quinta-feira, 28 de abril de 2016

Indicações de Aquilino sobre a Língua Portuguesa (I)

Além de cultor e burilador da língua portuguesa, Mestre Aquilino Ribeiro não deixa de formular oportunas indicações sobre o nosso idioma. Vasco Botelho do Amaral, em Estudos de Apoio ao Português (Almedina: 1976), regista pertinentes excertos da lição que Aquilino publicou no jornal O Século, de 25 de maio de 1949. Respigam-se as ideias consideradas mais relevantes.
Antes de mais, aborda-se a questão da corruptibilidade da língua. Os filólogos apontam-na e Botelho o Amaral batia-se contra ela com a competência e porfia de um Pedro Eremita.
Aquilino admite que não se corrompa no sentido tórpido da palavra “corrupção”, mas no do abastardamento perpetrado pela abundância de barbarismos e solecismos, graças à ignorância de muitos que fizeram da língua o seu ganha-pão. Na verdade, “escrever exige uma demora, uma disciplina que não se compadece com a lufa-lufa moderna e a restrita paciência que é contar hoje em dia para a obra pura do espírito”. Contra a mecanização generalizada, a arte das letras “é obra de técnica manual” similar do “obrar do marfim” ou do tear – “o tear de Penélope e das nossas avós” – o “daquelas belas teias de linho em que nascia, noivava, morria uma geração”, ficando ainda “pano para lavar e durar”. Por outro lado, o nosso idioma fica bastante desarmado face ao fenómeno de intercomunicação de idioma para idioma, sobretudo no atinente à terminologia científica e industrial (hoje acrescentar-se-ia a tecnologia e a linguagem económico-financeira). Refere o Mestre que o “automóvel, a rádio” (e a televisão, acrescente-se), a eletricidade e eletrónica “trouxeram um aluvião de vocábulos, que a nossa língua aceitou de boamente sem aproveitar de nenhuma espécie de reciprocidade nem os submeter a visto das academias”.
No entanto, não é de somenos importância salientar que também dentro do corpus linguístico, sem considerar aquele “joio”, “propagado por todos os ventos bravos da internacionalidade”, haverá muito que sanear”, sendo necessário impedir que “a imperícia do mau escriba e o pechisbeque do iconoclasta” conspurquem a língua portuguesa.
Depois, sustenta que “de todos os patrimónios comuns”, o da língua “é sem dúvida o mais lídimo e precioso”. E justifica:
“A língua não se perde. Essa resiste a todas as vicissitudes; é eterna tanto quanto de infinito pode caber nos nossos cálculos falíveis. Acabou a Hélade, feita de graça; ficou o grego. Acabou o império romano, que parecia amassado de bronze; ficou o latim. Com sobrada razão, a obra escrita de hoje oferece pela natureza dos materiais empregados e sua irradicação uma resistência maior aos estragos do tempo que o papiro ou as tabuletas em que os antigos nos legaram as maravilhas do seu pensamento. Deve partir-se do princípio, no entanto, de que hoje as nacionalidades não corram menos risco que no pretérito. Não esteve na iminência de soçobrar a Alemanha sábia e orgulhosa? Mas, supondo que era riscada do mapa e os seus habitantes dispersos pelo Mundo, perduraria o idioma de Schiler, de Goethe, de Kant, enquanto raiasse na terra a luz do entendimento.”.
E, salientando o papel identificador, testemunhal e documental da língua, declara:
Por isso, o idioma, que envolve a prova máxima de que se é gente, se teve personalidade, se desempenhou um papel no mundo, tem de ser cuidado, velado como as coisas mas sagradas e vitais, tanto como a água das fontes, a pureza do ar que respiramos, a segurança do teto que nos serve de domicílio”.
Porém, o escritor altibeirão arrisca mesmo uma definição da língua:
“A língua é a vestidura do pensamento, consoante a definição imediata. Mas trata-se de uma vestidura de espécie singular, que tem por objeto não esconder, mas antes revelar, tal uma musselina, o fantasma cuja nudez sem ela seria invisível. Para isso, é necessário que ela se modele sobre o pensamento, acusando seus refolhos e contornos, com exata medida e propriedade. Se é longa demais, abafa-o; se apertada, contrafá-lo; se os plissados são totós, desfeia-o. A vestidura tem de ser diáfana e fúlgida, e tecida – pois se trata de sons ou sinais – de palavras que não leve o vento.”.
