cristãos que dispõem de tempos livres lembrem-se dos seus irmãos que têm as mesmas necessidades e os mesmos direitos, e não podem descansar por motivos de pobreza e de miséria. O domingo é tradicionalmente consagrado, pela piedade cristã, às boas obras e aos serviços humildes dos doentes, enfermos e pessoas de idade.” […]. “O domingo é um tempo de reflexão, de silêncio, de cultura e de meditação, que favorecem o crescimento da vida interior e cristã”.
Quanto aos afazeres que dispensam da obrigação do repouso dominical, o CIC estabelece:
“As necessidades familiares ou uma grande utilidade social constituem justificações legítimas em relação ao preceito do descanso dominical. Mas os fiéis estarão atentos a que legítimas desculpas não introduzam hábitos prejudiciais à religião, à vida de família e à saúde”. “O amor da verdade procura o ócio santo: a necessidade do amor aceita o negócio justo” (vd 2185).
Sobre outras formas de santificação do domingo, fica estabelecido:
“Os cristãos também santificarão o domingo prestando à sua família e vizinhos tempo e cuidados difíceis de prestar nos outros dias da semana” (vd 2186).
O próprio CIC prevê situações em que não é possível cumprir o preceito do repouso dominical, seja por o domingo não ser feriado nalguns países, seja por haver trabalhos que têm de continuar a ser feitos ao domingo. Por isso, vêm ao caso dois números que estabelecem, por um lado, o comportamento do cristão que se vê impossibilitado de cumprir o preceito e, por outro, a obrigação que impende sobre todos relativamente à criação de condições propícias à observância do repouso dominical.
Relativamente ao primeiro caso, o n.º 2188 dispõe sobre a postura cívica e cristã:
“No respeito pela liberdade religiosa e pelo bem comum de todos, os cristãos devem esforçar-se pelo reconhecimento dos domingos e dias santos da Igreja como dias feriados legais. Devem dar a todos o exemplo público de oração, respeito e alegria, e defender as suas tradições como uma contribuição preciosa para a vida espiritual da sociedade humana. Se a legislação do país ou outras razões obrigarem a trabalhar ao domingo, que este dia seja vivido, no entanto, como sendo o dia da nossa libertação, que nos faz participantes da reunião festiva, da assembleia de primogénitos inscritos nos céus” (Heb 12,22-23).
E, relativamente ao segundo, estabelece o n.º 2187, no atinente a diversos agentes e situações:
“Santificar os domingos e festas de guarda exige um esforço comum. Todo o cristão deve evitar impor a outrem, sem necessidade, o que possa impedi-lo de guardar o Dia do Senhor. Quando os costumes (desporto, restaurantes, etc.) e as obrigações sociais (serviços públicos, etc.) reclamam de alguns um trabalho dominical, cada um fica com a responsabilidade de um tempo suficiente de descanso. Os fiéis estarão atentos, com moderação e caridade, para evitar os excessos e violências originados às vezes nas diversões de massa. Não obstante as pressões de ordem económica, os poderes públicos preocupar-se-ão em assegurar aos cidadãos um tempo destinado ao repouso e ao culto divino. Os patrões têm obrigação análoga para com os seus empregados.
Penso não ser necessário lembrar a razão pela qual o cristianismo, embora reconhecendo que o dinamismo do repouso sabático se relaciona com a ordem divina e responde a uma necessidade do homem, transferiu o preceito da santificação do Dia do Senhor para o primeiro dia da semana. Com efeito, foi em primeiro dia da semana que o Senhor ressuscitou e que, depois, em dia homólogo irrompeu o Pentecostes – constituindo ambos os factos a nova e mais relevante criação (em obra e repouso).
***
Sendo assim, o sacerdote e a direção do Centro Social e Paroquial aludidos não podem ser penalizados pela questão do descanso semanal da funcionária, mas por outros eventuais motivos: se a trataram com equidade, se a ouviram, se o processo foi organizado de forma correta, etc. No entanto, não excluo a hipótese de tribunal superior vir a dar razão à funcionária por motivos do respeito pelo exercício de um direito. Já quando um tribunal superior, em tempos, deu razão a uma procuradora que recusou trabalhar ao sábado por motivos religiosos, eu me perguntava sobre o que sucederia se todos os católicos recusassem trabalhar ao domingo. É óbvio que os cristãos não teriam razão e os tribunais não podem confundir direitos pessoais com a dispensa de prover às necessidades públicas, sendo mais papistas que o Papa.
