Hoje, dia 8 de abril, foi publicada, como previsto, a “Amoris Laetitia” (Alegria
do Amor), a exortação apostólica pós-sinodal do
Papa Francisco sobre a família. Num texto de nove capítulos, o Santo Padre
recolhe os resultados de dois Sínodos dos Bispos sobre a família celebrados em
2014 e 2015, citando anteriores documentos papais, contributos de conferências
episcopais e de várias personalidades. Trata-se de uma exortação apostólica dirigida
aos bispos, aos presbíteros e diáconos, às pessoas consagradas, aos esposos
cristãos e a todos os fiéis leigos.
É um documento de grande dimensão com 325 parágrafos e
que nos primeiros 7 (à laia de introdução) evidencia a grande complexidade do tema. Em particular,
Francisco sustenta que para algumas questões, “em cada país ou região, é
possível buscar soluções mais inculturadas”, tendo em boa conta as tradições e os
desafios locais. De facto, “as culturas são muito diferentes entre si e cada
princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser
inculturado”.
***
Segue-se um bosquejo breve pelos 9 capítulos do inestimável
documento pontifício, seguindo de perto, os conteúdos selecionados pela síntese
apresentada pela Rádio Vaticano, embora em confronto com a leitura rápida do documento
e muitas alterações.
I. À luz da
Palavra (9-30)
No 1.º capítulo, o Papa faz partir a sua reflexão das
Sagradas Escrituras, em especial, de uma meditação acerca do Salmo 128, caraterístico
da liturgia nupcial hebraica, assim como da cristã. A Bíblia surge repleta “de
famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares” (AL,8).
II. A
realidade e os desafios das famílias (32-57)
A partir da Bíblia, o Pontífice olha, no 2.º capítulo,
para a situação atual das famílias, mantendo “os pés assentes na terra” (AL,6). A humildade do realismo ajuda a não expor “um ideal
teológico do matrimónio demasiado abstrato”, sem considerar na devida conta “a
situação concreta e as possibilidades efetivas das famílias tais como são” (AL,36). Sendo o matrimónio “um caminho dinâmico de
crescimento e realização”, nós “somos chamados a formar as consciências, não a
pretender substituí-las” (AL,37). É certo
que Jesus propôs um ideal exigente, mas “não perdia jamais a proximidade
compassiva junto das pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera” (AL,38).
III. O
olhar fixo em Jesus: a vocação da família (61-88)
O 3.º capítulo da Amoris
Laetitia aborda alguns elementos essenciais do ensinamento da Igreja acerca
do matrimónio e da família. Em seus parágrafos explicita a vocação à e da
família de acordo com o Evangelho, tal como ela foi percebida pela Igreja ao
longo do tempo, sobretudo no atinente aos temas da indissolubilidade e da
sacramentalidade do matrimónio, da transmissão da vida e da educação dos
filhos. Ressaltam inúmeras citações da Gaudium
et Spes (GS), do Concílio
Vaticano II, da encíclica Humanae Vitae (HV), do Beato Paulo VI, e da exortação apostólica Familiaris Consortio (FC), de São João Paulo II. Francisco, no 3.º
capítulo, realça ainda um princípio geral importante: “Saibam os pastores que,
por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (FC,84). Porque o grau de responsabilidade não é igual em
todos os casos e podem existir fatores que limitem uma capacidade de decisão, “ao
mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar juízos que não
tenham em conta a complexidade das diferentes situações e é preciso estar
atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição” (AL,79).
IV. O
amor no matrimónio (90-164)
O amor no matrimónio é ilustrado, no 4.º capítulo, a
partir do “hino ao amor” de São Paulo na 1.ª Carta aos Coríntios (1 Cor
13,4-7). O capítulo glosa o caráter quotidiano
do amor que se opõe a todos os idealismos: “não se deve atirar para cima de
duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter de reproduzir perfeitamente a
união que existe entre Cristo e a Igreja, porque o matrimónio como sinal
implica um processo dinâmico que avança gradualmente com a progressiva
integração dos dons de Deus” (AL,122).
Também é produzida uma séria reflexão sobre o amor ao longo da vida e da sua
transformação, podendo ler-se: “Não é possível prometer que teremos os mesmos
sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projeto comum estável,
comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver
sempre uma rica intimidade” (AL,163).
