Enquanto nos
dá para festejar a excelência da Liberdade que o dia significa, acautelando-lhe
os riscos e saudando o bem-vindo regresso dos militares à sessão comemorativa
no Parlamento, apraz-me apurar o que as duas figuras de topo do regime –
Presidente da República e Presidente da Assembleia da República – disseram hoje
ao país. Ambos saudaram os capitães de abril e o primado da soberania popular,
louvando a revolução e as eleições livres a que ela deu azo, mas subliminarmente
mostraram reservas sobre o atual devir da Europa e das instâncias mundiais.
***
Marcelo, por
si, sublinha o facto de “toda a revolução, ao longo da História”, ser “feita de
várias revoluções, tantas quantos a viveram, mais ou menos intensamente” – o
que se aplica a 1974-75, como ficou espelhado na Assembleia Constituinte, em
que “houve momentos em que a primazia parecia pender para um ou alguns desses
projetos, para, logo a seguir, a correlação de forças favorecer projetos
diversos”. E a Constituição, promulgada a 2 de abril de 1976, “acolheu o
compromisso possível entre diversas revoluções, depois de 25 de novembro de
1975” – compromisso que viria a ser reformulado em sucessivas revisões”.
Depois, enunciou
os 4 desafios essenciais (“vividos quase em simultâneo”) colocados a Portugal: descolonização, democratização, integração europeia e construção de uma nova economia.
A descolonização, tardia e realizada no
meio da Revolução, culminou “na independência dos Estados irmãos na língua e em
tanta mundividência” e alterou “perfis económicos e sociais na Comunidade que
éramos”; a democratização,
concretizada por fases, “conheceu a sua expressão plena 6 anos depois de 1976”
(talvez nem
todos assim pensem); a integração europeia, decidida em 1977, ficou
“formalizada 8 anos volvidos, em 1985” (vigente desde 1 de janeiro de 1986); e a mudança
da economia, conheceu ciclos muito diversos: o “da rutura dos laços
coloniais, das nacionalizações e expropriações”; o “das reprivatizações para
mãos portuguesas, com apoio público”; e o “da recente transferência para mãos
estrangeiras em setores-chave”.
Acentuou a
ausência de guerra civil, a excecional integração de 700 mil compatriotas e o
percurso “em escassos anos”, de vias que economias fortes “haviam trilhado em
quarenta anos” – tudo isto que não é compreendido por jovens que não passaram
por tempos de ausência de liberdade, opressão da ditadura, esmagamento da censura,
elevadíssima mortalidade infantil, escolaridade obrigatória não cumprida, “um
milhão de emigrantes numa década, começo do despovoamento de um interior
continental e de áreas das atuais Regiões Autónomas”.
E, em nome
da verdade, destacou os benefícios inquestionáveis da democracia: a participação
no poder central, regional e local; a independência dos tribunais; a autonomia
política dos Açores e da Madeira; a autonomia administrativa do Poder Local; as
liberdades fundamentais; a mudança drástica dos indicadores de saúde; a
democratização no sistema de ensino; o profundo avanço no papel da mulher na
sociedade portuguesa; a abertura externa e circulação de pessoas e ideias; as
preocupações intergeracionais; a qualidade de vida; e “a projeção internacional
de tantos dos nossos melhores, sem precedente na História contemporânea”.
Porém,
reconhecendo o muito que está por fazer, passou às recomendações:
- Cuidar
mais da língua, valorizar mais a cultura, ir mais longe na educação, ciência e
inovação, relevar mais as comunidades da diáspora, apostar mais na CPLP, dar
aos que de fora vieram e integraram o “País Social a importância no País
Político que lhes tem sido negada”;
- Repensar o
fechamento no sistema de partidos e nos parceiros sociais, criar a aproximação
entre eleitores e eleitos, avançar no combate à corrupção e na transparência na
vida política;
- “Ir mais
longe quanto à mulher na política e na chefia administrativa, ao jovem na
sucessão geracional, ao emigrante e ao imigrante na vivência cívica”;
- “Lutar por
uma Europa menos confidencial e menos passiva, mais solidária e mais atenta às
pessoas, e sobretudo que não pareça aprovar nos factos o oposto do que apregoa
nos ideais”;
- Dar, no
quadro do desenvolvimento, “horizontes de esperança”, “sem ficar refém pela
dívida ou pela dependência intoleráveis”, mas apostando no crescimento,
competição, e emprego;
- Recuperar
a classe média e alimentar a circulação social, bem como “combater as
assimetrias e a pobreza que nos deve envergonhar”, para assegurar a coesão territorial
e social.
Todavia,
apesar das desilusões, o Presidente considera o saldo “claramente positivo”, mas
que “pode começar a ser preocupantemente descoroçoante para quem só se lembrar
dos anos 90 e da viragem do século”. Porém, adverte para o facto de a solução
não passar “por pessimismos antidemocráticos, por populismos antieuropeus, por
tentações de culpabilização constitucional”.