***
E que diz o Papa a este respeito?
Na audiência geral do passado dia 27 de abril, apresentou a sua reflexão sobre a parábola dita do bom samaritano (cf Lc 10,25-37). Um doutor da Lei, abeirando-se de Jesus para o experimentar, pergunta-lhe o que fazer para ter a vida eterna (v. 25). Jesus pede-lhe a ele a resposta. E o legista responde com os mandamentos: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu pensamento; e ao teu próximo como a ti mesmo (v. 27). E Jesus, anuindo, responde: “Faz isto e viverás!” (v. 28).
À pergunta do legista pergunta sobre quem seria o seu próximo, Jesus respondeu com a “parábola do homem que descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores. Prefiro chamar-lhe assim a chamar-lhe parábola do bom samaritano, já que também nos ensina, por antífrase, através do comportamento de outros. 
A parábola – diz o Papa – “põe em cena um sacerdote, um levita e um samaritano”, ou seja, dois homens “ligados ao culto do templo” e “um judeu hebreu cismático”, tido como “estrangeiro, pagão e impuro”.
O sacerdote e o levita deparam-se com um homem espancado, abandonado e moribundo, mas, apesar de a Lei prescrever a obrigação do socorro, deixaram-se levar pela pressa do serviço do Templo e pelo receio de se contaminarem com sangue impuro. Desviam-se, pois, e seguem por outra via. O Pontífice, pelos apartes que faz, mostra que hoje os comportamentos são parecidos em muitos casos, enuncia aqui logo um primeiro ensinamento:
“Não é automático que quantos frequentam a casa de Deus e conhecem a sua misericórdia saibam amar o próximo. Não é automático! Tu podes conhecer a Bíblia inteira, podes conhecer todas as rubricas litúrgicas, podes conhecer toda a teologia, mas do conhecer não nasce espontaneamente o amar: o amar segue outro caminho; é necessária a inteligência, mas também algo mais...”.
Sacerdote e levita não advertiram que não existe culto autêntico se não se traduzir em serviço ao próximo. Assim:
“Nunca podemos esquecer: ante o sofrimento de tantas pessoas extenuadas pela fome, pela violência e pelas injustiças, não podemos permanecer espectadores. Que significa ignorar o sofrimento do homem? Significa ignorar Deus! Se não me aproximo daquele homem, daquela mulher, daquela criança, daquele idoso ou daquela idosa que sofre, não me aproximo de Deus.”
Porém, o samaritano, isto é, o desprezado, que também tinha “os seus compromissos e afazeres”, “encheu-se de compaixão” (v. 33). O coração “estava sintonizado com o coração do próprio Deus”. E a “compaixão” (‘padecer com’) é “característica essencial da misericórdia de Deus”, que “padece ao nosso lado, sente os nossos próprios sofrimentos”.
Assim, “nos gestos e ações” do samaritano (e não nos do sacerdote ou do levita), “reconhecemos o agir misericordioso de Deus em toda a história da salvação”, pois, como diz o Papa:
“É a mesma compaixão com a qual o Senhor vem ao encontro de cada um de nós: Ele não nos ignora, conhece as nossas dores, sabe como temos necessidade de ajuda e de consolação. Aproxima-se de nós e nunca nos abandona”.
Com efeito, o samaritano comporta-se com verdadeira misericórdia: cura as feridas do homem, leva-o para a hospedaria, cuida pessoalmente dele e provê à sua assistência – o que “nos ensina que a compaixão, a caridade, não é um sentimento incerto”, mas implica “cuidar do outro até pagar pessoalmente por ele”, ou seja, “comprometer-se dando todos os passos necessários para se aproximar do outro até se identificar com ele: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Não basta pensar ou sentir quem é o meu próximo, mas é preciso que eu queira e saiba ser próximo de quem precisa.
