Passos
Coelho, no congresso partidário em que tentou definir o candidato presidencial
a apoiar pelo PSD, falava em ideias erráticas e em estilo de catavento como
caraterísticas que o seu candidato não deveria ter. Muitos (incluindo o
próprio Marcelo) pensaram
que subentendidamente se referia ao antigo líder socialdemocrata professor. O
ex-presidente da Câmara do Porto, seu potencial adversário, da mesma área
partidária, na carta aberta em que informava o eleitorado da sua desistência da
corrida para Belém, afirmava que sabia que era a figura da direita com melhor
perfil e que não seria foco de instabilidade no palácio presidencial – o que
parecia uma clara referência ao ex-presidente partidário de que Rio fora
secretário-geral.
Marcelo
desenvolveu uma campanha eleitoral atípica, mas que, servindo de corolário ao notório
percurso de visibilidade pública, via televisão, lhe deu folgada vitória.
E é verdade
que, de um modo geral, as suas inovações caíram bem e os seus discursos
emblemáticos (da tomada de posse, ao Parlamento Europeu e das comemorações do 25 de abril) podem e devem considerar-se bem conseguidos.
Não
obstante, como é do conhecimento público, o Presidente não perde a oportunidade
de intervir sempre que haja tema, assunto ou caso. Se lhe parecer conveniente,
tudo observa, tudo comenta e em tudo diligencia. Com Marcelo pode haver outras
personagens, outros agentes, outros atores, mas não outros protagonistas. Pelo
menos, quer figurar como primus inter
pares. O próprio Primeiro-Ministro o vai acolitando com o recorrente Ámen.
Não dúvida
de que, sempre que dirige a palavra ex
catedra praesidentiali, faz jus aos dons oratórios de que é dotado por
natureza, por exercício e por experiência, excetuando aquele martelar gestual
de mão direita a acompanhar quase ininterruptamente o ritmo frásico, mas sem
que sirva de considerável mais-valia na expressividade discursiva.
***
João Semedo,
em artigo de opinião publicado na revisa Visão,
de 28 de abril, faz derivar o presuntivo facto de os portugueses estarem a
viver “uma overdose de Presidente, uma overdose de Marcelo” da “insustentável
leveza do Presidente”.
Já me referi
a alguns exemplos da sua ligeireza. Recordo-me, a propósito, das palavras que
proferiu em comentário à audiência com o Papa, revelando entre linhas o que
dizia não revelar; das justificações que dá sobre futura promulgação de
diplomas legais, atuação do Governo, posição do CDS, questões com o BPI e de tantas
outras circunstâncias em que se abeira dos microfones públicos.
João Semedo
arrisca escrever que hoje notícia será “Marcelo não querer comentar algum facto
ou situação” e que, se Marcelo deixou o comentário, o comentário não deixou
Marcelo”.
Há quem diga
que é defeito, há quem diga que assim é que está bem (temos
presidente próximo do povo e da realidade). Outros
avançam que é para mostrar a diferença entre o seu exercício da presidência,
próximo e afável, e o de Cavaco, frio e distante. E outros ainda explicam este
afã da chefatura do Estado para ganhar terreno, marcar agenda e conquistar a
simpatia popular para que, em momento de crise aguda, consiga ser ouvido por
todos e obter o favor do consenso para a ultrapassagem das situações
problemáticas.
Ora, um
defeito ultrapassa-se com o exercício da lima; a proximidade não implica
pronunciar-se sobre tudo e todos (temos uma boca e dois ouvidos, um
nariz e dois olhos); para ser
diferente de Aníbal não é preciso muito; e, quanto à conveniência de obter o
favor popular para ser ouvido em tempo de crise, pode suceder o efeito
contrário, a saturação ante a palavra do Presidente. E, mais do que a palavra
do poder, é importante o poder da palavra. E que sucederá se a palavra do poder
já não tiver poder?
Semedo, ao
verificar que aquilo que acontecia “apenas ao domingo, é agora diário e, com
frequência, mais do que uma vez por dia”. E vai mais longe ao frisar:
“Não importa se é defeito ou feitio, tática ou estratégia, se é estilo para
os primeiros tempos ou se veio para ficar. Nem tão pouco interessa saber se
Marcelo quer apenas exibir o que o distingue de Cavaco ou se quer mesmo
concorrer com o primeiro-ministro António Costa, não tanto na notoriedade
pública e mediática mas, sim, na efetiva condução do país e na ocupação do
centro da vida política portuguesa. Não adianta especular muito sobre as
motivações de Marcelo, o tempo se encarregará de as tornar transparentes.”.
Considerando
que “a densidade das opiniões do Presidente é inversamente proporcional à
frequência com que as produz”, afirma Semedo que “a leveza é a marca de muitas
das suas afirmações”. Como exemplo, recorre às palavras de Marcelo sobre o “pacto
para a saúde”.
