A perícopa do Evangelho de São João que se proclama no V domingo da
Páscoa do Ano C (Jo 13,31-33a.34-35) alia à revelação da glória
do Filho do Homem – em que se espelha a glorificação de Deus (cf v. 32) – o mandamento novo do amor: “Dou-vos
um mandamento novo – que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei” (v. 34).
E Jesus declara que a observância deste mandamento é a marca distintiva
dos discípulos de Cristo: “Por isto é que
todos conhecerão que sois meus discípulos – se vos amardes uns aos outros”
(v. 35).
Mais: o mandamento surge como
legado testamentário enunciado antes de Jesus Se entregar à morte (“depois de Judas Iscariotes ter saído” do Cenáculo, v. 31) e em ambiente de ternura
familiar (“Filhinhos, já pouco tempo vou estar convosco”,
v.33).
Ora, a lei do amor fraterno não é propriamente uma novidade
neotestamentária. Já o antigo Testamento a estabelecia: “Não odiarás o teu próximo no teu coração” (Lv 19,17); e “Amarás o teu próximo como a
ti mesmo” (Lv 19,18). E é lei retomada no Novo Testamento com toda a força e lucidez por ou perante Jesus a par com o amor a Deus (cf Mt 22,39; Mc 12,31.33; Lc 10,27).
A novidade deste mandamento consiste em três aspetos essenciais: a maneira
da enunciação, o ambiente e a medida do amor. No atinente à maneira da
enunciação, Jesus diz, “Dou-vos um
mandamento novo”, ou seja, fá-lo por autoridade própria e não como simples
intermediário, tal como o fora Moisés. Quanto ao ambiente, não se trata de um
decreto promulgado por pregão na rua ou publicação ex catedra, mas em ambiente de ternura familiar (replicado no cap. 15), o que envolve um compromisso de discípulo para mestre, de filho para
pai, de amigo para amigo (“vós sereis meus amigos se
fizerdes o que Eu vos mando” – 15,14). Em termos da medida, se dantes a medida era como a nós mesmos, doravante, passa a ser o modo como Cristo amou – até à morte se for
preciso: “Ninguém tem mais amor do que
Aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13); e, “Eu ofereço a minha vida pelas minhas ovelhas” (Jo 10,15).
***
Assim, hoje,
dia 24 de abril, o Papa Francisco, na celebração da Eucaristia de encerramento
do jubileu dos adolescentes, interpelou-os à luz desta perícopa do Evangelho em
que o Senhor nos confia “grande responsabilidade”. Na verdade, este Evangelho de
São João “diz-nos que as pessoas reconhecerão os discípulos de Jesus pelo modo
como se amam entre si”. Ou seja, o bilhete de identidade do cristão é o amor. O
amor “é o único documento válido para
sermos reconhecidos como discípulos de Jesus”. Será o nosso único cartão de
cidadania cristã.
Por isso,
Francisco adverte e desafia:
“Se este documento perde a validade e
não se volta a renová-lo, deixamos de ser testemunhas do Mestre. Por isso vos
pergunto: Quereis acolher o convite de Jesus para ser seus discípulos? Quereis
ser seus amigos fiéis?”
Depois,
especifica e define o rumo:
“O verdadeiro amigo de Jesus
distingue-se essencialmente pelo amor
concreto; não um amor nas nuvens,
não; o amor concreto que brilha na sua vida. O amor é sempre concreto. Quem não
é concreto e fala de amor, faz uma telenovela, um romance televisivo. […] Procuremos
então frequentar a sua escola, que é uma escola
de vida, para aprender a
amar. E este é um trabalho de todos os dias: aprender a amar”.
E, sendo belo este caminho “para sermos
felizes”, não é fácil: “é exigente, requer esforço”. Todavia, confere a alegria
de quem recebe porque alguém dá com alegria. E diz o Papa:
“Esta é a dimensão concreta do amor.
