terça-feira, 5 de abril de 2016

O pluralismo de interesses concentrado na fuga à responsabilidade

A Comunicação social deu, há dias, conta do escândalo conhecido por os “Papéis do Panamá”, que, até ao momento, constituem a maior fuga de informação de sempre (2,6 terabytes de informação, contra os 1,7 gigabytes do Wikileaks).
Veio ao de cima, com esta megainformação, a teia da fuga de capitais operada pelos grandes espertos do mundo, muitos dos quais foram eleitos para conduzir os destinos do respetivo povo. Muitos outros sentiam-se e eram tidos como que fadados para enriquecer as economias dos seus países, dado o espírito empreendedor que lhes era reconhecido e a capacidade de obter lucros a partir da organização empresarial e da mobilização do trabalho dos outros.
Entretanto, enquanto os detentores de cargos públicos exigem sacrifícios enormes aos concidadãos em nome da crise, os seus dinheiros, que poderiam recuperar a sanidade financeira dos seus Estados, ajudando o crescimento da economia respetiva, pela via fiscal, é subtraído ao controlo nacional e vai repousar nos denominados paraísos fiscais de forma encriptada. A finalidade destas operações não é propriamente a perceção de juro alto a compensar o depósito e a permanência dos capitais, mas a subtração ao fisco nos países de origem e o branqueamento de dinheiro – por via da não obrigação de informação da parte da instituição financeira, o detentor efetivo dos depósitos.
De modo semelhante se comportam os empresários que obtiveram a riqueza ou pela via dos negócios escuros ou à custa da exploração dos demais – quem sabe se até depois da falência técnica da empresa ou empresas a que deram corpo. E que dizer das empresas de fachada criadas apenas para a arrecadação sinuosa de capital?
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Os “Papéis do Panamá” referem mais de 11 milhões e meio de ficheiros retirados dos registos da 4.ª maior sociedade de advogados do mundo no domínio dos offshores – a Mossack Fonseca. Tais ficheiros foram confiados por fonte anónima ao diário alemão Süddeutsche Zeitung, que partilhou o furo com a ICIJ (The International Consortium of Investigative Journalists).
Os ficheiros documentam o facto e o modo como os poderosos e ricos do mundo inteiro utilizam os paraísos fiscais para ocultarem as suas fortunas, enquanto acusam os outros cidadãos, os outros grupos económicos e os Estados de viverem acima das suas possibilidades. Aumenta o desemprego e a precariedade no trabalho, baixam assustadoramente os salários e as pensões, ruem as economias, declaram falência as empresas, emagrecem os Estados. E, ao mesmo tempo, os poucos muito ricos aumentam escandalosamente o seu rico património, que escondem cobardemente até que o escândalo rebente. Como é óbvio, a maior parte dos criminosos neste campo ficarão impunes!    
A lista de nomes dos implicados, direta ou indiretamente, é enorme, incluindo 143 políticos, 72 dos quais são líderes nos seus países.
Um dos nomes mais sonantes da lista de governantes é Vladimir Putin, presidente russo, e o ora rival Petro Porosshenko, presidente da Ucrânia. Constam também dela os primeiros-ministros do Paquistão e da Islândia, respetivamente Nawaz Shariff e Sigmundur Gunnlaugsson. Do desporto surgem Leonel Messi e vários dirigentes da FIFA.  
Também foi apanhada no turbilhão Pilar de Bourbón, tia do rei de Espanha, a qual estava à testa da empresa Delantera Finaciera SA, com sede no Panamá, extinta cinco dias depois de Felipe VI ter sido aclamado rei de Espanha, em 2014.
Ademais, os documentos referem que há situações de offshore em que a motivação foi o escondimento de capitais em casos de divórcios litigiosos e multimilionários.
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Em conformidade com os dados publicados pelo jornal britânico The Guardian, a Mossack Fonseca parece ter ligações, embora não diretas, a mais de 200 mil empresas registadas em paraísos fiscais, sendo que as Ilhas Virgens Britânicas vêm sendo o local mais adequado para a criação das contas bancárias destas entidades (mais de 100 mil empresas). E vêm a seguir o Panamá, as Seychelles e as Bahamas.
A mesma firma, que está no centro deste escândalo financeiro, terá criado 244 empresas offshore para, pelo menos, 34 clientes portugueses, ou melhor, que têm domicílio fiscal em Portugal.
Ora, se a mencionada firma de advocacia não lida diretamente com os proprietários das empresas, as operações são geridas através de uma rede de intermediários, que incluem contabilistas, bancos, fundos de investimento e outras firmas de advocacia, que lhe transmitem as instruções dos seus clientes. A maioria desses intermediários é da Suíça ou de Hong Kong, vindo depois os do Panamá, do Reino Unido, de Jersey, do Reino Unido e do Luxemburgo.
