Os
últimos dias foram marcados, a nível interno, além da notícia no episódio dos
“Papéis do Panamá” de algumas figuras expostas publicamente, por factos
verdadeiramente singulares, de que se destacam: a ameaça de oferta de umas
bofetadas a dois colunistas do jornal Público
por parte do então Ministro da Cultura, ora demitido e para quem já encontrado
sucessor; a presença de Mario Draghi na primeira sessão do Conselho de Estado
na era de Marcelo; e o afã legislativo sobre incompatibilidades de deputados e
membros do governo face a interesses paralelos e a reintegração no mundo do
trabalho.
Advirto
que enfaixar todos estes factos no designativo de “estranha maneira de
governar” só pode entender-se num sentido lato de governação, já que, no
sentido estrito, o Conselho de Estado não governa nem é propriamente um órgão
de soberania, mas o órgão político de consulta institucional do Presidente da
República, e legislar não é governar, mesmo que seja a o Governo a assumir
poderes legislativos.
***
É
óbvio que o então Ministro entrou em descarrilamento. E, por mais frontal que
pretenda autoapresentar-se, a tirada extraprotocolar foi mais do que cobarde,
ao usar o facebook, que muitos usam de forma cordata, mas de que muitos outros abusam
de forma verdadeiramente soez, e assumiu foros de arruaça ao pretender resolver
com um par de estalos situações polémicas de governança ou de superintendência
na administração pública. Isto sem me colocar a fazer juízos avaliativos sobre
as causas.
Pareceu-me
bem a atitude ao Primeiro-Ministro ao comentar de forma explícita a inadequação
do ministro, acentuando que em qualquer momento, mesmo à mesa de café, não podem
os ministros e secretários de Estado esquecer-se de que são membros do Governo.
Não se me afigura criticável o não ter tomado publicamente a iniciativa da
exoneração do governante: há muita forma de levar a água ao moinho. O certo é
que uma figura pública a disparatar assim (não quer dizer que os
visados sejam uns santinhos intocáveis)
não podia continuar no Governo.
Não
me parece, por outro lado, que tenham razão os comentadores que fazem uma
grande distinção para pior em confronto com outros casos de que há memória.
Todos se lembram daquele Ministro da Economia, no tempo de José Sócrates, que,
em plena sessão parlamentar, mandou da bancada do Governo umas palavras insultuosas
a um deputado do PCP, não percetíveis aos telespectadores, e pôs a mão na sua própria
testa de modo que os dois dedos extremos, daqueles que têm três falanges,
figurassem dois cornichos. O ministro acabou por solicitar a demissão por má
figura.
Também
um Ministro do Ambiente, do tempo de Cavaco Silva, se demitiu na sequência de
uma anedota sobre 25 doentes sujeitos a hemodiálise que haviam falecido devido
a uma intoxicação por alumínio, atribuída parcialmente à má qualidade da água
da rede pública, alegadamente sobrecarregada com aquele metal. Com efeito, numa
sessão pública, começou a sua intervenção com uma anedota:
“Sabem o que é que no Alentejo – em Évora, melhor dizendo –
fazem aos cadáveres das pessoas que morreram ultimamente? Levam-nos para reciclar,
para aproveitar o alumínio”.
Do
meu ponto de vista, estes casos têm um grau de desfaçatez em gravidade, pelo
menos, semelhante.
É
certo que o ex-Ministro da Cultura afrontou e insultou dois colunistas da
cátedra dum órgão de comunicação social e atropelou a liberdade de expressão.
Porém, o antigo Ministro da Economia afrontou e insultou de forma soez – em
palavras e gestos – um tribuno da cátedra da democracia, supremo poder formal (e
não de qualquer cátedra), atropelando também a liberdade de expressão do
interlocutor, que terá dito coisas de que o Ministro não gostou. E o antigo Ministro do Ambiente feriu a
dignidade humana que remanesce nos corpos enquanto cadáveres, ultrajou
brejeiramente e sem necessidade a piedade – a pietas – no sentido genuinamente religioso em que os romanos a
entendiam. Além disso, falou de gente que já não tinha voz nem vez para
oferecer o contraditório.
Perante
o exposto, digam-me qual destes terá sido o caso ais grave!
Recordo
ainda o caso de um presidente de câmara municipal, que, há dez anos, em plena
sessão da assembleia municipal, recomendou aos presidentes de junta de
freguesia que corressem à pedrada os técnicos do Ministério do Ambiente. Os
tribunais não tiveram força para o condenarem, provavelmente por falta de
testemunhas (!), talvez por ninguém estar presente na assembleia!
