sábado, 23 de abril de 2016

Não sei se quero o “cartão de cidadania”…

Quero, sim, “um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa” (CRP, art.º 2.º).
Quero, sim, que “todos os cidadãos” (em que, por razões semânticas, estão incluídas todas as cidadãs) “gozem dos direitos” e estejam “sujeitos aos deveres consignados na Constituição” (cf CRP, art.º 12.º/1).
Quero, sim, que se observe escrupulosamente o princípio da igualdade que, em formulação positiva, estabelece que “todos os cidadãos” (em que, por razões semânticas, estão incluídas todas as cidadãs) “têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” (CRP, art.º 13.º/1); e, em enunciação pela negativa de não discriminação, preceitua que “ninguém” (pronome indefinido que significa nenhuma pessoa – homem ou mulher) pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (CRP, art.º 13.º/2).
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Face ao ordenamento político-constitucional, pergunto-me por que motivo as nossas forças políticas centram a sua atenção em aspetos não essenciais como esta última da pretensão da mudança (ou da rejeição da mudança) da designação de “cartão de cidadão”, para a de “cartão de cidadania”. Não seria melhor preocuparem-se a sério com as graves questões da saúde, da maternidade e da paternidade em prol do aumento da natalidade, da educação verdadeiramente equânime e inclusiva, da segurança física e social, da democracia interna das instituições (sobretudo da Assembleia da República e partidos), da equidade salarial e do acesso equitativo aos cargos de direção na administração pública, empresarial, societária, associativa e fundacional?
Querem o “Bloque (?) de Esquerda” e alguns ilustres “membres” (?) do PS mudar a gramática portuguesa por lei, decreto-lei, resolução parlamentar? Ora, a gramática tem um peso de séculos, peso que lentamente se vai diluindo ou aumentando conforme o dinamismo que a respetiva comunidade linguística for determinando. E, mais do que a vertente normativa, vale como prática e como objeto de estudo e respeito a sua vertente descritiva – imensamente maior, mais significativa e mais interessante que a vertente normativa. A vertente normativa é residual em gramática e orienta-se para o registo de língua cuidada a utilizar na relação social e nas relações entre e com os órgãos de soberania e entre e com as administrações (pública, empresarial, societária, associativa e fundacional, bem como nas instâncias educativas e científicas e em fóruns culturais). De resto, só a ortografia é que se muda por “decreto” (ou normativo legalmente equipolente). Além disso, a nossa gramática é bastante equilibrada no domínio do vocabulário denotativo de género. E ainda temos resquícios do neutro latino e grego em: isto, isso, aquilo, algo (alguma coisa), al (outra coisa). E, embora o neutro fosse para as palavras designativas dos seres assexuados ou em que o sexo não era visível a olho nu, em breve tudo se baralhou.
No registo civil, o assento de nascimento rezava que tinha nascido “um indivíduo do sexo masculino” ou “um indivíduo do sexo feminino”, conforme o caso. Porém, nalgumas comunidades, fazia-se a distinção entre ter encontrado “um indivíduo” ou ter encontrado “uma indivídua”. E, se o censo referia que uma freguesia tinha “mil habitantes”, dizia-se também que a paróquia tinha “mil almas” – sempre mil pessoas!
Temos os dois géneros em: o povo, a multidão, o conselho, a assembleia, a câmara, o executivo, a grei, o rebanho, a Igreja, o Congresso, os pais (pai e mãe), tropa, exército, marinha, aviação, polícia, guarda, magistratura… Na pessoa humana, temos o corpo e a alma; a cabeça e o coração; os braços e as pernas; as mãos e os pés, o peito e a barriga… Na planta, temos a raiz, o caule (tronco, se for árvore), folha, flor e fruto. Mas também: copa, fruta, ramagem, ramo, vara, maravalha…Na toponímia temos a rua, a avenida, o largo, o beco, a alameda, a praça, a travessa, o pátio, o bairro, o cruzamento, o entroncamento…
Até houve palavras que mudaram de género, por exemplo, mar e fim, que eram femininos e passaram a masculinos. E há palavras que no latim eram masculinas e passaram ao português como masculinas, por exemplo cor, dor e flor… (color, dolor, flos); e os nomes de árvores, que eram geralmente femininos, no latim, passaram a masculinos e femininos no português, por exemplo, quercus, pinus significam respetivamente carvalho e pinheiro, mas malus e pirus significam respetivamente macieira e pereira.
Toda a gente sabe que um par ou um casal de pessoas é constituído por um homem e uma mulher, um rapaz e uma rapariga, um menino e uma menina – ou então por duas pessoas do mesmo sexo. Se querem colocar no feminino como fazem os espanhóis, chamem-lhes parelha (“pareja”), como temos para dois animais, macho e fêmea ou dois animais do mesmo sexo.
Frequentemente, a palavra homem abrange o ser humano independentemente do sexo. Não obstante, se queremos especificar, dizemos o varão e a mulher, o cavalheiro e a dama, o senhor e a senhora, o dom e a dona. Porém, ninguém se incomoda por ser vítima, testemunha, criança, criatura, membro… (masculino ou feminino), mas não queremos ser tratados por animal, besta, fera, rês, cria, cavalgadura… (masculino ou feminino, pela conotação negativa que comportam). E temos os nomes comuns de dois, como jovem, adolescente, estudante, nubente, constituinte…