A propósito do Luxemburgo, quem não se lembra do histórico relacionado com o atual Presidente da Comissão Europeia quando era o primeiro-ministro do Grão Ducado?
Os principais beneficiários das referidas operações, isto é, os proprietários ocultos dos bens, são sobretudo asiáticos. De acordo com uma amostra de 13 mil nomes, o acima referido jornal britânico situa em primeiro lugar a China continental, seguida de Hong Kong. Quanto à Europa, os primeiros lugares são atribuídos a russos, britânicos e suíços.
De momento, é difícil estimar quanto dinheiro passou por este circuito de transações. No entanto, só em reação a Putin têm sido referidas verbas próximas dos mil milhões de euros. E, no caso dos portugueses, há 69 mil milhões de euros em paraísos fiscais, sendo que 36 mil milhões estão na Suíça.
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É certo que nem todos os que recorreram aos “paraísos fiscais” terão cometido ilegalidades, se tivermos em linha de conta a legislação dos seus países de origem. Alguns dos visados já vieram a terreiro jurar a sua inocência e até ameaçar proceder judicialmente contra quem os implicou no escândalo.
Porém, a investigação já originou crises políticas, em alguns países, e a promessa de processos judiciais, noutros. O primeiro-ministro islandês, que terá criado, juntamente com a mulher, uma sociedade nas Ilhas Virgens britânicas para ocultar largos milhões de dólares, enfrenta uma manifestação em Reiquejavique e uma moção de censura parlamentar. E, tendo solicitado ao Presidente a dissolução do Parlamento com a subsequente marcação de eleições, ainda tal decisão não foi tomada
Familiares do líder do governo paquistanês, também associados ao caso, garantiram não ter incorrido em nenhuma ilegalidade, ao colocarem os bens em empresas offshore.
O presidente francês sustentou que os “Papéis do Panamá” resultarão, em França, em inquéritos fiscais e processos judiciários e agradeceu as novas receitas fiscais que estas revelações vão trazer ao erário francês.
Em Portugal, de acordo com um comunicado do Ministério das Finanças, a Autoridade Tributária está “a acompanhar as informações divulgadas por forma a melhor proceder à deteção dessas práticas relativamente a impostos devidos em Portugal”. Como se sabe, segundo o nosso Código do IRS, os cidadãos têm de declarar e pagar imposto quer pelos rendimentos auferidos em Portugal quer pelos auferidos no estrangeiro, pelo que, para os portugueses a situação é irregular configurando, pelo menos, o crime de fraude fiscal.
O governo panamiano, do seu lado, garantiu que vai “cooperar vigorosamente” com a justiça em caso de abertura de processo judiciário.
Por seu turno, a firma de advogados Mossack Fonseca entende que a publicação dos documentos é “um crime e um ataque” contra o Panamá.
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O facto de a publicação de documentos sigilosos ser um crime não invalida a existência escandalosa de crime – a punir severamente – quando a legislação dos países de origem tipifica esta fuga de capitais como evasão fiscal e branqueamento de dinheiros.
Mas, ainda que não haja crime, tal comportamento é imoral dado que materialmente implica depauperamento do erário público dos diversos Estados e, a nível do caráter, revela cobardia, pusilanimidade e falta de respeito para com os pobres. E não há nenhuma ausência ou insuficiência de ética republicana ou monárquica que justifique esta postura.
E não será coisa estranha que gente de tantos e tão diversos setores de atividade, com tão diversos interesses políticos e desígnios empresariais e sociais – ou mesmo rivais – se irmanem em comportamentos similares?
Se o Presidente que jurou defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição e querendo inovar como parece querer, bem poderia alargar o direito de resistência (vd art.º 21.º) a este atropelo aos direitos dos cidadãos, esbulhados nos seus rendimentos pela via dos impostos, contribuições e taxas, já que os poderes públicos nacionais, europeus e mundiais nada vão fazer de significativo, por falta de vontade política, para inverter a situação. Os pobres e a classe média continuarão a ser explorados.
Cavaco Silva, em 9 de março de 2011, apelou ao sobressalto democrático. Porque não apelar agora ao sobressalto constitucional?    

2016.04.05 – Louro de Carvalho

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