A novidade da mensagem de Cristo em torno do preceito, “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, é justamente esta: tornar-se próximo do outro sem esperar que ele seja próximo nosso. Por isso, “Jesus inverte a questão do doutor da Lei” ao perguntar: “Qual destes três parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?” (v. 36). E o legista respondeu sem inequívoco: “Aquele que foi misericordioso para com ele” (v. 27). No início, “para o sacerdote e para o levita o próximo era o moribundo”; mas, “no final, o próximo é o samaritano que se fez próximo”. Por isso, o Pontífice comenta:
“Tu podes tornar-te próximo de quem quer que se encontre em necessidade, e sê-lo-ás se no teu coração sentires compaixão, ou seja, se tiveres a capacidade de padecer com o outro”.
Quando o legista perguntou quem seria o seu próximo, certamente esperava uma resposta que remetesse para os parentes, amigos, compatriotas ou correligionários. Ora Jesus, ao pregar o perdão a dar sempre a todos os que nos ofendem (Mt 18,21), ao mandar amar até os inimigos e rezar pelos que nos perseguem e caluniam (Mt 5,44), rejeita a ideia da enunciação de “uma regra clara” que nos “permita classificar os outros em próximos e não próximos, naqueles que podem tornar-se próximos e em quantos não podem tornar-se tais”. E, reparando que o doutor da Lei percebeu que tinha de ser ele a tornar-se próximo de quem precisa, despediu-o dizendo: “Vai, e também tu faz o mesmo!” (Lc 10, 37).
Por isso, no final da sua reflexão catequética, Bergoglio diz-nos que a “parábola é para todos nós uma dádiva maravilhosa, mas também um compromisso”, pois, “a cada um de nós, Jesus repete o que disse ao doutor da Lei”. Pelo que “somos todos chamados a percorrer o mesmo caminho do bom samaritano, que é a figura de Cristo”, o qual se debruçou “sobre nós”, se fez “nosso servo”, e assim “nos salvou, para que também nós pudéssemos amar-nos como Ele nos amou”.
***
Talvez o Evangelho e a reflexão catequética de Francisco forneçam os critérios de apreciação justa do caso do padre e da funcionária, a qual também parece ter problemas familiares.

2016.04.29 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Indicações de Aquilino sobre a Língua Portuguesa (I)

Além de cultor e burilador da língua portuguesa, Mestre Aquilino Ribeiro não deixa de formular oportunas indicações sobre o nosso idioma. Vasco Botelho do Amaral, em Estudos de Apoio ao Português (Almedina: 1976), regista pertinentes excertos da lição que Aquilino publicou no jornal O Século, de 25 de maio de 1949. Respigam-se as ideias consideradas mais relevantes.
Antes de mais, aborda-se a questão da corruptibilidade da língua. Os filólogos apontam-na e Botelho o Amaral batia-se contra ela com a competência e porfia de um Pedro Eremita.
Aquilino admite que não se corrompa no sentido tórpido da palavra “corrupção”, mas no do abastardamento perpetrado pela abundância de barbarismos e solecismos, graças à ignorância de muitos que fizeram da língua o seu ganha-pão. Na verdade, “escrever exige uma demora, uma disciplina que não se compadece com a lufa-lufa moderna e a restrita paciência que é contar hoje em dia para a obra pura do espírito”. Contra a mecanização generalizada, a arte das letras “é obra de técnica manual” similar do “obrar do marfim” ou do tear – “o tear de Penélope e das nossas avós” – o “daquelas belas teias de linho em que nascia, noivava, morria uma geração”, ficando ainda “pano para lavar e durar”. Por outro lado, o nosso idioma fica bastante desarmado face ao fenómeno de intercomunicação de idioma para idioma, sobretudo no atinente à terminologia científica e industrial (hoje acrescentar-se-ia a tecnologia e a linguagem económico-financeira). Refere o Mestre que o “automóvel, a rádio” (e a televisão, acrescente-se), a eletricidade e eletrónica “trouxeram um aluvião de vocábulos, que a nossa língua aceitou de boamente sem aproveitar de nenhuma espécie de reciprocidade nem os submeter a visto das academias”.
