domingo, 24 de abril de 2016

O mandamento novo como marca dos cristãos

A perícopa do Evangelho de São João que se proclama no V domingo da Páscoa do Ano C (Jo 13,31-33a.34-35) alia à revelação da glória do Filho do Homem – em que se espelha a glorificação de Deus (cf v. 32) – o mandamento novo do amor: “Dou-vos um mandamento novo – que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei” (v. 34).
E Jesus declara que a observância deste mandamento é a marca distintiva dos discípulos de Cristo: “Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos – se vos amardes uns aos outros” (v. 35).
 Mais: o mandamento surge como legado testamentário enunciado antes de Jesus Se entregar à morte (“depois de Judas Iscariotes ter saído” do Cenáculo, v. 31) e em ambiente de ternura familiar (“Filhinhos, já pouco tempo vou estar convosco”, v.33).
Ora, a lei do amor fraterno não é propriamente uma novidade neotestamentária. Já o antigo Testamento a estabelecia: “Não odiarás o teu próximo no teu coração” (Lv 19,17); e “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18). E é lei retomada no Novo Testamento com toda a força e lucidez por ou perante Jesus a par com o amor a Deus (cf Mt 22,39; Mc 12,31.33; Lc 10,27).
A novidade deste mandamento consiste em três aspetos essenciais: a maneira da enunciação, o ambiente e a medida do amor. No atinente à maneira da enunciação, Jesus diz, “Dou-vos um mandamento novo”, ou seja, fá-lo por autoridade própria e não como simples intermediário, tal como o fora Moisés. Quanto ao ambiente, não se trata de um decreto promulgado por pregão na rua ou publicação ex catedra, mas em ambiente de ternura familiar (replicado no cap. 15), o que envolve um compromisso de discípulo para mestre, de filho para pai, de amigo para amigo (“vós sereis meus amigos se fizerdes o que Eu vos mando” – 15,14). Em termos da medida, se dantes a medida era como a nós mesmos, doravante, passa a ser o modo como Cristo amou – até à morte se for preciso: “Ninguém tem mais amor do que Aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13); e, “Eu ofereço a minha vida pelas minhas ovelhas” (Jo 10,15). 
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Assim, hoje, dia 24 de abril, o Papa Francisco, na celebração da Eucaristia de encerramento do jubileu dos adolescentes, interpelou-os à luz desta perícopa do Evangelho em que o Senhor nos confia “grande responsabilidade”. Na verdade, este Evangelho de São João “diz-nos que as pessoas reconhecerão os discípulos de Jesus pelo modo como se amam entre si”. Ou seja, o bilhete de identidade do cristão é o amor. O amor “é o único documento válido para sermos reconhecidos como discípulos de Jesus”. Será o nosso único cartão de cidadania cristã.
Por isso, Francisco adverte e desafia:
“Se este documento perde a validade e não se volta a renová-lo, deixamos de ser testemunhas do Mestre. Por isso vos pergunto: Quereis acolher o convite de Jesus para ser seus discípulos? Quereis ser seus amigos fiéis?”
Depois, especifica e define o rumo:
“O verdadeiro amigo de Jesus distingue-se essencialmente pelo amor concreto; não um amor nas nuvens, não; o amor concreto que brilha na sua vida. O amor é sempre concreto. Quem não é concreto e fala de amor, faz uma telenovela, um romance televisivo. […] Procuremos então frequentar a sua escola, que é uma escola de vida, para aprender a amar. E este é um trabalho de todos os dias: aprender a amar”.
E, sendo belo este caminho “para sermos felizes”, não é fácil: “é exigente, requer esforço”. Todavia, confere a alegria de quem recebe porque alguém dá com alegria. E diz o Papa: 
“Esta é a dimensão concreta do amor. De facto, amar quer dizer dar... e não só coisas materiais, mas algo de nós mesmos: o próprio tempo, a própria amizade, as próprias capacidades”.
E aponta o exemplo do Senhor, que “é imbatível em generosidade”:
“D’ Ele recebemos tantos dons, e todos os dias deveremos agradecer-Lhe... Gostava de vos perguntar: Agradeceis ao Senhor todos os dias? Mesmo que nos esqueçamos, Ele não Se esquece de nos oferecer cada dia um dom especial; não se trata de um presente que se possa ter materialmente nas mãos e usar, mas de um dom maior, um dom para a vida.”
E que oferta amorosa nos faz o Senhor?
- “Uma amizade fiel, dom de que nunca nos privará”, pois Ele “é o amigo para sempre”.
- A continuidade em contar connosco, mesmo se O dececionarmos, e a permanecer junto de nós.
- O lúcido ensinamento da beleza do afeto e da ternura, colocando no coração o “intuito bom” de “querer bem sem me apoderar, amar as pessoas sem querer possuí-las, mas deixando-as livres”, porque “o amor é livre”.
- A constante revelação do segredo da ternura: “cuidar da outra pessoa, o que significa respeitá-la, protegê-la e esperar por ela”.
- A genuína liberdade de saber dizer “não” e de saber dizer “sim”, ou seja, de renunciar àquilo que apetece se for pecaminoso e aderir àquilo que se quer porque é bom.
- A coragem do esforço e do risco por aquilo que vale a pena.
- O não contentamento com a mediocridade, “com deixar correr ficando cómodos e sentados”.
- A tomada de consciência “da verdadeira riqueza que sois vós” e de que “a felicidade não tem preço, nem se comercializa”, não sendo “uma ‘app’ que se descarrega do telemóvel, nem a versão mais atualizada” que vos poderá ajudar a tornar-vos livres e grandes no amor.
