sábado, 9 de abril de 2016

Uma sensação de desconforto

A exortação apostólica Amoris Laetitia, recentemente publicada, é saudada efusivamente como um documento carregado de esperança e de luminosidade para a compreensão do que é a família cristã e do relacionamento mais sadio dos agentes da pastoral com as pessoas e famílias cuja situação não espelha totalmente o projeto de Deus sobre o homem e sobre a família. As coisas são como são e, neste mundo de dialética, não há pessoas e instituições perfeitas; e as que se aproximam da perfeição fazem vivos esforços para não decaírem.
Obviamente que alinho com alegria com o aplauso a esta coroa exortativa que, embora saída da pena ungida de Francisco, chega para validar o trabalho complexo das duas assembleias sinodais sobre os desafios que hoje se apresentam às famílias, nomeadamente às famílias cristãs, bem como à postura da Igreja e seus pastores face às pessoas e famílias que não estão alinhas com as orientações canónicas.
Há, no entanto, aspetos que me suscitam alguma perplexidade e interrogação. Não sei se os bispos e, por arrastamento, o Papa estão alinhados com os ministérios da Educação e do Ensino Superior de Portugal ou se é ao contrário, no atinente à deficiência ou insuficiência da formação diaconal e presbiteral. Com efeito, no parágrafo 202 da AL, no quadro das perspetivas pastorais enunciadas no capítulo VI, pode ler-se:   
“Nas respostas às consultações promovidas em todo o mundo, ressaltou-se que os ministros ordenados carecem, habitualmente, de formação adequada para tratar dos complexos problemas atuais das famílias; para isso, pode ser útil também a experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados”.
Já, no meu primeiro comentário ao documento, escrevi:
“Gostava de perceber em que sentido o Papa afirma que “pode ser útil a experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados” (vd AL,202). Será pela leitura dos seus escritos, solicitando-lhes conferências, visitando-os ou introduzindo na Igreja Latina o instituto da ordenação sacerdotal também de homens casados?”
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Aquela citação do parágrafo 202 da AL é antecedida do seguinte enunciado referente à pastoral familiar:
“A principal contribuição para a pastoral familiar é oferecida pela paróquia, que é uma família de famílias, onde se harmonizam os contributos das pequenas comunidades, movimentos e associações eclesiais”. A par duma pastoral especificamente voltada para as famílias, há necessidade duma “formação mais adequada dos presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas, catequistas e restantes agentes pastorais”.
E eu concordo inteiramente com estes segmentos. Eles vêm aspados, o que me faz dizer que foram transcritos dos textos sinodais. E reconhecer o papel da paróquia como “família de famílias” e espaço de harmonização é vantajoso, como é positivo assinalar a necessidade duma formação mais adequada dos diversos agentes pastorais.
Porquê, a seguir, a alusão negativa aos ministros ordenados? Os outros (frades/freiras, médicos, enfermeiros, psicólogos) são competentes? Não gosto, pois, da afirmação de que “os ministros ordenados carecem, habitualmente, de formação adequada para tratar dos complexos problemas atuais das famílias” e estranho, por extemporânea e desenquadrada, a sugestão do possível aproveitamento da experiência dos sacerdotes casados da Igreja oriental. Nada disto vem aspado no texto da AL e não vejo que o Pontífice esteja na disposição de vencer a resistência – e com força para isso – e urgir a liberdade de opção celibatária dos sacerdotes ou, ao menos a ordenação sacerdotal de homens casados.
Isto faz-me recordar os tempos em que os presbíteros, depois de um tempo de exercício das ordens, eram reconvocados para os seminários a fim de fazerem o exame de confessor e de pregador. Eram os exames ditos trienais para testarem a prática da formação. Por outro lado, lembra-me o nosso Ministério da Educação que, para alegadamente corrigir e validar a formação inicial dos docentes, criou a inconstitucional prova de conhecimentos e capacidades como condição necessária para ingresso na carreira docente, em vez de induzir o Ministério do Ensino Superior a intervir na formação inicial obrigando à correção de situações lacunares e promover a adequada formação contínua.
Assim, os bispos, a Congregação do Clero e o Papa devem, a meu ver, se a formação dos ministros ordenados é insuficiente, dizê-lo às universidades católicas e/ou pontifícias e aos seminários, mas não devem apregoá-lo aos quatro ventos.
Podem objetar que é só a formação em relação às famílias. Pois, sim, que a promovam. Ademais, já me começa a entediar a descrença na capacidade dos celibatários para opinarem nas questões de casamento e família. Será que o médico e o enfermeiro, para tratarem de doentes e acidentados, têm de ter estado doentes ou sofrido acidentes? O advogado e o juiz, o engenheiro e o arquiteto, o veterinário e o tratador de animais só o podem ser se tiverem sido partes em litigância judicial ou extrajudicial, dispuserem de habitação adequada ou uma ponte de média dimensão na sua terra ou terem sido criadores de gado? Ou, como dizem na minha terra, o médico só pode assistir a parto se já tiver parido?
Ademais, carpir misérias, insuficiências e incompetências nunca é meio de solução.
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Já me apraz registar o esforço formativo a montante, enunciado no parágrafo 203:
“Os seminaristas deveriam ter acesso a uma formação interdisciplinar mais ampla sobre namoro e matrimónio, não se limitando à doutrina. Além disso, a formação nem sempre lhes permite desenvolver o seu mundo psicoafetivo. Alguns carregam, na sua vida, a experiência da sua própria família ferida, com a ausência de pais e instabilidade emocional.”
Gosto do enunciado que vem a seguir sobre maturidade e equilíbrio e alguns meios para os conseguirem;
“É preciso garantir um amadurecimento durante a formação, para que os futuros ministros possuam o equilíbrio psíquico que a sua missão lhes exige. Os laços familiares são fundamentais para fortificar a autoestima sadia dos seminaristas. Por isso, é importante que as famílias acompanhem todo o processo do Seminário e do sacerdócio, pois ajudam a revigorá-lo de forma realista. Neste sentido, é salutar a combinação de tempos de vida no Seminário com outros de vida em paróquias, que permitam tomar maior contacto com a realidade concreta das famílias.”
E é pertinente a factualidade que urge as indicações anteriores:
“De facto, ao longo da sua vida pastoral, o sacerdote encontra-se sobretudo com famílias. A presença dos leigos e das famílias, particularmente a presença feminina, na formação sacerdotal, favorece o apreço pela variedade e complementaridade das diferentes vocações na Igreja”.
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Oxalá que esta exortação pós-sinodal seja assumida pelos agentes pastorais, apesar de não configurar um novo ordenamento jurídico-canónico, de que aliás não se estava à espera. Também não é doutrina nova nem a velha doutrina alterada. Mas o seu sentido pastoral implica um maior diálogo entre a doutrina e as pessoas. Talvez seja o momento de se passar a centrar as atenções pastorais nas pessoas e não tanto nas leis e na doutrina, apesar da sua importância.

2016.04.09 – Louro de Carvalho

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