V. O
amor que se torna fecundo (166-198)
O 5.º capítulo da Exortação foca-se na fecundidade, no
acolhimento duma nova vida, na espera própria da gravidez, no amor de mãe e de
pai. Mas também aborda a fecundidade alargada – da adoção, do acolhimento, do
contributo das famílias para a promoção duma “cultura do encontro”, da vida na
família em sentido amplo, com a presença de tios, primos, parentes dos parentes,
amigos. Embora não se tome em consideração a família “mononuclear”, evidencia-se
a consciência da família como rede de relações alargadas. Mesmo a mística do
sacramento do matrimónio tem um profundo caráter social (cf AL,186). E, no quadro desta dimensão social, o Papa sublinha
tanto o papel específico da relação entre jovens e idosos como a relação entre
irmãos como aprendizagem de crescimento na relação com os outros.
VI.
Algumas perspetivas pastorais (200-258)
No complexo 6.º capítulo, enunciam-se vias pastorais
que orientam para a edificação de famílias sólidas e fecundas em consonância com
o plano de Deus. Em especial, o Papa observa que “os ministros ordenados
carecem habitualmente de formação adequada para tratar dos complexos problemas
atuais das famílias” (AL,202). Se é
necessário melhorar a formação psicoafetiva dos seminaristas e envolver mais a
família na formação para o ministério (cf AL, 203), por outro lado, pode ser útil a experiência da
longa tradição oriental dos sacerdotes casados” (AL,202).
Também é feita importante referência à preparação para
o matrimónio e ao acompanhamento dos esposos nos primeiros anos da vida
matrimonial (incluindo o tema da paternidade responsável), bem como nalgumas situações complexas e, sobretudo,
de crises, sendo que “cada crise esconde uma boa notícia, que é preciso saber
escutar, afinando os ouvidos do coração” (AL,232).
Também fica tratado o acompanhamento de pessoas divorciadas,
separadas ou abandonadas e coloca-se em relevo o sofrimento dos filhos nas
situações de conflito. É reiterada a plena comunhão na Eucaristia dos
divorciados e, em relação aos divorciados recasados, é reforçada a sua comunhão eclesial e o acompanhamento das
suas situações, que não deve ser visto como debilidade da indissolubilidade do
matrimónio, mas uma expressão de caridade. São ainda referidas as situações dos
matrimónios mistos e de disparidade de culto bem como a situação das famílias que
têm dentro de si pessoas de tendência homossexual, insistindo-se no respeito
para com elas e na recusa de qualquer discriminação injusta e de todas as
formas de agressão e violência. E, no final do capítulo, vem uma especial nota
para o tema da perda das pessoas queridas e da viuvez.
VII. Reforçar
a educação dos filhos (260-290)
O 7.º capítulo é dedicado à educação dos filhos: a
formação ética, o valor da sanção como estímulo, o realismo paciente, a
educação sexual, a transmissão da fé e a vida familiar como contexto educativo.
O Papa acentua que “o que interessa acima de tudo é gerar no filho, com muito
amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de
crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia” (AL,261).
No âmbito da educação sexual, sustenta-se a sua
necessidade e formula-se a interrogação de saber se as “instituições educativas
assumiram este desafio (…) num tempo em que se tende a banalizar e empobrecer a
sexualidade”. Depois, esta educação deve ser realizada “no contexto duma
educação para o amor, para a doação mútua” (AL,280). E adverte-se que a expressão “sexo seguro”
transmite “uma atitude negativa sobre a finalidade procriadora natural da
sexualidade, como se o possível filho fosse um inimigo de que é preciso proteger-se”,
promovendo-se consequentemente a agressividade narcisista em vez do
acolhimento” (AL,283).