No entanto, não é de somenos importância salientar que também dentro do corpus linguístico, sem considerar aquele “joio”, “propagado por todos os ventos bravos da internacionalidade”, haverá muito que sanear”, sendo necessário impedir que “a imperícia do mau escriba e o pechisbeque do iconoclasta” conspurquem a língua portuguesa.
Depois, sustenta que “de todos os patrimónios comuns”, o da língua “é sem dúvida o mais lídimo e precioso”. E justifica:
“A língua não se perde. Essa resiste a todas as vicissitudes; é eterna tanto quanto de infinito pode caber nos nossos cálculos falíveis. Acabou a Hélade, feita de graça; ficou o grego. Acabou o império romano, que parecia amassado de bronze; ficou o latim. Com sobrada razão, a obra escrita de hoje oferece pela natureza dos materiais empregados e sua irradicação uma resistência maior aos estragos do tempo que o papiro ou as tabuletas em que os antigos nos legaram as maravilhas do seu pensamento. Deve partir-se do princípio, no entanto, de que hoje as nacionalidades não corram menos risco que no pretérito. Não esteve na iminência de soçobrar a Alemanha sábia e orgulhosa? Mas, supondo que era riscada do mapa e os seus habitantes dispersos pelo Mundo, perduraria o idioma de Schiler, de Goethe, de Kant, enquanto raiasse na terra a luz do entendimento.”.
E, salientando o papel identificador, testemunhal e documental da língua, declara:
Por isso, o idioma, que envolve a prova máxima de que se é gente, se teve personalidade, se desempenhou um papel no mundo, tem de ser cuidado, velado como as coisas mas sagradas e vitais, tanto como a água das fontes, a pureza do ar que respiramos, a segurança do teto que nos serve de domicílio”.
Porém, o escritor altibeirão arrisca mesmo uma definição da língua:
“A língua é a vestidura do pensamento, consoante a definição imediata. Mas trata-se de uma vestidura de espécie singular, que tem por objeto não esconder, mas antes revelar, tal uma musselina, o fantasma cuja nudez sem ela seria invisível. Para isso, é necessário que ela se modele sobre o pensamento, acusando seus refolhos e contornos, com exata medida e propriedade. Se é longa demais, abafa-o; se apertada, contrafá-lo; se os plissados são totós, desfeia-o. A vestidura tem de ser diáfana e fúlgida, e tecida – pois se trata de sons ou sinais – de palavras que não leve o vento.”.
Sendo assim, há que ter em conta a relevância da ciência da linguagem e da necessidade de, à sua luz, conhecer, descrever e utilizar a língua.
“Para quem conhece e pratica o código gramatical, que é mais que o enfaixe da múmia, a sinalização estabelecida não deixa errar caminho. Quando se escreve corretamente, por via de regra, pensa-se com justeza. Pelo menos, não se é tão suscitável de erro, quer se faça com mais ou menos profundidade.”. 
Por consequência, Aquilino entende que “por todas as razões devemos à língua em que estão vazadas as obras imortais de Camões, de Gil Vicente, de João de Barros, de Herculano, de Camilo e de Eça, a mais moderada vénia”.
***
Também não é despiciendo o entendimento que Aquilino Ribeiro mostra na peça prefacial ao Dicionário de Calão, de Albino Lapa (1959), pela reflexão que faz sobre a língua portuguesa.
Em primeiro lugar, reconhece não ter a competência necessária ao apadrinhamento do novel dicionário:
“Que pena eu tenho de não ser um escritor no género de Francis Carco só para me arvorar competente padroeiro do trabalho que me anuncia! Em verdade, sou um escritor circunspecto e pompier.”.
Acusa o tom dos críticos ao cultor das belas letras:
“Há quem jure que me tem visto de noite, vestido, como um alquimista, de balandrau preto, óculos pretos, e uma lupa de bom aumento, sobre os palimpsestos da língua, à procura de termos arrevesados, visigóticos, turdetanos, com que rechear os meus romances de tamancos e crossa de junco”.
