sábado, 2 de abril de 2016

O 40.º aniversário da Constituição

Passa hoje, 2 de abril, o 40.º aniversário da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, foi a 2 de abril de 1976 que a Assembleia Constituinte, eleita a 25 de abril de 1975, deu por terminado o percurso dos trabalhos – controversos, intensos e animados – que durante dez meses ocuparam os deputados. E esse termo dos trabalhos consistiu na aprovação global do texto da lei fundamental, para entrar em vigor no dia 25 de abril, que o Presidente da República Francisco da Costa Gomes promulgou de imediato, no mesmo dia. Só o CDS votou contra.
Entre aqueles que se exprimiram sobre a efeméride, destacam-se: Marcelo Rebelo de Sousa, Ferro Rodrigues, Jerónimo de Sousa, Mota Amaral e Miranda Calha.
Marcelo Rebelo de Sousa é hoje o Presidente da República, o 4.º Presidente eleito na vigência da Constituição, e foi deputado constituinte. Ferro Rodrigues é hoje deputado e Presidente da Assembleia da República. Mota Amaral foi deputado constituinte e deixou o Parlamento em outubro do ano passado. Por sua vez, Jerónimo de Sousa e Miranda Calha foram deputados constituintes e hoje são deputados à Assembleia da República.
O Presidente da República entende que a Constituição deve ser ensinada e explicada nas escolas. Ora, eu não consigo perceber se esta é uma ideia peregrina do Presidente ou se é um aviso ao Ministério da Educação, já que a última revisão curricular deixou de oferecer um espaço curricular de educação cívica em que, a par das constitucionais liberdades, direitos e garantias dos cidadãos (obviamente com a contrapartida dos deveres para com os outros cidadãos, as instituições e o ambiente), devia colocar-se progressivamente a informação sobre o sistema político e a educação para a participação na vida pública. A mesma Constituição deveria ser, do meu ponto de vista, matéria obrigatória de estudo na formação inicial dos professores.
Ferro Rodrigues, fotografado no Parlamento com a primeira página do Expresso que noticiava a aprovação da Constituição, assegura que a Lei Fundamental “soube resistir à prova do tempo”.  
Vários comportamentos então considerados dramáticos – cinzeiros saídos do lugar, moedas lançadas das galerias para o plenário, funcionários a cumprimentar deputados operários por “doutores” ou “engenheiros”, palavras inflamadas de deputados em protesto a discursos da tribuna – são hoje recordados como ingredientes de diversão, entusiasmo e generosidade. Era o ardor da revolução e o fervilhamento do PREC a ditar mudanças sistemáticas e decisões relevantes, e por antecipação à vigência do regime constitucional, nos domínios da estrutura do Estado e na economia. Foi mesmo durante os trabalhos constituintes que se deu o sequestro da Assembleia e o volte face do 25 de novembro.
Jerónimo de Sousa considera que os “deputados constituintes foram eleitos pela maior percentagem de votação alguma vez realizada em Portugal”. E adverte que esta é realmente “a Constituição que temos porque em Portugal houve uma revolução” com “profundas transformações económicas e sociais”, cabendo aos deputados constituintes o mérito de “saber acolher essa transformação”, operada pelos “trabalhadores e pelo povo português, durante uma longa luta, que não começou em abril de 74, mas que potenciou os resultados dessa luta”. Entretanto, anotando as “sucessivas revisões empobreceram e mutilaram” o texto constitucional, especificou:
“Num tempo em que o nosso país andou para trás no que a Constituição define nos planos político, económico, social e cultural, e tendo em conta a alienação de parcelas da nossa própria soberania, eu diria, apesar de tudo e para além de tudo: é uma Constituição que vale a pena continuar a defender e a cumprir”.
Mota Amaral, que se posicionava quase do outro lado do hemiciclo, sustentou que na génese desta Assembleia e desta Constituição “estão umas eleições verdadeiramente democráticas”, o que, em parte, explica a sua “duração” e “razoabilidade”. Também recorda com risos outros episódios da altura, próprios do “ar do tempo”. E dá como exemplo o caso dos deputados comunistas que abandonaram o hemiciclo em protesto pelo discurso de Emídio Guerreiro, então secretário-geral do PPD, que atirou com uma atoarda ao plenário: “É uma cena digna de figurar no Museu Carnavalet”. E, quando um deputado da UDP perguntou que museu era esse, deixou-o mais tranquilo ao responder que era “o da revolução francesa”. Referindo-se à Constituinte e à Constituição como um “marco da nossa democracia”, sintetizou: “Abriu a porta a uma democracia pluralista. Valeu a pena.”