Sendo assim, há que ter em conta a relevância da ciência da linguagem e da necessidade de, à sua luz, conhecer, descrever e utilizar a língua.
“Para quem conhece e pratica o código gramatical, que é mais que o enfaixe da múmia, a sinalização estabelecida não deixa errar caminho. Quando se escreve corretamente, por via de regra, pensa-se com justeza. Pelo menos, não se é tão suscitável de erro, quer se faça com mais ou menos profundidade.”. 
Por consequência, Aquilino entende que “por todas as razões devemos à língua em que estão vazadas as obras imortais de Camões, de Gil Vicente, de João de Barros, de Herculano, de Camilo e de Eça, a mais moderada vénia”.
***
Também não é despiciendo o entendimento que Aquilino Ribeiro mostra na peça prefacial ao Dicionário de Calão, de Albino Lapa (1959), pela reflexão que faz sobre a língua portuguesa.
Em primeiro lugar, reconhece não ter a competência necessária ao apadrinhamento do novel dicionário:
“Que pena eu tenho de não ser um escritor no género de Francis Carco só para me arvorar competente padroeiro do trabalho que me anuncia! Em verdade, sou um escritor circunspecto e pompier.”.
Acusa o tom dos críticos ao cultor das belas letras:
“Há quem jure que me tem visto de noite, vestido, como um alquimista, de balandrau preto, óculos pretos, e uma lupa de bom aumento, sobre os palimpsestos da língua, à procura de termos arrevesados, visigóticos, turdetanos, com que rechear os meus romances de tamancos e crossa de junco”.
E justifica-se:
“Ora quem anda por estas paragens alpestres do idioma ignora por força o vocábulo vitil, conciso, trocista, de emprego restrito, que se acoitou sob a capa do tuno e a esclavina de bandoleiro, e os lexicógrafos remetem, se lhes vem ao gadanho, ao cemitério da língua. Pois é ao conjunto desses termos, tidos por espúrios, bastardos e adulterinos, que chamam gíria, nome que soa a detestável galdéria.”.
Reconhece não ter capacidade neste âmbito do calão ou da gíria, a não ser naquele sentido em que até se acha graça ao que é agramatical e imoral:
“Que pena, repito, eu tenho de ser um leigo em tal léxico para agora aqui ter voz ativa e circunstanciada! Em todo o caso, eu lhe digo francamente, nada me extasia mais que uma dessas frases irreverentes condenadas pela gramática, se não pela moral, em nome dos bons costumes. Uma dessas frases que estalam e repicam como os chicotes antigos para caleças puxadas a seis cavalos, que golpeavam o ar, e curveteando em espiral de dois centros, despediam um estalido sonoro que uma nota de Caruso!”.
Depois, expõe a sua ótica sobre a origem do calão enquanto forma de defesa e protesto:
“O calão, a meu ver, começou por ser uma linguagem de defesa do fraco contra o poderoso, do preso contra o carcereiro e algoz, do conspirador contra o juiz e o tirano. Que procurasse tornar-se criptográfica o mais possível, é lógico. Que acabasse por tornar-se parasita, está também na derivação das coisas humanas.”.
Assinala a limitação natural da língua portuguesa para a prolixidade verbal, embora com vantagem, fazendo notar o género de trabalho dos escritores portugueses:
“A nossa língua, porém, não chegou à fase de maturidade léxica para que medre em si semelhante superfetação à maneira dos cogumelos gigantescos, chamados vacas, que crescem no toro dos velhos castanheiros. Tal luxo é para o inglês, o francês, em que o pensamento, desde o mais imediato ao mais subtil, encontra fácil e cansada expressão. Nós, os escritores portugueses, estamos a escrever e a fazer a língua, como um amassador de pão a tender a massa para a fornada. O idioma escrito que herdámos não podia ser mais retórico e chorão, talhado para pregadores, poetas e escrivães da louvaminha.”