E justifica-se:
“Ora quem anda por estas paragens alpestres do idioma ignora por força o vocábulo vitil, conciso, trocista, de emprego restrito, que se acoitou sob a capa do tuno e a esclavina de bandoleiro, e os lexicógrafos remetem, se lhes vem ao gadanho, ao cemitério da língua. Pois é ao conjunto desses termos, tidos por espúrios, bastardos e adulterinos, que chamam gíria, nome que soa a detestável galdéria.”.
Reconhece não ter capacidade neste âmbito do calão ou da gíria, a não ser naquele sentido em que até se acha graça ao que é agramatical e imoral:
“Que pena, repito, eu tenho de ser um leigo em tal léxico para agora aqui ter voz ativa e circunstanciada! Em todo o caso, eu lhe digo francamente, nada me extasia mais que uma dessas frases irreverentes condenadas pela gramática, se não pela moral, em nome dos bons costumes. Uma dessas frases que estalam e repicam como os chicotes antigos para caleças puxadas a seis cavalos, que golpeavam o ar, e curveteando em espiral de dois centros, despediam um estalido sonoro que uma nota de Caruso!”.
Depois, expõe a sua ótica sobre a origem do calão enquanto forma de defesa e protesto:
“O calão, a meu ver, começou por ser uma linguagem de defesa do fraco contra o poderoso, do preso contra o carcereiro e algoz, do conspirador contra o juiz e o tirano. Que procurasse tornar-se criptográfica o mais possível, é lógico. Que acabasse por tornar-se parasita, está também na derivação das coisas humanas.”.
Assinala a limitação natural da língua portuguesa para a prolixidade verbal, embora com vantagem, fazendo notar o género de trabalho dos escritores portugueses:
“A nossa língua, porém, não chegou à fase de maturidade léxica para que medre em si semelhante superfetação à maneira dos cogumelos gigantescos, chamados vacas, que crescem no toro dos velhos castanheiros. Tal luxo é para o inglês, o francês, em que o pensamento, desde o mais imediato ao mais subtil, encontra fácil e cansada expressão. Nós, os escritores portugueses, estamos a escrever e a fazer a língua, como um amassador de pão a tender a massa para a fornada. O idioma escrito que herdámos não podia ser mais retórico e chorão, talhado para pregadores, poetas e escrivães da louvaminha.”
Por isso, ressalta o papel dos escritores que Aquilino denomina de naturalistas e entre os quais ele se conta:
“Da fala popular, a boa, a viva, quem se importava com ela? Nós, pobres obreiros naturalistas, andamos a recensear esta e dar volta àquela, de forma a arranjarmos uma língua apta, como um razoável clavicórdio, a interpretar as desvairadas árias da vida. Repare como é avessa a exprimir o subjetivo, o metafísico, o matemático! Por isso, a mim, que sou um cabouqueiro da língua, que me aproveito de todos os materiais, inclusive das palavras perdidas ou desdenhadas dos puristas, graças às quais o estilo alcança caráter se não originalidade, palavras essas semelhantes às pedras que os alvenéis chamam rebos, porventura rebus, de res no ablativo, caso que poderíamos classificar de pau para toda a colher dada a sua amplitude morfológica, me acoimam de calcetar o discurso com palavras raras.”.
No entanto, confessa que teve familiaridade pessoal com o ambiente em que ressalta o calão:
“Todavia, eu as ouvi, que não li nos cartapácios. E sempre que uma dessas palavras vivas, que não andam pelos cafés de Lisboa e significam movimento, ação, emoção particular, embora confinadas às portelas provinciais, aparece na minha prosa, com certeza que não representa valo que se não salte sem socorro do dicionário.”.