Por seu turno, Miranda Calha, em relação àqueles meses de gestação do texto entre 1975 e 1976, declarou:
“Nós viemos aqui com um mandato de fazer uma Constituição e naturalmente trazíamos o entusiasmo de querer contribuir para o nosso país e para o nosso povo, com uma Constituição que fosse uma afirmação da democracia e da liberdade”.
Depois, afirmando a índole “virtuosa” da Constituição, que fundou “um regime que tem mantido estabilidade”, explicitou:
“Mudados os tempos, a rotina que existe hoje em dia só demonstra a estabilidade da solução constitucional que se encontrou para o país – demonstra que somos uma democracia sedimentada e isso é muito importante”.
***
O Expresso, em contraponto ao almoço promovido pelo Presidente da República e pelo Presidente da Assembleia da República, com o grupo de deputados constituintes e com os antigos presidentes do Parlamento, para festejar o 40.º aniversário da Constituição, distribuiu gratuitamente, pelos leitores, um exemplar de bolso do texto constitucional hoje em vigor – aquele texto que Marcelo jurou defender, cumprir e fazer cumprir.
Entretanto, o jornalista do mesmo semanário, Martim Silva, faz na edição on line de hoje um levantamento das grandes diferenças entre o texto original (de 1976) e o atualmente em vigor em resultado das 7 revisões por que passou o primeiro, quando a Assembleia da República assumiu poderes constituintes e de que resultaram leis constitucionais: LC n.º 1/1982, de 30 de setembro; LC n.º 1/1989, de 8 de julho; LC n.º 1/1992, de 25 de novembro; LC n.º 1/1997, de 20 de setembro; LC n.º 1/2001, de 12 de dezembro; LC n.º 1/2004, de 24 de julho; e LC n.º 1/2005, de 12 de agosto. De tais alterações se faz um brevíssimo sumário:
No âmbito dos “princípios fundamentais”, desapareceram do texto de 1976 expressões como o empenho na “transformação numa sociedade sem classes”, as referências ao Movimento das Forças Armadas e a Macau, passando a constar o “reforço da identidade europeia”, a referência aos tratados da União Europeia e expressões como “construção de uma sociedade livre, justa e solidária” e “aprofundamento da democracia participativa”.
Nos princípios gerais dos “Direitos e deveres fundamentais” foi acrescentada a “orientação sexual” aos motivos por que ninguém pode ser discriminado.
No quadro da liberdade e segurança, a “detenção ou prisão preventiva” fica restringida aos casos de crimes cuja moldura penal seja “superior a três anos” e é prevista a possibilidade de indemnização nos casos de violação da lei ou da Constituição e nos casos dos “cidadãos injustamente condenados”. E, quanto à extradição, ficou estabelecido que ninguém pode ser extraditado em casos em que seja prevista a prisão perpétua ou indefinida no país requisitante.
Relativamente à inviolabilidade do domicílio, mantém-se o texto original de que “ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento”, mas acrescentou-se: “salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta”.
Desapareceu, no âmbito da liberdade de imprensa a impossibilidade de a televisão ser “objeto de propriedade privada” e o artigo sobre os “meios de comunicação social do Estado”. Mas foi criado o artigo atinente ao organismo de regulação da Comunicação Social.
Em relação aos direitos económicos, o direito de todos “ao trabalho” foi substituído pela garantia aos trabalhadores da “segurança no emprego”, deixando o Estado de ter a obrigação de apresentação de “planos de política económica e social”. Estão previstos constitucionalmente os serviços mínimos e as disposições sobre “cooperativas e autogestão” cederam o lugar às simpáticas disposições sobre “direitos dos consumidores”.
O direito à saúde, de assegurado por um serviço nacional de saúde “universal, geral e gratuito”, passa a ser garantido por um serviço nacional “tendencialmente gratuito”, que tem “em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos”.
O artigo atinente à maternidade inclui a paternidade; os “deficientes” passaram a ser “cidadãos portadores de deficiência”; e estendem-se as disposições constitucionais sobre a família.
Continua a incumbir ao Estado, no âmbito da educação, o estabelecimento progressivo da gratuitidade de todos os graus de ensino” e a garantia da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, mas sem a referência ao dever de “estimular e favorecer a entrada dos trabalhadores e dos filhos das classes trabalhadoras” neste grau de ensino.