De facto, amar quer dizer
dar... e não só coisas
materiais, mas algo de nós mesmos: o próprio tempo, a própria amizade, as
próprias capacidades”.
E aponta o
exemplo do Senhor, que “é imbatível em generosidade”:
“D’ Ele recebemos tantos dons, e todos
os dias deveremos agradecer-Lhe... Gostava de vos perguntar: Agradeceis ao
Senhor todos os dias? Mesmo que nos esqueçamos, Ele não Se esquece de nos
oferecer cada dia um dom especial; não se trata de um presente que se possa ter
materialmente nas mãos e usar, mas de um dom maior, um dom para a vida.”
E que oferta
amorosa nos faz o Senhor?
- “Uma amizade fiel, dom de que nunca nos privará”, pois
Ele “é o amigo para sempre”.
- A
continuidade em contar connosco, mesmo se O dececionarmos, e a permanecer junto
de nós.
- O lúcido ensinamento
da beleza do afeto e da ternura, colocando no coração o “intuito bom” de “querer
bem sem me apoderar, amar as
pessoas sem querer possuí-las, mas deixando-as livres”, porque “o amor é
livre”.
- A constante
revelação do segredo da ternura: “cuidar da outra pessoa, o que significa
respeitá-la, protegê-la e esperar por ela”.
- A genuína liberdade
de saber dizer “não” e de saber dizer “sim”, ou seja, de renunciar àquilo que
apetece se for pecaminoso e aderir àquilo que se quer porque é bom.
- A coragem
do esforço e do risco por aquilo que vale a pena.
- O não
contentamento com a mediocridade, “com deixar
correr ficando cómodos e sentados”.
- A tomada de
consciência “da verdadeira riqueza que
sois vós” e de que “a felicidade não
tem preço, nem se comercializa”, não sendo “uma ‘app’ que se descarrega do telemóvel,
nem a versão mais atualizada” que vos poderá ajudar a tornar-vos livres e
grandes no amor.
***
Assim e segundo
as palavras do Papa, o amor tem como caraterísticas peculiares: é o “dom livre de quem tem o coração aberto”; é “uma responsabilidade, mas uma
responsabilidade maravilhosa, que
dura toda a vida”; é o compromisso
diário de quem sabe realizar
grandes sonhos”.
E o Pontífice
ensina que o amor se nutre de “confiança, respeito, perdão”; não se realiza só “falando
dele, mas quando o vivemos”; não é “uma poesia suave que se aprende de cor, mas
uma opção de vida a pôr em prática”.
Mais: revela
o segredo do crescimento no amor. Contemplando Jesus que Se nos dá “na Missa” e
nos oferece “o perdão e a paz na Confissão”, aí aprendemos “a acolher o seu
Amor, a assumi-lo, a repô-lo em circulação no mundo”. Além disso, importa
erguer “os olhos para a cruz de Jesus”, abraçá-la e não largar a mão de Jesus
que nos “conduz para o alto” e nos “levanta” quando caímos.
Ora, se na
vida, “sempre se cai, porque somos pecadores, somos fracos”, também é certo que
“temos a mão de Jesus que nos ergue, que nos levanta”, uma vez que Deus nos
criou “para estarmos de pé”. Por isso, é necessária “a coragem de levantar-se,
de nos deixarmos reerguer pela mão de Jesus” – mão que, “muitas vezes, chega
até nós pela mão de um amigo, pela mão dos pais, pela mão daqueles que nos
acompanham na vida”.
Sendo “capazes
de gestos de grande amizade e bondade”, os adolescentes e jovens são hoje
chamados “a construir o futuro” juntamente “com os outros e para os outros” e
nunca “contra outro
qualquer”. Para tanto, é precisa desde já a preparação, “vivendo plenamente
esta vossa idade tão rica de dons, e sem ter medo do esforço”.