Salienta o “larguíssimo
acordo entre os Portugueses” no atinente “aos grandes objetivos nacionais”: vocação universal, pertença europeia,
importância da lusofonia, transatlantismo, defesa do Estado Social de Direito,
aposta na educação, na ciência, na inovação, combate às desigualdades e à pobreza,
maior circulação social e mais fortes classes médias, mais e melhor democracia,
sobreposição do poder político ao económico e, “como condições necessárias,
crescimento e emprego sem desequilíbrios
financeiros insanáveis”.
Acentua a
existência atual de “dois caminhos muito bem definidos e diferenciados quanto à
governação” e ao modo de se atingirem as metas nacionais” – reveladores do são
pluralismo, mas “diversos quanto ao papel do Estado na economia e na sociedade”,
“às prioridades para a criação de riqueza”, “ao tempo e ao modo da
redistribuição da riqueza” e “na filosofia e na prática política”.
No entanto,
rejeita um estilo de vivência política como que em contínua campanha eleitoral
e pede alguns consensos setoriais de regime, que não anulem as diferenças, as
quais também não podem afetar a unidade fundamental dos portugueses. Nestes
termos, o apelo presidencial passa pela união “no essencial”, mas “sem com isso
minimamente negarmos a riqueza do confronto democrático, em que Governos
aplicam as suas ideias e oposições robustecem as suas alternativas”. E surge a
troca das emoções pelo bom senso, aduzindo que “a Democracia criada a partir do
25 de abril de 1974 tem de ser recriada, todos os dias, para se não negar, nem
negar futuro aos Portugueses”.
***
A este
respeito, Catarina Martins adverte que a expressão das divergências é essencial
à convivência democrática e Jerónimo de Sousa avisa que, sempre que se fala em
consenso, é necessário precisar o seu conteúdo. De qualquer modo, o discurso
presidencial – sem remoques específicos quer ao Governo quer às oposições, mas
aos pessimistas e populistas e aos pretensos monopolistas da democracia –
constitui uma peça a considerar, a refletir e a sugerir ilações.
***
Por
seu turno, Ferro Rodrigues assinalou que celebrar abril “é recordar” o tempo de
ditadura, “que não queremos repetir”, e a grande oportunidade de projeção da
construção “do Portugal Democrático, Solidário e Desenvolvido”. E encareceu “a
democratização portuguesa”, mesmo que não tenha sido “um processo linear,
isento de erros e contradições”, aliás como “nenhuma empreitada humana o é”. Não
obstante, sublinhou que “em democracia todas as críticas são legítimas”, porém,
“nunca para diminuir a grandeza do 25 de abril”.
Depois,
enalteceu a Constituição da República Portuguesa, na elaboração da qual, “há 40
anos, deputados oriundos de latitudes políticas muito diferentes puseram em
cima da mesa as suas diferenças”, tendo, por vezes, divergido “com dureza”.
Todavia, como acentua o Presidente da Assembleia da República, não deixaram de “elaborar
as regras comuns do sistema democrático e o programa de direitos e
responsabilidades”, plasmados na nossa Constituição. Assim, na Assembleia Constituinte,
“acima dos partidos” e dos respetivos projetos políticos “estiveram valores que
unem os portugueses e que, por isso, tiveram tradução constitucional: “paz, pão, habitação, saúde, educação” –
ou seja, “o direito a uma vida digna em
liberdade”.
E,
em coerência com as loas que faz aos Deputados Constituintes, homenageou todos
aqueles que ainda estão vivos, muitos dos quais se reencontraram ali, e os que
“já partiram”.
A
seguir, contra um certo ambiente de crítica ao parlamentarismo, evocou “os grandes
progressos da democracia” e “os grandes avanços sociais e civilizacionais”, que
passaram “pelas treze legislaturas que já levamos e pelos Governos que a partir
delas se formaram”, sustentando que “hoje mais que nunca faz-nos bem revisitar
o espírito constitucional de 75-76”.
E
ousou apelar à consciência “da força das convicções e das razões das nossas
propostas”, mas sabendo “identificar o chão comum que pisamos, os valores que
nos unem e os objetivos estratégicos que nos mobilizam”. Nestes termos, pediu
que se debatam todas as matérias, mas sem “nunca perder de vista as mudanças
que precisamos de fazer para devolver esperança a Portugal” e procurando “falar
a uma só voz na Europa, em nome da Europa que queremos: uma Europa mais centrada na solidariedade social do que nas décimas das
finanças públicas”.
Em
olhar crítico sobre a danosa hipocrisia interesseira das instituições
internacionais, pergunta:
“Como
é possível que, depois da brutal crise financeira de 2007-2008, os pilares do
pensamento que a gerou – desregulamentar, liberalizar, privatizar, flexibilizar
– ainda não tenham sido definitivamente relativizados e apagados, apesar de
todo o arrependimento que então nos chegava do FMI, do Banco Mundial, da OCDE e
da própria União Europeia?”