***
Mario
Draghi compareceu, a convite do Presidente da República, na sessão do Conselho
de Estado de 7 de abril, onde, durante uns vinte minutos, expôs a situação
económica e financeira da União Europeia, após o que respondeu aos vários
pedidos de esclarecimento dos conselheiros de Estado. Como é óbvio, não
participou na discussão propriamente dita do Conselho nem assistiu à produção
do parecer.
O
Conselheiro de Estado Francisco Louçã, neste aspeto alinhado com o Bloco de
Esquerda, considerou imprópria a sua presença por se tratar de uma
personalidade estrangeira e por assumir poder em nome da UE.
Não
me parece que tenha vindo mal ao mundo pelo facto de o convidado ser
estrangeiro e usar da palavra. Foi para isso que foi convidado por Marcelo, devido
à legítima e pertinente curiosidade deste. O Conselho de Estado é efetivamente
um órgão político, mas não legisla nem governa nem julga. Além disso, têm sido
recebidas pessoas de outros países na Assembleia da República, na Presidência
da República e em espaços do Governo a assistir a cerimónias e até a usar da
palavra. Não é isso que belisca a soberania. O que me parece impróprio é o
facto de Draghi, em vez de se ter cingido aos aspetos técnicos, ter produzido
juízos políticos, como o de que o Governo anterior fez um bom trabalho, cabendo
a este não voltar atrás e sugerindo o sentido que as reformas deveriam seguir.
Ora, se já estamos cansados da pressão da Comissão Europeia e das suas
Direcções-Gerais, bem como do afunilamento imposto pelos ministros do Eurogrupo,
é óbvio que a presença do presidente do BCE tinha de ser agastante para quem
tem outra ideia do rumo por que o país deve enveredar.
***
No
atinente ao afã legislativo acima aludido, há aspetos preocupantes.
Em
primeiro lugar, torna-se arriscado legislar em cima de um facto controverso.
Não sei se com o projeto de legislação que se encontra sobre a mesa, casos como
o de Albuquerque se evitariam mesmo. Se a subcomissão de ética não vê nele
nenhuma falta de ética, como é que se atrevem os deputados a legislar sobre
tema neutro em termos éticos. A lei não contém toda a ética, mas não pode
ultrapassar a ética.
Por
outro lado, querer impedir, por via legislativa, que um membro do Governo possa
prestar serviço em lugar que tutelou implica inibições muito sérias, pois, por
exemplo, um governante (ministro ou secretário de Estado) que tutelou a pasta da educação
não poderia voltar a ser professor no imediato, o que tutelou a pasta do Ensino
Superior não poderia voltar já às aulas na Universidade ou no Politécnico ou o médico
tinha de esperar para retornar ao Hospital ou Centro de Saúde e o magistrado,
que foi ministro da Justiça, teria de aguardar com paciência para regressar aos
tribunais. Concordo que a reintegração dos ex-governantes em situações problemáticas
seja escrutinada pela Comissão Parlamentar dos Assuntos Constitucionais ou comissão
com atribuições equivalentes, no discernimento entre direitos e periculosidade para
o bem público.
Proibir
o exercício de deputado a membro de sociedade de advogados e a sociedade de
advogados que defendam, em litigância, interesses contra o Estado ou a seu favor
é justo. Mas não é aqui que está o pior mal. É a entrega da produção
legislativa material a sociedades e a particulares, sobretudo com interesses diretos
ou indiretos nas matérias. Porque não dotar o Estado de quadros suficientes para
a preparação da produção legislativa, embora dando lugar à colaboração das Universidades
públicas em matérias em que elas não sejam parte interessada?
Quanto
ao mais, exigir a exclusividade do cargo de deputado (o
de membro do Governo sim, mas sem exceções)
é retirar da política gente que poderia ser útil e é engrossar a mediocridade. É
que esta deve ser encarada como missão à causa pública.
O
que se deve é exigir a escrupulosa declaração de rendimentos dos titulares de cargos
públicos, bem como a declaração de interesses e, sobretudo, fiscalizar os instrumentos
de registo. E nunca se deve tapar o sol com a peneira, mas evitar todos os
efeitos perversos da legislação produzida à pressa.
2016.04.10 – Louro de Carvalho
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