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Assim e segundo as palavras do Papa, o amor tem como caraterísticas peculiares: é o “dom livre de quem tem o coração aberto”; é “uma responsabilidade, mas uma responsabilidade maravilhosa, que dura toda a vida”; é o compromisso diário de quem sabe realizar grandes sonhos”.
E o Pontífice ensina que o amor se nutre de “confiança, respeito, perdão”; não se realiza só “falando dele, mas quando o vivemos”; não é “uma poesia suave que se aprende de cor, mas uma opção de vida a pôr em prática”.
Mais: revela o segredo do crescimento no amor. Contemplando Jesus que Se nos dá “na Missa” e nos oferece “o perdão e a paz na Confissão”, aí aprendemos “a acolher o seu Amor, a assumi-lo, a repô-lo em circulação no mundo”. Além disso, importa erguer “os olhos para a cruz de Jesus”, abraçá-la e não largar a mão de Jesus que nos “conduz para o alto” e nos “levanta” quando caímos.
Ora, se na vida, “sempre se cai, porque somos pecadores, somos fracos”, também é certo que “temos a mão de Jesus que nos ergue, que nos levanta”, uma vez que Deus nos criou “para estarmos de pé”. Por isso, é necessária “a coragem de levantar-se, de nos deixarmos reerguer pela mão de Jesus” – mão que, “muitas vezes, chega até nós pela mão de um amigo, pela mão dos pais, pela mão daqueles que nos acompanham na vida”.
Sendo “capazes de gestos de grande amizade e bondade”, os adolescentes e jovens são hoje chamados “a construir o futuro” juntamente “com os outros e para os outros” e nunca “contra outro qualquer”. Para tanto, é precisa desde já a preparação, “vivendo plenamente esta vossa idade tão rica de dons, e sem ter medo do esforço”.
E Francisco inspira-se nas palavras de São Paulo, que diz, “combati o bom combate” (2Tm 4,7) e:
“Os atletas impõem a si mesmos toda a espécie de privações: eles, para ganhar uma coroa corrutível; nós, porém, para ganhar uma coroa incorrutível. Assim, também eu corro, mas não às cegas; dou golpes, mas não no ar.” (1Cor 9,25-26).
Nesses termos, o Bispo de Roma recomenda, para que a nossa alegria seja completa (cf Jo 15,11):
“Fazei como os campeões desportivos, que alcançam altas metas treinando-se, humilde e duramente, todos os dias. O vosso programa diário sejam as obras de misericórdia: treinai-vos com entusiasmo nelas, para vos tornardes campeões de vida, campeões de amor! Assim sereis reconhecidos como discípulos de Jesus.”
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E, para que as obras de misericórdia, concretizadoras do novo mandamento – no ataque aos problemas, na debelação das causas e na criação de autonomias de vida, assentes em estruturas comunitárias sólidas – se tornem programa diário das pessoas, é preciso lançar mão de gestos significativos. E o Ano da Misericórdia é propício para a descoberta e reforço destes gestos.
Ora, Francisco não tem sido parco nesta ordem de ação: desde a visita a Lampedusa, passando pelo acolhimento de refugiados nas duas paróquias do Vaticano e pelo apoio aos sem-abrigo, à aceitação de três famílias muçulmanas sírias trazidas de Lesbos. Porém, importa salientar outro gesto de solidariedade não em relação propriamente ou só a refugiados, mas a populações que sofrem na sua terra os desmandos do conflito político e armado.
Com efeito, o Papa, no Dia da Divina Misericórdia, lançou o apelo a que se fizesse em todas as Igrejas Católicas da Europa uma coleta em favor da população da Ucrânia, a dia 24 de abril, num rasgo semelhante ao do tempo de São Paulo em prol da Igreja de Jerusalém, justificando:
“Penso, em particular, aqui na Europa, no drama de quem sofre as consequências da violência na Ucrânia: de quantos permanecem em terras assoladas pelas hostilidades que já causaram vários milhares de mortos, e de quantos — mais de um milhão — foram obrigados a deixá-las devido à grave situação que perdura. Ficam envolvidos sobretudo idosos e crianças.
E, a 22 de abril, reforçou o apelo recordando que “a população da Ucrânia sofre desde há tempos devido às consequências de um conflito armado, esquecido por muitos” e agradeceu, desde logo,aos que vão contribuir generosamente nesta iniciativa”. Depois, saudou um grupo de sobreviventes da catástrofe da Central nuclear de Chernobil, vindos da  Ucrânia e da Bielorrússia, os dois países mais atingidos pela tragédia de 26 de abril de 1986.
A este respeito, o padre Ivan Hudz, coordenador da Capelania Nacional dos Imigrantes Ucranianos de Rito Bizantino – considerando que a nossa Conferência Episcopal solicitou a todas as comunidades cristãs e à sociedade em geral apoio aos habitantes da Ucrânia residentes nos dois lados de zona de guerra, em declarações à agência Ecclesia – destacou o acolhimento dado a este gesto papal, acolhimento que mostra que os católicos portugueses e a Igreja em geral “não esquecem os seus irmãos”. E referiu:
“O apoio material faz muita falta, mas tenho a certeza que este gesto fará também com que o povo ucraniano não se sinta só no meio desta guerra, e saiba que na Europa ainda existem pessoas, cristãos verdadeiros, que não estão fechados ao sofrimento e às necessidades dos outros”.
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De facto, o mandamento não se cumpre de braços cruzados e de coração fechado, mas de forma afetiva e efetiva, de coração grande e aberto. É por isso que São João nos adverte:
“Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo,3,18).

2016.04.24 – Louro de Carvalho

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