No domínio da organização económica foram-se operando, ao longo do tempo, enormes mudanças. Foram eliminadas as referências à economia planificada, a nacionalizações, à reforma agrária, à transição para o socialismo, ao controlo de gestão e ao poder democrático dos trabalhadores ou à expropriação dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas. A versão atual da Constituição, a este nível, sustenta que “o Estado incentiva a atividade empresarial” e limita ao domínio público constitucional as águas territoriais, as estradas, as linhas férreas, os jazigos minerais e pouco mais. Sem alteração substancial mantém-se o estipulado sobre o sistema financeiro, os impostos e o orçamento de Estado.
No âmbito da organização do poder político, a Constituição hoje define quatro órgãos de soberania: O Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais. Em 1976, também o Conselho da Revolução (extinto na revisão de 1982, destinada a normalizar o regime e afastar a tutela militar sobre o sistema político) com poderes judiciais na apreciação da constitucionalidade das leis (agora na alçada do Tribunal Constitucional) e poderes legislativos em matéria militar (ora repartidos pelo Parlamento e pelo Governo).
Ficou estabelecido o direito de os partidos serem informados sobre a atividade do Governo; estabeleceu-se o referendo; incluiu-se a existência legal dum sistema de incompatibilidades e a possibilidade de se limitarem na lei os mandatos dos políticos; alargou-se a possibilidade de voto aos portugueses residentes no estrangeiro; desapareceram os artigos com as competências do Conselho de Revolução, sendo colocados no seu lugar os artigos referentes ao Conselho de Estado enquanto órgão de consulta do Presidente da República.
No atinente ao Parlamento, diminui-se o número de deputados, 180 a 230 em vez dos 240 a 250 iniciais, e os deputados podem apresentar projetos de revisão constitucional. Em relação ao Governo, que já não tem de executar a sua política “por forma a corresponder aos objetivos da democracia e da construção do socialismo”, passou a limitar-se o conjunto de atos que pode praticar depois de ser demitido; implica a demissão do Governo a aprovação de uma moção de censura, quando dantes eram precisas duas no espaço de 30 dias; e acrescentou-se que o Presidente “só pode demitir o Primeiro-Ministro quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas”. No respeitante aos tribunais, passou a existir o Tribunal Constitucional com as competências de fiscalização da constitucionalidade das leis e diplomas equiparados para o efeito, de validação das candidaturas a eleições legislativas, presidenciais e europeias e de instância de recurso para eleições locais, bem como para registo dos partidos políticos e entrega de rendimentos dos titulares de cargos públicos.
No concernente às autarquias locais, é de referir que está prevista a regionalização desde a Constituição de 1976, mas que o texto atual impõe que o modelo só pode ser aprovado mediante consulta prévia aos eleitores.
Foram ainda eliminadas do texto constitucional as disposições sobre Macau e Timor, bem como sobre a incriminação dos responsáveis da PIDE/DGS.
E, por uma razão de simbolismo de data, não se alterou em nada o preâmbulo, com a menção explícita da revolução, do Movimento das Forças Armadas e caminho para o socialismo.
Dá-me a impressão de que são estes conteúdos preambulares que mais amofinam os adversários da Constituição, o passo que os partidos mais posicionados à esquerda se consideram defraudados pelas alterações que transmutam o articulado inicial.
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Apesar de tudo, a Constituição aí está para durar e permitir a governação a qualquer quadrante político. Dá um pouco para tudo: uma governação mais liberal, uma governação mais estatizante ou uma governação de terceira via. Se o texto não permite uma nacionalização absoluta dos meios de produção, também já não há partido comunista que proponha tal.
Também é contra o espírito da Constituição a privatização de empresas e serviços a esmo e ao desbarato e ela vem acontecendo, precisamente porque não se têm em conta as disposições constitucionais de regulação e supervisão e até de intervenção, se necessário.
Porém, o que mais inquina o decurso da governação sob o sistema constitucional vigente é a Constituição oculta que enforma as determinações da Comissão Europeia e do Eurogrupo, aplaudida pelos bastantes e bons alunos, para imposição deliberada de medidas conducentes ao empobrecimento dos povos e ao esmagamento dos cidadãos. É sobretudo contra essa Constituição oculta e esmagadora que se impõe hoje a vigilância democrática, se queremos continuar a levantar a cabeça e vir a ter possibilidades de pagar a dívida soberana. Para tanto é necessária a mobilização para a participação democrática, pelo menos à semelhança de há 40 anos.
2016.04.02 – Louro de Carvalho

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