A
exortação apostólica Amoris Laetitia,
recentemente publicada, é saudada efusivamente como um documento carregado de
esperança e de luminosidade para a compreensão do que é a família cristã e do relacionamento
mais sadio dos agentes da pastoral com as pessoas e famílias cuja situação não
espelha totalmente o projeto de Deus sobre o homem e sobre a família. As coisas
são como são e, neste mundo de dialética, não há pessoas e instituições
perfeitas; e as que se aproximam da perfeição fazem vivos esforços para não decaírem.
Obviamente
que alinho com alegria com o aplauso a esta coroa exortativa que, embora saída da
pena ungida de Francisco, chega para validar o trabalho complexo das duas assembleias
sinodais sobre os desafios que hoje se apresentam às famílias, nomeadamente às
famílias cristãs, bem como à postura da Igreja e seus pastores face às pessoas
e famílias que não estão alinhas com as orientações canónicas.
Há,
no entanto, aspetos que me suscitam alguma perplexidade e interrogação. Não sei
se os bispos e, por arrastamento, o Papa estão alinhados com os ministérios da
Educação e do Ensino Superior de Portugal ou se é ao contrário, no atinente à
deficiência ou insuficiência da formação diaconal e presbiteral. Com efeito, no
parágrafo 202 da AL, no quadro das perspetivas pastorais enunciadas no capítulo
VI, pode ler-se:
“Nas
respostas às consultações promovidas em todo o mundo, ressaltou-se que os
ministros ordenados carecem, habitualmente, de formação adequada para tratar
dos complexos problemas atuais das famílias; para isso, pode ser útil também a
experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados”.
Já,
no meu primeiro comentário ao documento, escrevi:
“Gostava
de perceber em que sentido o Papa afirma que “pode ser útil a experiência da
longa tradição oriental dos sacerdotes casados” (vd AL,202). Será pela leitura
dos seus escritos, solicitando-lhes conferências, visitando-os ou introduzindo
na Igreja Latina o instituto da ordenação sacerdotal também de homens casados?”
***
Aquela
citação do parágrafo 202 da AL é antecedida do seguinte enunciado referente à
pastoral familiar:
“A
principal contribuição para a pastoral familiar é oferecida pela paróquia, que
é uma família de famílias, onde se harmonizam os contributos das pequenas
comunidades, movimentos e associações eclesiais”. A par duma pastoral
especificamente voltada para as famílias, há necessidade duma “formação mais
adequada dos presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas, catequistas e restantes
agentes pastorais”.
E
eu concordo inteiramente com estes segmentos. Eles vêm aspados, o que me faz dizer
que foram transcritos dos textos sinodais. E reconhecer o papel da paróquia
como “família de famílias” e espaço de harmonização é vantajoso, como é
positivo assinalar a necessidade duma formação mais adequada dos diversos agentes
pastorais.
Porquê,
a seguir, a alusão negativa aos ministros ordenados? Os outros (frades/freiras,
médicos, enfermeiros, psicólogos)
são competentes? Não gosto, pois, da afirmação de que “os ministros ordenados
carecem, habitualmente, de formação adequada para tratar dos complexos
problemas atuais das famílias” e estranho, por extemporânea e desenquadrada, a sugestão
do possível aproveitamento da experiência dos sacerdotes casados da Igreja
oriental. Nada disto vem aspado no texto da AL e não vejo que o Pontífice esteja
na disposição de vencer a resistência – e com força para isso – e urgir a liberdade
de opção celibatária dos sacerdotes ou, ao menos a ordenação sacerdotal de
homens casados.
Isto
faz-me recordar os tempos em que os presbíteros, depois de um tempo de exercício
das ordens, eram reconvocados para os seminários a fim de fazerem o exame de
confessor e de pregador. Eram os exames ditos trienais para testarem a prática
da formação. Por outro lado, lembra-me o nosso Ministério da Educação que, para
alegadamente corrigir e validar a formação inicial dos docentes, criou a inconstitucional
prova de conhecimentos e capacidades como condição necessária para ingresso na carreira
docente, em vez de induzir o Ministério do Ensino Superior a intervir na
formação inicial obrigando à correção de situações lacunares e promover a
adequada formação contínua.
Assim,
os bispos, a Congregação do Clero e o Papa devem, a meu ver, se a formação dos ministros
ordenados é insuficiente, dizê-lo às universidades católicas e/ou pontifícias e
aos seminários, mas não devem apregoá-lo aos quatro ventos.
Podem
objetar que é só a formação em relação às famílias. Pois, sim, que a promovam. Ademais,
já me começa a entediar a descrença na capacidade dos celibatários para
opinarem nas questões de casamento e família. Será que o médico e o enfermeiro,
para tratarem de doentes e acidentados, têm de ter estado doentes ou sofrido
acidentes? O advogado e o juiz, o engenheiro e o arquiteto, o veterinário e o tratador
de animais só o podem ser se tiverem sido partes em litigância judicial ou extrajudicial,
dispuserem de habitação adequada ou uma ponte de média dimensão na sua terra ou
terem sido criadores de gado? Ou, como dizem na minha terra, o médico só pode assistir
a parto se já tiver parido?
Ademais,
carpir misérias, insuficiências e incompetências nunca é meio de solução.
***
Já
me apraz registar o esforço formativo a montante, enunciado no parágrafo 203:
“Os
seminaristas deveriam ter acesso a uma formação interdisciplinar mais ampla
sobre namoro e matrimónio, não se limitando à doutrina. Além disso, a formação
nem sempre lhes permite desenvolver o seu mundo psicoafetivo. Alguns carregam,
na sua vida, a experiência da sua própria família ferida, com a ausência de
pais e instabilidade emocional.”
Gosto
do enunciado que vem a seguir sobre maturidade e equilíbrio e alguns meios para
os conseguirem;
“É
preciso garantir um amadurecimento durante a formação, para que os futuros
ministros possuam o equilíbrio psíquico que a sua missão lhes exige. Os laços
familiares são fundamentais para fortificar a autoestima sadia dos
seminaristas. Por isso, é importante que as famílias acompanhem todo o processo
do Seminário e do sacerdócio, pois ajudam a revigorá-lo de forma realista.
Neste sentido, é salutar a combinação de tempos de vida no Seminário com outros
de vida em paróquias, que permitam tomar maior contacto com a realidade
concreta das famílias.”
E
é pertinente a factualidade que urge as indicações anteriores:
“De
facto, ao longo da sua vida pastoral, o sacerdote encontra-se sobretudo com
famílias. A presença dos leigos e das famílias, particularmente a presença
feminina, na formação sacerdotal, favorece o apreço pela variedade e
complementaridade das diferentes vocações na Igreja”.
***
Oxalá
que esta exortação pós-sinodal seja assumida pelos agentes pastorais, apesar de
não configurar um novo ordenamento jurídico-canónico, de que aliás não se
estava à espera. Também não é doutrina nova nem a velha doutrina alterada. Mas o
seu sentido pastoral implica um maior diálogo entre a doutrina e as pessoas. Talvez
seja o momento de se passar a centrar as atenções pastorais nas pessoas e não
tanto nas leis e na doutrina, apesar da sua importância.
2016.04.09 – Louro de Carvalho
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