Depois, dá algumas indicações sobre o calão e como entrou na comunidade linguística:
“Mas onde eu vou?! O calão será pois tudo aquilo. Linguagem secreta, arbitrária e parasita. Completamente parasita, não, pois que atende a uma necessidade. Mas tenha-se como irmã enjeitada da saborosa linguagem popular que os senhores filólogos, tal aquele bom Silvestre Silvério, deixam à porta, por chula, indecente e má figura. Todavia, sem alvará destes argos, contra o respeito devido aos manes dos Vieiras e Castilhos, ela vai entrando, posto que à capucha. Entra como o João da Rua a dar o seu recado ao João de Espera em Deus. E vai anotando o que se passa na roda dos golfos, a quem servem, desde que o mundo é mundo, rasos filantes e toda a espécie de guitas. No tempo em que havia cordanta, muitos mecos que a falavam acabariam a espernear.”.
E acredita que Albino Lapa, como Aquilino e qualquer pessoa que pertença ao povo, sabe do calão, ao menos por ouvido, pelo que o calão terá o seu lugar de direito na língua:
“Adiante, Jorge Ferreira de Vasconcelos é mais denso que isto. O Garoto de Lisboa vem tauxiado desta vidraria policrómica. Ouvia-a nos meus tempos de rapaz nos tascos de camareiras ao Poço de Almas. Decerto, você, Albino Lapa, percorreu estas e melhores tavolagens; enfronhou-se por outros becos; adiantou o pé até as alfurjas do Alfama antes de saneadas pelos higienistas do folclore a cal e água de cheiro. Faço votos para que alcance carta foral para o calão.”.
Inscreve a formação do calão no quadro da multiplicidade dos processos de formação da língua:
“A língua formou-se de mil maneiras, havendo-se destilado em alambiques de vária ordem. Quem diria que ‘suis pes’ resultava em chispe, lux quae fugit’ em lusco-fusco, ‘callis angusta em cangosta’? Como acertou a dar-se o termo ‘papo-seco’ aos pães pequeninos do almoço, feitos de pretensa farinha-flor? E ‘girinho’ a qualquer traste bonito e agradável? E que dizer do ‘trafulha’ aplicado como denominador comum, universal, ao bicho que culmina e abarrota a praça neste ano de graça? Todos os caminhos vão dar a Roma, como todas as palavras e expressões confluem à boa economia do idioma desde que representem uma modalidade nova, aceno imprevisto de psique, reflexo inédito do espírito, cada vez mais fosfórico e exigente.”.
Finalmente, o incentivo e a expressão da função enditante do calão, mesmo que os glossaristas não achem bem:
“Estou convencido de que o seu trabalho contribuirá para enriquecimento da locução, quer em artigo de vozes realistas, quer em falhas do vocabulário e em colorido, por isso toco o meu rouxinol como um sinaleiro ao ver-lhe adiantar o calcante: Senhores glossaristas, alto aí! Passe lá vossemecê!”.
E os dicionaristas lá vão dicionarizando palavras que dantes eram proscritas da linguagem dita das pessoas decentes…

2016.04.28 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Eduardo Catroga prefere a descida do IVA na EDP

Segundo o que refere Fábio Monteiro, jornalista do Expresso na edição on line de hoje, dia 27 de abril, Eduardo Catroga disse, em entrevista à Rádio Renascença, que as famílias portuguesas pagam uma das energias mais caras da Europa em razão da elevada carga fiscal, mas assegura não estar disponível para ceder no défice tarifário e recusa pagar a tarifa social.

Está visto, para o chairman da EDP – que se entende à letra como Eletricidade de Portugal, mas agora da China – para o qual foi um enorme sucesso a entrega deste estratégico fragmento de Portugal aos chineses de regime de partido único (Catroga é liberal com a pele de socialdemocrata!), a culpa do elevado preço das tarifas impostas aos clientes é exclusivamente do Governo.

E, se dúvidas havia, hoje chegou a sua dissipação. Os administradores receberam um notável aumento de vencimento fixo e outros beneficiaram também dum aumento nas remunerações variáveis, os preços ao cliente têm subido como convém, os serviços não acusaram melhoria significativa e a empresa não aumentou o número de postos de trabalho nem o know how. No entanto, tem anexa à atividade económica a vertente social plasmada numa fundação através da qual exibe o seu rosto solidário. E Catroga resolveu colocar os pontos nos is: a EDP não renuncia aos intentos económicos, o Governo é que deve baixar o IVA da eletricidade, o que, nos termos discursivos do português achinesado, é preferível ao da sua baixa na restauração.

