sexta-feira, 8 de abril de 2016

A alegria do amor na família

Hoje, dia 8 de abril, foi publicada, como previsto, a “Amoris Laetitia” (Alegria do Amor), a exortação apostólica pós-sinodal do Papa Francisco sobre a família. Num texto de nove capítulos, o Santo Padre recolhe os resultados de dois Sínodos dos Bispos sobre a família celebrados em 2014 e 2015, citando anteriores documentos papais, contributos de conferências episcopais e de várias personalidades. Trata-se de uma exortação apostólica dirigida aos bispos, aos presbíteros e diáconos, às pessoas consagradas, aos esposos cristãos e a todos os fiéis leigos.
É um documento de grande dimensão com 325 parágrafos e que nos primeiros 7 (à laia de introdução) evidencia a grande complexidade do tema. Em particular, Francisco sustenta que para algumas questões, “em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas”, tendo em boa conta as tradições e os desafios locais. De facto, “as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado”.
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Segue-se um bosquejo breve pelos 9 capítulos do inestimável documento pontifício, seguindo de perto, os conteúdos selecionados pela síntese apresentada pela Rádio Vaticano, embora em confronto com a leitura rápida do documento e muitas alterações.
I. À luz da Palavra (9-30)
No 1.º capítulo, o Papa faz partir a sua reflexão das Sagradas Escrituras, em especial, de uma meditação acerca do Salmo 128, caraterístico da liturgia nupcial hebraica, assim como da cristã. A Bíblia surge repleta “de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares” (AL,8).
II. A realidade e os desafios das famílias (32-57)
A partir da Bíblia, o Pontífice olha, no 2.º capítulo, para a situação atual das famílias, mantendo “os pés assentes na terra” (AL,6). A humildade do realismo ajuda a não expor “um ideal teológico do matrimónio demasiado abstrato”, sem considerar na devida conta “a situação concreta e as possibilidades efetivas das famílias tais como são” (AL,36). Sendo o matrimónio “um caminho dinâmico de crescimento e realização”, nós “somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL,37). É certo que Jesus propôs um ideal exigente, mas “não perdia jamais a proximidade compassiva junto das pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera” (AL,38).
III. O olhar fixo em Jesus: a vocação da família (61-88)
O 3.º capítulo da Amoris Laetitia aborda alguns elementos essenciais do ensinamento da Igreja acerca do matrimónio e da família. Em seus parágrafos explicita a vocação à e da família de acordo com o Evangelho, tal como ela foi percebida pela Igreja ao longo do tempo, sobretudo no atinente aos temas da indissolubilidade e da sacramentalidade do matrimónio, da transmissão da vida e da educação dos filhos. Ressaltam inúmeras citações da Gaudium et Spes (GS), do Concílio Vaticano II, da encíclica Humanae Vitae (HV), do Beato Paulo VI, e da exortação apostólica Familiaris Consortio (FC), de São João Paulo II. Francisco, no 3.º capítulo, realça ainda um princípio geral importante: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (FC,84). Porque o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos e podem existir fatores que limitem uma capacidade de decisão, “ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição” (AL,79).
IV. O amor no matrimónio (90-164)
O amor no matrimónio é ilustrado, no 4.º capítulo, a partir do “hino ao amor” de São Paulo na 1.ª Carta aos Coríntios (1 Cor 13,4-7). O capítulo glosa o caráter quotidiano do amor que se opõe a todos os idealismos: “não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter de reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a Igreja, porque o matrimónio como sinal implica um processo dinâmico que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus” (AL,122). Também é produzida uma séria reflexão sobre o amor ao longo da vida e da sua transformação, podendo ler-se: “Não é possível prometer que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projeto comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver sempre uma rica intimidade” (AL,163).
V. O amor que se torna fecundo (166-198)
O 5.º capítulo da Exortação foca-se na fecundidade, no acolhimento duma nova vida, na espera própria da gravidez, no amor de mãe e de pai. Mas também aborda a fecundidade alargada – da adoção, do acolhimento, do contributo das famílias para a promoção duma “cultura do encontro”, da vida na família em sentido amplo, com a presença de tios, primos, parentes dos parentes, amigos. Embora não se tome em consideração a família “mononuclear”, evidencia-se a consciência da família como rede de relações alargadas. Mesmo a mística do sacramento do matrimónio tem um profundo caráter social (cf AL,186). E, no quadro desta dimensão social, o Papa sublinha tanto o papel específico da relação entre jovens e idosos como a relação entre irmãos como aprendizagem de crescimento na relação com os outros.
VI. Algumas perspetivas pastorais (200-258)
No complexo 6.º capítulo, enunciam-se vias pastorais que orientam para a edificação de famílias sólidas e fecundas em consonância com o plano de Deus. Em especial, o Papa observa que “os ministros ordenados carecem habitualmente de formação adequada para tratar dos complexos problemas atuais das famílias” (AL,202). Se é necessário melhorar a formação psicoafetiva dos seminaristas e envolver mais a família na formação para o ministério (cf AL, 203), por outro lado, pode ser útil a experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados” (AL,202).
Também é feita importante referência à preparação para o matrimónio e ao acompanhamento dos esposos nos primeiros anos da vida matrimonial (incluindo o tema da paternidade responsável), bem como nalgumas situações complexas e, sobretudo, de crises, sendo que “cada crise esconde uma boa notícia, que é preciso saber escutar, afinando os ouvidos do coração” (AL,232).
