Toda
a gente falava de festa na terra. Ouviram-se alguns foguetes e dizia-se que ia
entrar a música a tocar pelas ruas (na minha terra, música
era a banda filarmónica).
Mas eu não via nem ouvia música nenhuma. Diziam que ia ser inaugurado o
telefone, mas eu não sabia o que era o telefone. E festa eu pensava que era só
a Nosso Senhor, a Nossa Senhora, a Santo Antão e a São Brás. E também ao Senhor
do Calvário, na freguesia ao lado.
Depois,
foi tudo muito estranho. Fui à missa com o meu pai, quando habitualmente ia com
a minha mãe ou as minhas irmãs. Fiquei no coro, quando dantes ficava juntamente
com as mulheres no corpo da igreja. E vi só um padre na missa (o
senhor Abade) e de
verde. Ora nas festas, eram três padres e vestidos de branco, que cantavam a missa.
E desta vez também a música não estava na missa nem houve procissão com andores
com santos.
À
tarde, não houve um arraial nem andores de prendas (os
chamados “ramos”) nem
leilões. Houve um cortejo com dois padres e uns senhores bem vestidos, que iam
para a casa aonde as pessoas iam comprar o arroz e a massa, o azeite e o açúcar
(tantas
outras coisas) e
aonde iam levar as cartas. Houve vivas e palmas, música e foguetes. Não percebi
nada da poda naquele dia.
Só
mais tarde é que percebi que aquela festa era a da inauguração do telefone. E o
telefone era uma máquina que estava guardada numa casota. Tocava, pegavam nela
e falavam com quem estava longe, mas que não se via. E, quando, alguém queria
falar, chegava lá, metia os dedos numa roda com uns buracos, punha uma coisa
que dava para a boca e para uma orelha e falava. Depois, ia perguntar quanto era
e pagava umas moedas aos donos da loja.
Durante
muitos anos, só havia uma máquina daquelas na terra. Mais tarde, outras pessoas
também passaram a ter telefone, mas o que tinha sido inaugurado era o posto
público.
***
Na
missa, perguntei ao meu pai se aquilo era festa. E o meu pai disse-me que a
festa não era de igreja: era festa civil.
Então
fiquei a pensar que festa civil era uma festa em que a missa era rezada e só
tinha um padre, vestido de verde. Não se falava de santos, a música não ia à
igreja, não havia procissão. De tarde, havia um cortejo para a casa do arroz e
da massa, havia foguetes e música, palmas e vivas, mas sem arraial e leilão.
Quando
nos juntávamos para brincar, arremedávamos as festas. Mas, primeiro,
combinava-se se eram festas religiosas ou festas civis; depois, festejava-se em
conformidade. É claro que nós gostávamos mais das festas religiosas, porque as
festas civis não eram bem festas.
Não
tínhamos computadores, rádios, televisão, telemóveis nem festas de pijamas,
pic-nics, nem mesmo eletricidade. Mas já havia microfones e altifalantes, pelo
que nós improvisávamos discursos de sermão pronunciados sobre uma moca e amplificados
por um funil. A música saía fazendo nós os sons metendo os dedos na boca e fazendo
som parecido com o das cornetas da filarmónica e os foguetes conseguiam-se
atando pedacinhos de terra envoltos em papel a caules de junco fazendo subir os
sistemas no ar e com a boca imitando o som da subida e dos estrondos (estalaria e morteiro). Para a
imitação ser completa, alguns foguetes tinham que estoirar no chão.
A
festa era alternativa aos jogos da bola de trapos, do pião, das pedrinhas… e
havia padre a cantar a missa, padre a fazer a procissão e padre a pregar o
sermão. Fazíamos o arraial com baile, leilão, música e foguetes. E também havia
os mordomos, que davam ordens aos padres, e as mordomas, que davam ordens aos
mordomos.
***
Mas
o dia da inauguração do telefone comportou uma perda de que não me apercebi no próprio
dia. Andei todo do dia distraído. Só dei conta de que tinha morrido o meu avô
paterno quando no dia seguinte estava muita gente na casa dele. Estava cá fora,
vi o senhor abade a chegar, de preto e branco com uns homens de vermelho, que
traziam uma cruz e umas velas acesas dentro dumas maçarocas (de
lata e vidro, enfiadas num pau)
e um quadro pintado enfiado num pau que terminava com uma cruzinha.
Lá
consegui entrar. Vi gente a rezar e as minhas irmãs a chorar, mas eu não sabia
porquê.
Só
depois, quando perguntava por ele, é que me disseram que o avô tinha morrido, aliás
que estava no céu.
***
E
assim, no dia em que a minha aldeia festejava a chegada do progresso materializado
numa máquina de falar, com uma festa de que eu não gostava, os anjos festejavam
a chegada do avô de que eu gostava. Foi o único avô que conheci, de quem gostei
e de cuja vida (já em idade avançada) guardo memória.
É
a vida. E por quem espera por nós a oração e a memória, sessenta anos depois!
2016.04.29 – Louro de Carvalho
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