Assim,
refere que, previamente ao discurso que preferiu na cerimónia das comemorações
dos 75 anos da Liga Portuguesa contra o Cancro, pronunciou umas palavras
endereçadas ao ministro da Saúde:
“A sua presença aqui… também é… a certeza de que pode vir a ser um
protagonista importante num verdadeiro pacto da saúde na sociedade... aceitação
de princípios fundamentais pelos mais variados quadrantes da vida nacional. É
uma abertura de caminho para um pacto que antes de ser formalizado, já existe.”.
João Semedo,
depois de negar a existência de qualquer pacto para a saúde – estribado nas
posições conhecidas dos diversos partidos, ao centro e à direita e a uma certa
esquerda, em que só por hipocrisia não esmifraram totalmente o serviço nacional
de saúde, tolerando, favorecendo e copagando os serviços lucrativos de saúde
prestados pelo setor privado – ressalva que o único pacto de saúde que existe é
o plasmado no texto constitucional. E bem poderia socorrer-se do preceituado na
Lei Fundamental, carateriza o serviço nacional de saúde como universal e geral
e tendencialmente gratuito. Com efeito, o artigo 64.º da CRP, depois de
reconhecer que “todos
têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover”, estabelece
que “o direito à proteção da
saúde é realizado”:
“a) Através de um serviço nacional de saúde
universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais
dos cidadãos, tendencialmente gratuito;
“b) Pela criação de condições económicas,
sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a proteção da
infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições
de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva,
escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do
povo e de práticas de vida saudável.”
Depois,
define as incumbências
prioritárias do Estado nesta matéria:
“Garantir
o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos
cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação; e “uma racional e
eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde”;
“Orientar
a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e
medicamentosos;
“Disciplinar e
fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o
serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde
públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade;
“Disciplinar e
controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos,
biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;
“Estabelecer políticas
de prevenção e tratamento da toxicodependência.”
Por fim, vem a referência constitucional à gestão do
serviço:
“O
serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada”.
***
Nestes
dias, em visita a Moçambique, país ora dilacerado por grave e global crise política,
económica, financeira e social, Marcelo vai relançar o debate sobre o Acordo
Ortográfico, aproveitando a boleia da ainda não ratificação do dito acordo por aquele
Estado africano.
Pelos
vistos, o consultor cultural do presidente da República, Pedro Mexia, está atolado
nas mensagens que Marcelo alegadamente tem recebido “de cidadãos e instituições
a contestar o acordo e que, se Moçambique e Angola não o ratificarem, “impõe-se
uma reflexão sobre a matéria, que é de competência governamental, mas o Presidente
não deixará de sublinhar a utilidade de reflexão”.
Ora, mais
uma vez Marcelo se mostra “metediço”, como o fez ao pressionar o Ministério da
Educação para o estabelecimento dum regime transitório para a avaliação externa
das aprendizagens no ensino básico. E tem postura errática, como se pode ver
recordando.
Segundo
o DN on line de hoje, dia 30 de abril, o Expresso recorda que, em 1991, “Marcelo Rebelo de Sousa foi um dos
400 subscritores de um manifesto contra o Acordo Ortográfico”. Porém, em 2008,
manifestou-se a favor, tendo em conta que as alterações não eram substanciais. Depois,
em 2014 na TVI, admitiu que, apesar de ter defendido o Acordo, tinha
dificuldade em o aplicar. E, durante a campanha para as eleições presidenciais,
continuou a desrespeitar as regras da nova ortografia, mas não tomou posição
pública sobre o tema. Já em abril mês, em ofício a que o Expresso acedeu, pode ler-se que “sem prejuízo de possíveis
desenvolvimentos futuros, o presidente da República, como todas as instituições
do Estado português, segue as regras do Acordo Ortográfico no exercício das
suas funções”.
E, quando
ouviu Manuel Alegre a desdizer da nova ortografia em cerimónia pública de prémio
que o Presidente lhe entregou, no dia 25 de abril, não produziu qualquer nota
explicativa.
Não pode,
em meu entender, o Presidente jogar em matéria tão discutível tomar qualquer iniciativa
e muito menos agir contra o posicionamento político de parlamentos e governos
de ordens políticas diversas. Se o Governo ou o Parlamento quiserem ter iniciativa
política e legislativa sobre a matéria, que a tomem e que arquem com as
responsabilidades.
Foi melhor
política ou cientificamente a reforma ortográfica do governo provisório da I
República (1911) ou a da Ditadura Nacional do Estado
Novo (1945)? São mais os falantes de português em
Angola e Moçambique que no Brasil e nos demais países lusófonos?
***
Dizem
não haver consenso sobre a ortografia, mas também não o há sobre os ditos
objetivos nacionais ao contrário do que diz Marcelo, como sustenta Alfredo
Barroso: por exemplo, em relação a esta União Europeia, em relação ao
transatlantismo, em relação ao Estado Social…
Portanto,
que Marcelo seja Presidente e só Presidente. Dispensamos o comentador e o
professor.
2016.04.30 – Louro de Carvalho
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