VIII. Acompanhar,
discernir e integrar a fragilidade (293-312)
O também complexo capítulo 8.º apela à misericórdia e
ao discernimento pastoral face a situações que não correspondem plenamente ao
que o Senhor propõe. O Papa usa três verbos significativos: “acompanhar, discernir e integrar”, que
são fundamentais para responder a situações de fragilidade, complexas ou
irregulares. Depois, apresenta a necessária gradualidade pastoral, a
importância do discernimento, as normas e circunstâncias atenuantes no discernimento
pastoral e aquela que é por ele definida como a “lógica da misericórdia
pastoral”. As situações ditas irregulares devem ter um discernimento pessoal e
pastoral e “os batizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente
devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas
possíveis”. Em especial, afirma-se numa nota de rodapé que, “em certos casos,
poderá existir também a ajuda dos sacramentos”, sendo que o confessionário não
deve ser uma sala de tortura e que a Eucaristia “não é um prémio para os
perfeitos, mas um alimento para os débeis”. E, sobre o sentido desta Exortação
Apostólica, o Papa esclarece:
“É compreensível que não se deva esperar do Sínodo ou
desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os
casos. É possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento
pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que
“o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou
efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos” (AL,300).
Francisco enuncia claramente as exigências e
caraterísticas da rota de acompanhamento e discernimento em diálogo entre fiéis
e pastores. Neste sentido, apela à reflexão da Igreja “sobre os condicionamentos
e as circunstâncias atenuantes” no que respeita à imputabilidade das ações e,
apoiando-se em S. Tomás, detém-se na relação entre normas e discernimento, declarando:
“É verdade que as normas gerais apresentam um bem que
nunca se deve ignorar nem descuidar, mas, na sua formulação, não podem abarcar
absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo, é preciso
afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum
discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria
de norma” (AL,304).
Ressalta ainda o espaço para a lógica da misericórdia
pastoral e para o pertinente convite papal nas palavras finais:
“Convido os fiéis, que vivem situações complexas, a
aproximarem-se com confiança para falar com os seus pastores ou com leigos que
vivem entregues ao Senhor. Nem sempre encontrarão neles uma confirmação das
próprias ideias ou desejos, mas seguramente receberão uma luz que lhes permita
compreender melhor o que está a acontecer e poderão descobrir um caminho de
amadurecimento pessoal. E convido os pastores a escutar, com carinho e
serenidade, com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e
compreender o seu ponto de vista, para ajudá-las a viver melhor e reconhecer o
seu lugar na Igreja (AL, 312).
IX. Espiritualidade
conjugal e familiar (314-325)
O último capítulo glosa a espiritualidade conjugal e
familiar, “feita de milhares de gestos reais e concretos” (AL,315). Diz claramente que “aqueles que têm desejos
espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do crescimento
na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor Se serve para os levar
às alturas da união mística” (AL,316).
Tudo, “os momentos de alegria, o descanso ou a festa e mesmo a sexualidade são
sentidos como uma participação na vida plena da sua Ressurreição” (AL,317). E, no parágrafo conclusivo, o Papa afirma:
“Nenhuma família é uma realidade perfeita e
confecionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da
sua capacidade de amar. (…). Todos somos chamados a manter viva a tensão para
algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver
neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! (…). Não
percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a
procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida” (AL,325).
***
Acresce
fazer referência ao facto de cada um dos 9 capítulos vir precedido de um ou mais
parágrafos introdutórios em que se aponta o tom do conteúdo e do seu sentido nas
diversas secções. Por outro lado, o aparato crítico não vem no final do
documento, mas em notas de rodapé, pelo que se torna mais fácil perceber de
imediato a complementaridade de algumas notas em relação ao texto dito
principal.
Por outro
lado, gostava de perceber em que sentido o Papa afirma que “pode ser útil a
experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados” (vd AL,202). Será pela leitura dos seus escritos,
solicitando-lhes conferências, visitando-os ou introduzindo na Igreja Latina o
instituto da ordenação sacerdotal também de homens casados?
Do
meu ponto de vista, esperava que, dada a relevância que as assembleias sinodais
tiveram na Comunicação Social, a exortação apostólica pós-sinodal tivesse sido
também endereçada a todas as pessoas de boa vontade – o que não me inibe de assinalar
a força de esperança inerente ao documento papal, até porque vem datado do dia
da Solenidade de São José, o guardião da Santa Igreja, que foi tutor do tesouro
da misericórdia no mundo e da Mãe de misericórdia.
Por
fim, como bom remate, vem a oração à Sagrada Família, que se assume como ato de
contemplação, consagração e súplica – denunciadora, esta, dos graves problemas
que afetam a vida das famílias e apoiada na esperança resultante da beleza da
família segundo o coração de Deus e da alegria do amor.
2016.04.08 – Louro de Carvalho
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