sexta-feira, 29 de abril de 2016

Há 60 anos: 29 de abril de 1956, uma festa civil

Toda a gente falava de festa na terra. Ouviram-se alguns foguetes e dizia-se que ia entrar a música a tocar pelas ruas (na minha terra, música era a banda filarmónica). Mas eu não via nem ouvia música nenhuma. Diziam que ia ser inaugurado o telefone, mas eu não sabia o que era o telefone. E festa eu pensava que era só a Nosso Senhor, a Nossa Senhora, a Santo Antão e a São Brás. E também ao Senhor do Calvário, na freguesia ao lado.
Depois, foi tudo muito estranho. Fui à missa com o meu pai, quando habitualmente ia com a minha mãe ou as minhas irmãs. Fiquei no coro, quando dantes ficava juntamente com as mulheres no corpo da igreja. E vi só um padre na missa (o senhor Abade) e de verde. Ora nas festas, eram três padres e vestidos de branco, que cantavam a missa. E desta vez também a música não estava na missa nem houve procissão com andores com santos.
À tarde, não houve um arraial nem andores de prendas (os chamados “ramos”) nem leilões. Houve um cortejo com dois padres e uns senhores bem vestidos, que iam para a casa aonde as pessoas iam comprar o arroz e a massa, o azeite e o açúcar (tantas outras coisas) e aonde iam levar as cartas. Houve vivas e palmas, música e foguetes. Não percebi nada da poda naquele dia.
Só mais tarde é que percebi que aquela festa era a da inauguração do telefone. E o telefone era uma máquina que estava guardada numa casota. Tocava, pegavam nela e falavam com quem estava longe, mas que não se via. E, quando, alguém queria falar, chegava lá, metia os dedos numa roda com uns buracos, punha uma coisa que dava para a boca e para uma orelha e falava. Depois, ia perguntar quanto era e pagava umas moedas aos donos da loja.
Durante muitos anos, só havia uma máquina daquelas na terra. Mais tarde, outras pessoas também passaram a ter telefone, mas o que tinha sido inaugurado era o posto público.
***
Na missa, perguntei ao meu pai se aquilo era festa. E o meu pai disse-me que a festa não era de igreja: era festa civil.
Então fiquei a pensar que festa civil era uma festa em que a missa era rezada e só tinha um padre, vestido de verde. Não se falava de santos, a música não ia à igreja, não havia procissão. De tarde, havia um cortejo para a casa do arroz e da massa, havia foguetes e música, palmas e vivas, mas sem arraial e leilão.
Quando nos juntávamos para brincar, arremedávamos as festas. Mas, primeiro, combinava-se se eram festas religiosas ou festas civis; depois, festejava-se em conformidade. É claro que nós gostávamos mais das festas religiosas, porque as festas civis não eram bem festas.
Não tínhamos computadores, rádios, televisão, telemóveis nem festas de pijamas, pic-nics, nem mesmo eletricidade. Mas já havia microfones e altifalantes, pelo que nós improvisávamos discursos de sermão pronunciados sobre uma moca e amplificados por um funil. A música saía fazendo nós os sons metendo os dedos na boca e fazendo som parecido com o das cornetas da filarmónica e os foguetes conseguiam-se atando pedacinhos de terra envoltos em papel a caules de junco fazendo subir os sistemas no ar e com a boca imitando o som da subida e dos estrondos (estalaria e morteiro). Para a imitação ser completa, alguns foguetes tinham que estoirar no chão.
A festa era alternativa aos jogos da bola de trapos, do pião, das pedrinhas… e havia padre a cantar a missa, padre a fazer a procissão e padre a pregar o sermão. Fazíamos o arraial com baile, leilão, música e foguetes. E também havia os mordomos, que davam ordens aos padres, e as mordomas, que davam ordens aos mordomos.
***
Mas o dia da inauguração do telefone comportou uma perda de que não me apercebi no próprio dia. Andei todo do dia distraído. Só dei conta de que tinha morrido o meu avô paterno quando no dia seguinte estava muita gente na casa dele. Estava cá fora, vi o senhor abade a chegar, de preto e branco com uns homens de vermelho, que traziam uma cruz e umas velas acesas dentro dumas maçarocas (de lata e vidro, enfiadas num pau) e um quadro pintado enfiado num pau que terminava com uma cruzinha.
Lá consegui entrar. Vi gente a rezar e as minhas irmãs a chorar, mas eu não sabia porquê.
Só depois, quando perguntava por ele, é que me disseram que o avô tinha morrido, aliás que estava no céu.
***
E assim, no dia em que a minha aldeia festejava a chegada do progresso materializado numa máquina de falar, com uma festa de que eu não gostava, os anjos festejavam a chegada do avô de que eu gostava. Foi o único avô que conheci, de quem gostei e de cuja vida (já em idade avançada) guardo memória.
É a vida. E por quem espera por nós a oração e a memória, sessenta anos depois!
2016.04.29 – Louro de Carvalho

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