E Francisco
inspira-se nas palavras de São Paulo, que diz, “combati o bom combate” (2Tm 4,7)
e:
“Os
atletas impõem a si mesmos toda a espécie de privações: eles, para ganhar uma
coroa corrutível; nós, porém, para ganhar uma coroa incorrutível. Assim, também eu corro, mas não
às cegas; dou golpes, mas não no ar.” (1Cor 9,25-26).
Nesses termos,
o Bispo de Roma recomenda, para que a nossa alegria seja completa (cf Jo 15,11):
“Fazei como os campeões desportivos,
que alcançam altas metas treinando-se, humilde e duramente, todos os dias. O
vosso programa diário sejam as obras de misericórdia: treinai-vos com
entusiasmo nelas, para vos tornardes campeões
de vida, campeões de amor! Assim
sereis reconhecidos como discípulos de Jesus.”
***
E, para que as obras de misericórdia, concretizadoras do novo mandamento –
no ataque aos problemas, na debelação das causas e na criação de autonomias de vida,
assentes em estruturas comunitárias sólidas – se tornem programa diário das
pessoas, é preciso lançar mão de gestos significativos. E o Ano da Misericórdia
é propício para a descoberta e reforço destes gestos.
Ora, Francisco não tem sido parco nesta ordem de ação: desde a visita a
Lampedusa, passando pelo acolhimento de refugiados nas duas paróquias do
Vaticano e pelo apoio aos sem-abrigo, à aceitação de três famílias muçulmanas
sírias trazidas de Lesbos. Porém, importa salientar outro gesto de
solidariedade não em relação propriamente ou só a refugiados, mas a populações
que sofrem na sua terra os desmandos do conflito político e armado.
Com efeito, o Papa, no Dia da
Divina Misericórdia, lançou o apelo a que se fizesse em todas as Igrejas
Católicas da Europa uma coleta em favor da
população da Ucrânia, a dia 24 de abril, num rasgo semelhante ao do tempo de São
Paulo em prol da Igreja de Jerusalém, justificando:
“Penso, em particular,
aqui na Europa, no drama de quem sofre as consequências da violência na
Ucrânia: de quantos permanecem em terras assoladas pelas hostilidades que já
causaram vários milhares de mortos, e de quantos — mais de um milhão — foram
obrigados a deixá-las devido à grave situação que perdura. Ficam envolvidos
sobretudo idosos e crianças.”
E, a 22 de abril, reforçou o apelo recordando que “a população
da Ucrânia sofre desde há tempos devido às consequências de um conflito armado,
esquecido por muitos” e agradeceu, desde logo, “aos que vão contribuir generosamente nesta iniciativa”. Depois, saudou um grupo de
sobreviventes da catástrofe da Central nuclear de Chernobil, vindos da Ucrânia
e da Bielorrússia, os dois países mais atingidos pela tragédia de 26 de abril
de 1986.
A este respeito,
o padre Ivan Hudz, coordenador da Capelania Nacional dos Imigrantes Ucranianos
de Rito Bizantino – considerando que a nossa Conferência Episcopal solicitou
a todas as comunidades cristãs e à sociedade em geral apoio aos habitantes da
Ucrânia residentes nos dois lados de zona de guerra, em declarações à agência Ecclesia – destacou o acolhimento dado a este gesto papal, acolhimento
que mostra que os católicos portugueses e a Igreja em geral “não esquecem os
seus irmãos”. E referiu:
“O apoio material faz muita falta, mas tenho a certeza que este gesto fará
também com que o povo ucraniano não se sinta só no meio desta guerra, e saiba
que na Europa ainda existem pessoas, cristãos verdadeiros, que não estão
fechados ao sofrimento e às necessidades dos outros”.
***
De facto, o
mandamento não se cumpre de braços cruzados e de coração fechado, mas de forma
afetiva e efetiva, de coração grande e aberto. É por isso que São João nos adverte:
“Meus filhinhos, não
amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade” (1Jo,3,18).
2016.04.24 – Louro de Carvalho
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