sábado, 30 de abril de 2016

A postura errática do Presidente

Passos Coelho, no congresso partidário em que tentou definir o candidato presidencial a apoiar pelo PSD, falava em ideias erráticas e em estilo de catavento como caraterísticas que o seu candidato não deveria ter. Muitos (incluindo o próprio Marcelo) pensaram que subentendidamente se referia ao antigo líder socialdemocrata professor. O ex-presidente da Câmara do Porto, seu potencial adversário, da mesma área partidária, na carta aberta em que informava o eleitorado da sua desistência da corrida para Belém, afirmava que sabia que era a figura da direita com melhor perfil e que não seria foco de instabilidade no palácio presidencial – o que parecia uma clara referência ao ex-presidente partidário de que Rio fora secretário-geral.
Marcelo desenvolveu uma campanha eleitoral atípica, mas que, servindo de corolário ao notório percurso de visibilidade pública, via televisão, lhe deu folgada vitória.
E é verdade que, de um modo geral, as suas inovações caíram bem e os seus discursos emblemáticos (da tomada de posse, ao Parlamento Europeu e das comemorações do 25 de abril) podem e devem considerar-se bem conseguidos.
Não obstante, como é do conhecimento público, o Presidente não perde a oportunidade de intervir sempre que haja tema, assunto ou caso. Se lhe parecer conveniente, tudo observa, tudo comenta e em tudo diligencia. Com Marcelo pode haver outras personagens, outros agentes, outros atores, mas não outros protagonistas. Pelo menos, quer figurar como primus inter pares. O próprio Primeiro-Ministro o vai acolitando com o recorrente Ámen.
Não dúvida de que, sempre que dirige a palavra ex catedra praesidentiali, faz jus aos dons oratórios de que é dotado por natureza, por exercício e por experiência, excetuando aquele martelar gestual de mão direita a acompanhar quase ininterruptamente o ritmo frásico, mas sem que sirva de considerável mais-valia na expressividade discursiva.
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João Semedo, em artigo de opinião publicado na revisa Visão, de 28 de abril, faz derivar o presuntivo facto de os portugueses estarem a viver “uma overdose de Presidente, uma overdose de Marcelo” da “insustentável leveza do Presidente”.
Já me referi a alguns exemplos da sua ligeireza. Recordo-me, a propósito, das palavras que proferiu em comentário à audiência com o Papa, revelando entre linhas o que dizia não revelar; das justificações que dá sobre futura promulgação de diplomas legais, atuação do Governo, posição do CDS, questões com o BPI e de tantas outras circunstâncias em que se abeira dos microfones públicos.
João Semedo arrisca escrever que hoje notícia será “Marcelo não querer comentar algum facto ou situação” e que, se Marcelo deixou o comentário, o comentário não deixou Marcelo”.
Há quem diga que é defeito, há quem diga que assim é que está bem (temos presidente próximo do povo e da realidade). Outros avançam que é para mostrar a diferença entre o seu exercício da presidência, próximo e afável, e o de Cavaco, frio e distante. E outros ainda explicam este afã da chefatura do Estado para ganhar terreno, marcar agenda e conquistar a simpatia popular para que, em momento de crise aguda, consiga ser ouvido por todos e obter o favor do consenso para a ultrapassagem das situações problemáticas.
Ora, um defeito ultrapassa-se com o exercício da lima; a proximidade não implica pronunciar-se sobre tudo e todos (temos uma boca e dois ouvidos, um nariz e dois olhos); para ser diferente de Aníbal não é preciso muito; e, quanto à conveniência de obter o favor popular para ser ouvido em tempo de crise, pode suceder o efeito contrário, a saturação ante a palavra do Presidente. E, mais do que a palavra do poder, é importante o poder da palavra. E que sucederá se a palavra do poder já não tiver poder?
Semedo, ao verificar que aquilo que acontecia “apenas ao domingo, é agora diário e, com frequência, mais do que uma vez por dia”. E vai mais longe ao frisar:
“Não importa se é defeito ou feitio, tática ou estratégia, se é estilo para os primeiros tempos ou se veio para ficar. Nem tão pouco interessa saber se Marcelo quer apenas exibir o que o distingue de Cavaco ou se quer mesmo concorrer com o primeiro-ministro António Costa, não tanto na notoriedade pública e mediática mas, sim, na efetiva condução do país e na ocupação do centro da vida política portuguesa. Não adianta especular muito sobre as motivações de Marcelo, o tempo se encarregará de as tornar transparentes.”.
Considerando que “a densidade das opiniões do Presidente é inversamente proporcional à frequência com que as produz”, afirma Semedo que “a leveza é a marca de muitas das suas afirmações”. Como exemplo, recorre às palavras de Marcelo sobre o “pacto para a saúde”.
Assim, refere que, previamente ao discurso que preferiu na cerimónia das comemorações dos 75 anos da Liga Portuguesa contra o Cancro, pronunciou umas palavras endereçadas ao ministro da Saúde:
“A sua presença aqui… também é… a certeza de que pode vir a ser um protagonista importante num verdadeiro pacto da saúde na sociedade... aceitação de princípios fundamentais pelos mais variados quadrantes da vida nacional. É uma abertura de caminho para um pacto que antes de ser formalizado, já existe.”.
João Semedo, depois de negar a existência de qualquer pacto para a saúde – estribado nas posições conhecidas dos diversos partidos, ao centro e à direita e a uma certa esquerda, em que só por hipocrisia não esmifraram totalmente o serviço nacional de saúde, tolerando, favorecendo e copagando os serviços lucrativos de saúde prestados pelo setor privado – ressalva que o único pacto de saúde que existe é o plasmado no texto constitucional. E bem poderia socorrer-se do preceituado na Lei Fundamental, carateriza o serviço nacional de saúde como universal e geral e tendencialmente gratuito. Com efeito, o artigo 64.º da CRP, depois de reconhecer que “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover”, estabelece que “o direito à proteção da saúde é realizado”:
“a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;
“b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a proteção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável.”
Depois, define as incumbências prioritárias do Estado nesta matéria:
“Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação; e “uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde”;
“Orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;
“Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade;
“Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;
“Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência.”
Por fim, vem a referência constitucional à gestão do serviço:
O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada”.
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Nestes dias, em visita a Moçambique, país ora dilacerado por grave e global crise política, económica, financeira e social, Marcelo vai relançar o debate sobre o Acordo Ortográfico, aproveitando a boleia da ainda não ratificação do dito acordo por aquele Estado africano.
Pelos vistos, o consultor cultural do presidente da República, Pedro Mexia, está atolado nas mensagens que Marcelo alegadamente tem recebido “de cidadãos e instituições a contestar o acordo e que, se Moçambique e Angola não o ratificarem, “impõe-se uma reflexão sobre a matéria, que é de competência governamental, mas o Presidente não deixará de sublinhar a utilidade de reflexão”.
Ora, mais uma vez Marcelo se mostra “metediço”, como o fez ao pressionar o Ministério da Educação para o estabelecimento dum regime transitório para a avaliação externa das aprendizagens no ensino básico. E tem postura errática, como se pode ver recordando.
Segundo o DN on line de hoje, dia 30 de abril, o Expresso recorda que, em 1991, “Marcelo Rebelo de Sousa foi um dos 400 subscritores de um manifesto contra o Acordo Ortográfico”. Porém, em 2008, manifestou-se a favor, tendo em conta que as alterações não eram substanciais. Depois, em 2014 na TVI, admitiu que, apesar de ter defendido o Acordo, tinha dificuldade em o aplicar. E, durante a campanha para as eleições presidenciais, continuou a desrespeitar as regras da nova ortografia, mas não tomou posição pública sobre o tema. Já em abril mês, em ofício a que o Expresso acedeu, pode ler-se que “sem prejuízo de possíveis desenvolvimentos futuros, o presidente da República, como todas as instituições do Estado português, segue as regras do Acordo Ortográfico no exercício das suas funções”.
E, quando ouviu Manuel Alegre a desdizer da nova ortografia em cerimónia pública de prémio que o Presidente lhe entregou, no dia 25 de abril, não produziu qualquer nota explicativa.
Não pode, em meu entender, o Presidente jogar em matéria tão discutível tomar qualquer iniciativa e muito menos agir contra o posicionamento político de parlamentos e governos de ordens políticas diversas. Se o Governo ou o Parlamento quiserem ter iniciativa política e legislativa sobre a matéria, que a tomem e que arquem com as responsabilidades.
Foi melhor política ou cientificamente a reforma ortográfica do governo provisório da I República (1911) ou a da Ditadura Nacional do Estado Novo (1945)? São mais os falantes de português em Angola e Moçambique que no Brasil e nos demais países lusófonos?
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Dizem não haver consenso sobre a ortografia, mas também não o há sobre os ditos objetivos nacionais ao contrário do que diz Marcelo, como sustenta Alfredo Barroso: por exemplo, em relação a esta União Europeia, em relação ao transatlantismo, em relação ao Estado Social…
Portanto, que Marcelo seja Presidente e só Presidente. Dispensamos o comentador e o professor.
2016.04.30 – Louro de Carvalho

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