E,
estribado em palavras de Sophia de Mello Breyner sobre a Liberdade, desafia:
“Se
queremos mais Europa e se exigimos mais da Europa, não nos deixemos tolher pelo
medo ou pelo cinismo. Lutemos para que a nossa Europa volte a ser para o resto
do mundo o farol dos Direitos Humanos.”
No
Dia da Liberdade, assegura que “a
liberdade não é uma fragilidade”, mas “a nossa maior força”. E sublinha o
contraste entre aqueles dias de eleições (25 de abril de 1975 e
de 1976) – dias de “abstenção
mínima” e de “alegria máxima no rosto das pessoas” – e o desinteresse de hoje
manifestado na forte abstenção. Depois, apelando a que a festa da democracia se
não vá transformando numa nova versão, ainda que democrática, da “feira
cabisbaixa” de Alexandre O’Neill. Embora compreenda a legitimidade da abstenção
no contexto da “normalização democrática e da emigração”, pede “mais atenção
para os sinais que nos chegam de sucessivos inquéritos à opinião dos
portugueses, ao nível da confiança nas instituições democráticas”.
E
chama a atenção para “os níveis de confiança em todas as instituições, e não
apenas para as instituições políticas”, já que a democracia “não se faz só de
partidos e deputados”, mas igualmente de “um poder judicial respeitável e
prestigiado” e de “uma comunicação social pluralista e respeitadora das regras
deontológicas”. Além disso, anota que “o exercício de funções públicas em
órgãos de soberania” e “o ofício de informar a opinião pública” constituem “tarefas
da maior delicadeza” que induzem a obrigação de “um sentido da responsabilidade
social permanente”. E, frisando que “a democracia é acima de tudo um regime de
regras e de valores”, declara que “não se pode esperar dos portugueses respeito
por quem não se dê ao respeito ou por quem não respeite as regras e as normas
do Estado de Direito Democrático”.
Aplaude
“a forma como os grupos parlamentares começam a fazer a parte que lhes cabe”, no
“anúncio de iniciativas de reforma do sistema eleitoral” e “com iniciativas de
reforço da transparência no exercício de cargos públicos” – manifestando sinais
“de inquietação e de inconformismo”, de “preocupação com a qualidade da
democracia” e de “combate à corrupção”.
Conhecendo
a clara insuficiência das reformas políticas – para mais crescimento económico,
emprego, rendimentos, vida melhor para todos, numa sociedade demasiado desigual
e, por conseguinte, desinteressada da participação política – não ignora a
importância democrática das reformas do sistema político. Mas estas não se
circunscrevem à produção de mais legislação.
Neste
sentido, pretende que, a exemplo do que sucedeu “há 20 anos com Almeida Santos”,
o Parlamento volte a “liderar o processo de adesão das Instituições do Estado
às novas tecnologias da comunicação”, pois, “as redes sociais, com todos os
seus riscos, permitem aproximar e comunicar melhor com as pessoas, nos Fora
onde se exerce hoje, cada vez mais, a cidadania”. Pretende estabelecer as bases
de colaboração assídua e atualizada “com a Comunidade para aumentar a qualidade
do escrutínio ao Parlamento”.
Se
“nunca como hoje teve o Parlamento as suas portas tão abertas à comunidade”, é
preciso “sair destas paredes” e continuar “o projeto sempre inacabado do
aperfeiçoamento da democracia”, pondo os olhos no “Parlamento mais antigo do
mundo, o Britânico, que, no âmbito da iniciativa Digital Democracy, soube reunir pareceres de especialistas,
opiniões dos cidadãos, da sociedade civil, soluções políticas e, assim,
encontrar formas inovadoras que permitem caminhar para uma nova democracia de
proximidade”
Assim,
propõe-se levar “em breve à agenda da Conferência de Líderes o tema da Democracia Digital” com vista às “melhores
soluções que permitam responder a esta preocupação urgente”. No reforço da
transparência no exercício dos mandatos e na forma de comunicação com os
cidadãos, o trabalho parlamentar ganhará mais visibilidade e valorização aos
olhos de todos.
Sem
medos e sem populismos, sem rotinas e sem marasmos, impõe-se “o combate pela
qualidade da democracia, que é, no dizer de Ferro Rodrigues, “um combate
urgente, permanente, um combate de todos os dias”, a honrar a coragem dos que “fizeram
do 25 de abril o Dia da Liberdade”.
***
São
discursos pedagógicos de lucidez pela liberdade, que vale a pena ter em conta.
Ambos enaltecem e acautelam a democracia e figuram em complementaridade do
regime: Marcelo assume a componente presidencialista, enquanto Rodrigues
interpreta a faceta parlamentarista.
2016.04.25 – Louro de Carvalho
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