Já na sessão da assembleia geral de acionistas, no passado dia 19 de abril, Eduardo Catroga, presidente Conselho Geral e de Supervisão da EDP, sugeriu que a solução para a tarifa social poderia passar pela redução do IVA, apontando que a taxa de 23% cobrada na eletricidade em Portugal é superior à média europeia, que é de 16%.
Por seu turno, António Mexia, presidente executivo da EDP, tem vindo a criticar as mexidas previstas para a tarifa social energética. Embora diga concordar com a sua existência, sustenta ambiguamente que a “política social se faz através dos impostos ou dentro dos preços dos bens que estão em causa”. Sendo assim, do meu ponto de vista, deveria tanto o Governo (pela amenização tributária) como as empresas (pela consecução do peço justo dos bens e serviços) fazer cada qual a sua parte para desagravar a vida dos clientes de bens essenciais.
Mas não. Catroga, dada a sua experiência política não partidária (!), pretende orientar o Governo sentenciando:
“Era, talvez, preferível reduzir o IVA na eletricidade ‘a’ [e não “do que”] reduzir o IVA nos restaurantes. São opções políticas. A redução do IVA na eletricidade beneficia todas as famílias portuguesas. A redução do IVA na restauração beneficia, essencialmente, os donos dos restaurantes em certos segmentos”.
Mais: o economista ora feito politólogo, provavelmente em Pequim, ambiciona catequizar os partidos e o Parlamento – quiçá também o Presidente da República – ao decretar que seria bom que o Bloco de Esquerda subisse ao lugar de quarto partido do arco da governação. É de questionar porque não o terceiro, o segundo ou até o primeiro lugar. Porém, o ideólogo é comedido no seu raciocínio de ciência política, tornado desígnio nacional:
“Tenho esperança [de] que, pelo menos, o Bloco de Esquerda seja cada vez mais um partido do arco do poder e se venha a transformar num ‘Syriza 2’ ou ‘Syriza 3’ (...) Isto seria muito bom para Portugal, não ter apenas os três partidos tradicionais do arco do poder, mas ter mais um partido com uma visão mais de esquerda, mas que compreendesse as exigências da globalização”.
Vamos lá, Catarina Martins e companheiros, matriculai-vos na escola para compreenderdes as exigências da globalização! Fazei-lhe a vontade, dai o gostinho ao liberal socialdemocrata.

***

A 20 de abril, ou seja, um dia depois da susodita sessão da assembleia geral da EDP, o Primeiro-Ministro esteve, a convite de Eduardo Catroga, na Fundação EDP, onde destacou a índole solidária do grupo através da Fundação e agradeceu à entidade empresarial energética por ter de suportar os encargos com a tarifa social de energia, declarando:
“Sei que cumprir a lei é um dever, mas também sei que há normas e deveres que são impostos e que é justo que sejam acompanhados do devido agradecimento. A tarifa social merece o nosso reconhecimento pelo esforço que isso implica para as empresas, particularmente para a EDP.”.
Esta declaração de António Costa revela que o Governo não está para desistir na negociação do défice tarifário, sendo que a EDP não estará na disponibilidade de ceder, tendo até já pedido uma reunião para discutir com o Primeiro-Ministro o fim da taxa extraordinária.
Por isso é que não se tinha percebido a razão do convite de Catroga para visitar a Fundação EDP a presidir a uma cerimónia de solidariedade e muito menos aquela atitude de melga em torno de Costa para pessoalmente lhe fazer o convite a uma conversa com os acionistas da companhia energética. Foram bem percebidas em televisão as suas palavras:Os acionistas da EDP precisam de conversar consigo”.
António Costa, mostrando-se esquivo e sorridente, limitou-se a anuir com um “muito bem, muito bem”.