Também fica tratado o acompanhamento de pessoas divorciadas, separadas ou abandonadas e coloca-se em relevo o sofrimento dos filhos nas situações de conflito. É reiterada a plena comunhão na Eucaristia dos divorciados e, em relação aos divorciados recasados, é reforçada a sua comunhão eclesial e o acompanhamento das suas situações, que não deve ser visto como debilidade da indissolubilidade do matrimónio, mas uma expressão de caridade. São ainda referidas as situações dos matrimónios mistos e de disparidade de culto bem como a situação das famílias que têm dentro de si pessoas de tendência homossexual, insistindo-se no respeito para com elas e na recusa de qualquer discriminação injusta e de todas as formas de agressão e violência. E, no final do capítulo, vem uma especial nota para o tema da perda das pessoas queridas e da viuvez.
VII. Reforçar a educação dos filhos (260-290)
O 7.º capítulo é dedicado à educação dos filhos: a formação ética, o valor da sanção como estímulo, o realismo paciente, a educação sexual, a transmissão da fé e a vida familiar como contexto educativo. O Papa acentua que “o que interessa acima de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia” (AL,261).
No âmbito da educação sexual, sustenta-se a sua necessidade e formula-se a interrogação de saber se as “instituições educativas assumiram este desafio (…) num tempo em que se tende a banalizar e empobrecer a sexualidade”. Depois, esta educação deve ser realizada “no contexto duma educação para o amor, para a doação mútua” (AL,280). E adverte-se que a expressão “sexo seguro” transmite “uma atitude negativa sobre a finalidade procriadora natural da sexualidade, como se o possível filho fosse um inimigo de que é preciso proteger-se”, promovendo-se consequentemente a agressividade narcisista em vez do acolhimento” (AL,283).
VIII. Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade (293-312)
O também complexo capítulo 8.º apela à misericórdia e ao discernimento pastoral face a situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor propõe. O Papa usa três verbos significativos: “acompanhar, discernir e integrar”, que são fundamentais para responder a situações de fragilidade, complexas ou irregulares. Depois, apresenta a necessária gradualidade pastoral, a importância do discernimento, as normas e circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral e aquela que é por ele definida como a “lógica da misericórdia pastoral”. As situações ditas irregulares devem ter um discernimento pessoal e pastoral e “os batizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis”. Em especial, afirma-se numa nota de rodapé que, “em certos casos, poderá existir também a ajuda dos sacramentos”, sendo que o confessionário não deve ser uma sala de tortura e que a Eucaristia “não é um prémio para os perfeitos, mas um alimento para os débeis”. E, sobre o sentido desta Exortação Apostólica, o Papa esclarece:
“É compreensível que não se deva esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos” (AL,300).
Francisco enuncia claramente as exigências e caraterísticas da rota de acompanhamento e discernimento em diálogo entre fiéis e pastores. Neste sentido, apela à reflexão da Igreja “sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes” no que respeita à imputabilidade das ações e, apoiando-se em S. Tomás, detém-se na relação entre normas e discernimento, declarando:
“É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem descuidar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo, é preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma” (AL,304).
Ressalta ainda o espaço para a lógica da misericórdia pastoral e para o pertinente convite papal nas palavras finais:
“Convido os fiéis, que vivem situações complexas, a aproximarem-se com confiança para falar com os seus pastores ou com leigos que vivem entregues ao Senhor. Nem sempre encontrarão neles uma confirmação das próprias ideias ou desejos, mas seguramente receberão uma luz que lhes permita compreender melhor o que está a acontecer e poderão descobrir um caminho de amadurecimento pessoal. E convido os pastores a escutar, com carinho e serenidade, com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e compreender o seu ponto de vista, para ajudá-las a viver melhor e reconhecer o seu lugar na Igreja (AL, 312).
IX. Espiritualidade conjugal e familiar (314-325)
O último capítulo glosa a espiritualidade conjugal e familiar, “feita de milhares de gestos reais e concretos” (AL,315). Diz claramente que “aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união mística” (AL,316). Tudo, “os momentos de alegria, o descanso ou a festa e mesmo a sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena da sua Ressurreição” (AL,317). E, no parágrafo conclusivo, o Papa afirma:
“Nenhuma família é uma realidade perfeita e confecionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. (…). Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! (…). Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida” (AL,325).
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Acresce fazer referência ao facto de cada um dos 9 capítulos vir precedido de um ou mais parágrafos introdutórios em que se aponta o tom do conteúdo e do seu sentido nas diversas secções. Por outro lado, o aparato crítico não vem no final do documento, mas em notas de rodapé, pelo que se torna mais fácil perceber de imediato a complementaridade de algumas notas em relação ao texto dito principal.
Por outro lado, gostava de perceber em que sentido o Papa afirma que “pode ser útil a experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados” (vd AL,202). Será pela leitura dos seus escritos, solicitando-lhes conferências, visitando-os ou introduzindo na Igreja Latina o instituto da ordenação sacerdotal também de homens casados?
Do meu ponto de vista, esperava que, dada a relevância que as assembleias sinodais tiveram na Comunicação Social, a exortação apostólica pós-sinodal tivesse sido também endereçada a todas as pessoas de boa vontade – o que não me inibe de assinalar a força de esperança inerente ao documento papal, até porque vem datado do dia da Solenidade de São José, o guardião da Santa Igreja, que foi tutor do tesouro da misericórdia no mundo e da Mãe de misericórdia.
Por fim, como bom remate, vem a oração à Sagrada Família, que se assume como ato de contemplação, consagração e súplica – denunciadora, esta, dos graves problemas que afetam a vida das famílias e apoiada na esperança resultante da beleza da família segundo o coração de Deus e da alegria do amor.

2016.04.08 – Louro de Carvalho

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