Por isso, ressalta o papel dos escritores que Aquilino denomina de naturalistas e entre os quais ele se conta:
“Da fala popular, a boa, a viva, quem se importava com ela? Nós, pobres obreiros naturalistas, andamos a recensear esta e dar volta àquela, de forma a arranjarmos uma língua apta, como um razoável clavicórdio, a interpretar as desvairadas árias da vida. Repare como é avessa a exprimir o subjetivo, o metafísico, o matemático! Por isso, a mim, que sou um cabouqueiro da língua, que me aproveito de todos os materiais, inclusive das palavras perdidas ou desdenhadas dos puristas, graças às quais o estilo alcança caráter se não originalidade, palavras essas semelhantes às pedras que os alvenéis chamam rebos, porventura rebus, de res no ablativo, caso que poderíamos classificar de pau para toda a colher dada a sua amplitude morfológica, me acoimam de calcetar o discurso com palavras raras.”.
No entanto, confessa que teve familiaridade pessoal com o ambiente em que ressalta o calão:
“Todavia, eu as ouvi, que não li nos cartapácios. E sempre que uma dessas palavras vivas, que não andam pelos cafés de Lisboa e significam movimento, ação, emoção particular, embora confinadas às portelas provinciais, aparece na minha prosa, com certeza que não representa valo que se não salte sem socorro do dicionário.”.
Depois, dá algumas indicações sobre o calão e como entrou na comunidade linguística:
“Mas onde eu vou?! O calão será pois tudo aquilo. Linguagem secreta, arbitrária e parasita. Completamente parasita, não, pois que atende a uma necessidade. Mas tenha-se como irmã enjeitada da saborosa linguagem popular que os senhores filólogos, tal aquele bom Silvestre Silvério, deixam à porta, por chula, indecente e má figura. Todavia, sem alvará destes argos, contra o respeito devido aos manes dos Vieiras e Castilhos, ela vai entrando, posto que à capucha. Entra como o João da Rua a dar o seu recado ao João de Espera em Deus. E vai anotando o que se passa na roda dos golfos, a quem servem, desde que o mundo é mundo, rasos filantes e toda a espécie de guitas. No tempo em que havia cordanta, muitos mecos que a falavam acabariam a espernear.”.
E acredita que Albino Lapa, como Aquilino e qualquer pessoa que pertença ao povo, sabe do calão, ao menos por ouvido, pelo que o calão terá o seu lugar de direito na língua:
“Adiante, Jorge Ferreira de Vasconcelos é mais denso que isto. O Garoto de Lisboa vem tauxiado desta vidraria policrómica. Ouvia-a nos meus tempos de rapaz nos tascos de camareiras ao Poço de Almas. Decerto, você, Albino Lapa, percorreu estas e melhores tavolagens; enfronhou-se por outros becos; adiantou o pé até as alfurjas do Alfama antes de saneadas pelos higienistas do folclore a cal e água de cheiro. Faço votos para que alcance carta foral para o calão.”.
Inscreve a formação do calão no quadro da multiplicidade dos processos de formação da língua:
“A língua formou-se de mil maneiras, havendo-se destilado em alambiques de vária ordem. Quem diria que ‘suis pes’ resultava em chispe, lux quae fugit’ em lusco-fusco, ‘callis angusta em cangosta’? Como acertou a dar-se o termo ‘papo-seco’ aos pães pequeninos do almoço, feitos de pretensa farinha-flor? E ‘girinho’ a qualquer traste bonito e agradável? E que dizer do ‘trafulha’ aplicado como denominador comum, universal, ao bicho que culmina e abarrota a praça neste ano de graça? Todos os caminhos vão dar a Roma, como todas as palavras e expressões confluem à boa economia do idioma desde que representem uma modalidade nova, aceno imprevisto de psique, reflexo inédito do espírito, cada vez mais fosfórico e exigente.”.
Finalmente, o incentivo e a expressão da função enditante do calão, mesmo que os glossaristas não achem bem:
“Estou convencido de que o seu trabalho contribuirá para enriquecimento da locução, quer em artigo de vozes realistas, quer em falhas do vocabulário e em colorido, por isso toco o meu rouxinol como um sinaleiro ao ver-lhe adiantar o calcante: Senhores glossaristas, alto aí! Passe lá vossemecê!”.
E os dicionaristas lá vão dicionarizando palavras que dantes eram proscritas da linguagem dita das pessoas decentes…

2016.04.28 – Louro de Carvalho

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