No entanto, mais estranha foi a inesperada disponibilidade para intermediador que o anfitrião convidante manifestou insistente e esclarecedoramente ao ilustre convidado, a quem tratou por você (O “Vossa Excelência” perdeu-se provavelmente no mar da China!):

“Se você precisar de mim para eu dar aí alguns entendimentos, eu disponho-me a isso. Porque eu tenho essa visão da política que não é partidária”.
Evidentemente que o chairman da EDP, aliás como qualquer empresário que se preze, obviamente que se confessa rigorosamente apartidário. Contudo, o Catroga que se tornou conhecido – o que foi Ministro das Finanças de um Governo de Cavaco Silva e o que ajudou na elaboração do Memorando de Entendimento que serviu de instrumento à intervenção externa – é homem de partido. E foi em nome do seu partido que se arrogou clamar que o memorando era bom para o país, porque saiu da sua pena, e foi alinhado com o PSD que, mais tarde, veio a dizer cobras e lagartos do memorando que ajudou a cozinhar a bem da nação, que alegadamente estava à beira da bancarrota.
Fez, por isso, bem o Primeiro-Ministro em voltar a retorquir à conversa com o simples “Muito bem. Sim senhor”. Ademais, o partido de Catroga, do pretenso intermediador (que pelos vistos agora não tem partido, a não ser o da reforma e do dinheiro pelos cargos que exerce), entende, com muita gente, que qualquer negociador com privados em nome do Estado deve pertencer à hierarquia do Estado ou, pelo menos, ter celebrado um qualquer contrato com o Estado – tudo isto em nome da transparência, arvorada em valor absoluto da democracia, quando a economia reclama a prioridade da eficácia. Não é assim, senhores detratores de António Costa e de Diogo Lacerda Machado?
Parece que não sabem das eminências pardas que sempre intervieram nas grandes decisões dos Estados, sem pertencerem às respetivas hierarquias. Quem isto escreve e diz sabe do que fala… E Pacheco Pereira tem razão, embora possa ter sido infeliz nos exemplos que selecionou para justificar as suas declarações sobre a matéria.
***

Mas o chairman da EDP sabia muito bem o que queria quando convidou o Primeiro-Ministro. Uma das razões era efetivamente a real problemática atinente à tarifa social na energia (provavelmente não apenas no setor elétrico: aliás a EDP não trabalha apenas com a eletricidade) que o Governo pretende alargar para um milhão de famílias; e outra era a CESE (Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético), taxa na energia, que custou, em 2015, o montante de 62 milhões de euros à EDP e que o executivo manteve para este ano.

Ora, segundo as contas da ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos), se a tarifa social chegasse aos 500 mil beneficiários este ano, os descontos teriam um custo total de 32 milhões de euros, isto segundo o atual modelo. Porém, como o Governo pretende agora levar a tarifa social a um milhão de beneficiários, o aumento da fatura das eléctricas fará elevá-la para os 100 milhões de euros.
Catroga, interpretando o sentimento dos acionistas da EDP, não quer nem o alargamento da tarifa social na energia nem a Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético. Mas, mesmo assim, quer manter o rosto solidário da companhia. Com que fins? Dar credibilidade social à entidade ora totalmente privada, mas sob o patrocínio e tutela de um Estado estrangeiro proprietário direto ou indireto dos principais meios de produção e distribuição? Reconhecer na prática a função social da propriedade privada? Pedir a Deus que dê pobres ao país para a EDP ter oportunidade de exercer a “caridade”? Aliviar a companhia do excessivo peso da oneração fiscal através da manutenção de uma entidade privada de utilidade pública?
Entretanto, como o Estado não deve interferir na esfera privada, mas os privados podem interferir na esfera do Estado, provavelmente em nome da cidadania, Catroga usa o seu estatuto de administrador não executivo para orientar a ação do Estado: reduzir a carga fiscal da eletricidade, beneficio que beneficiará toda a gente, em vez da redução na restauração, que só beneficia alguns. Tudo bem, caro economista ora apartidário, mas não como moeda de troca para renunciar à CESE ou à tarifa social energética. Aliás, cabe ao Estado intervir quando as goelas dos privados se abrem em demasia sobre os clientes de bens essenciais.

2016.04.27 – Louro de Carvalho