Assim sendo, não percebo por que razão as senhoras não querem ser “juízas”, mas “juízes”, “estudantas”, “presidentas” (como se dizia nalgumas terras), mas estudantes e presidentes. Porém, querem ser infantas e até parentas. Não querem ser poetisas, mas poetas; não querem ser embaixatrizes (mas embaixadoras, porque as embaixatrizes são as esposas dos embaixadores), mas são atrizes e não atoras e se forem monarcas tanto são rainhas e imperatrizes se forem mulheres do rei e do imperador como se exercerem elas mesmas o poder, não querendo, neste caso, ser reias ou imperadoras. E as mulheres ficam em inferioridade aquando do divórcio: todas e todos dizem, a (minha) ex-mulher e o ex-marido, e ninguém diz, o (meu) ex-homem.
Aliás, houve alguma dificuldade em acertar com a designação a atribuir à mulher que chefie um ministério. Vasco Gonçalves, falando de Maria de Lourdes Pintasilgo, chegou a referir-se-lhe como o Ministro dos Assuntos Sociais. Consta que Leonor Beleza só aceitara a pasta se fosse designada por “Ministra” e não por “Ministro”. E a exigência veio para ficar. No entanto, toda a gente sabe que nalgumas comunidades religiosas femininas havia a irmã ministra.
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O BE apresentou na Assembleia da República uma proposta de resolução parlamentar a recomendar ao Governo que determine que o cartão de cidadão passe a chamar-se cartão de cidadania. É um preciosismo que nada acrescenta nem à mudança gramatical nem aos preceitos constitucionais (que estipula a igualdade de direitos e de deveres) e, sobretudo, ao panorama económico, social e político de desigualdade que o país apresenta e com o qual se confronta no quotidiano. Não aplaudo, por desnecessário e até piroso, mas não me oponho, por não vir daí mal ao mundo. Porém, pedia mais alterações, como de: estatuto do aluno para estatuto da alunagem; ordem dos advogados, dos arquitetos, dos engenheiros, dos médicos, dos farmacêuticos, dos enfermeiros, dos médicos dentistas, dos contabilistas certificados e similares… para ordem, respetivamente, de advocacia, de arquitetura, de engenharia, de medicina, de farmácia, de enfermagem, medicina dentária, de contabilidade certificada; sindicato dos médicos, dos bancários, dos juízes, dos professores, dos enfermeiros… para sindicato, respetivamente, de medicina, de banca, de justiça, de educação, de enfermagem…
Os defensores da proposta do BE alegam que o nome do documento “não respeita a identidade de género”, enquanto os adversários ridicularizaram a ideia de o Governo já ter admitido pô-la em prática e com o apoio de alguns deputados socialistas.
A deputada socialista Elza Pais, que preside à Subcomissão para a Igualdade, acha “um horror a forma como ridicularizaram a proposta” e sustenta, a título pessoal, que “quem ridiculariza a proposta é quem ainda não percebeu a importância e a força que a linguagem tem na definição da nossa visão do mundo”. O PS, do seu lado, ainda não definiu uma posição oficial, mas já se viu que a proposta do BE tem adeptos na bancada socialista. Assim, Isabel Moreira defende que “a troça que tem sido feita sobre esta iniciativa comprova a sua importância”, sendo que “as palavras têm muito peso”. 
Porém, outros alinham com Edite Estrela, que declara que “há problemas mais importantes para resolver” e que “os custos que daí resultam não justificam esse investimento e o esforço que isso implicará”. A deputada socialista considera que a atual designação já corresponde a uma tentativa de não hipervalorizar o masculino e que “já é uma linguagem inclusiva e mais neutra”. 
O deputado socialdemocrata e ex-líder da JSD Duarte Marques junta-se aos críticos e considera a proposta “ridícula”.  Porém, as críticas vieram também do lado do CDS pela voz do deputado Abel Baptista que entende que propostas como esta prejudicam a imagem da classe política, aduzindo: “Depois queixem-se que os cidadãos não levem a sério os políticos”. 
Por mim, os custos não afligiriam se valesse a pena nem são relevantes dado que a designação se aplicaria apenas aos novos cartões a emitir. Mas, embora entenda Edite Estrela, não alinho com ela em classificar cidadão, homem e similares como linguagem neutra, mas, sim, inclusiva.
Mas, se querem ser coerentes os patrocinadores da proposta do BE, alterem pelo menos o artigo 2.º da lei do cartão de cidadão (perdão, de cidadania) para: “… contém os dados de cada cidadão ou de cada cidadã relevantes…”. E, por favor e amor à democracia, não digam mais “senhoras e senhoras deputados” e “senhores ministros”, mas “senhoras deputadas e senhores deputados” e “senhoras ministras e senhores ministros”. Já agora, não se sujeitam à regra da ordem: as senhoras, primeiro. E nunca digam: Senhores Membres de Governança! (Abaixe ê eanisme!).
Não será tempo de ganharmos mesmo um bocadinho de juízo, deixando de falar em portugueses e portuguesas como que a imitar o Papa, os bispos e os padres a dizer irmãos e irmãs…?

2016.04.23 – Louro de Carvalho

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