Além
de cultor e burilador da língua portuguesa, Mestre Aquilino Ribeiro não deixa
de formular oportunas indicações sobre o nosso idioma. Vasco Botelho do Amaral,
em Estudos de Apoio ao Português (Almedina:
1976), regista
pertinentes excertos da lição que Aquilino publicou no jornal O Século, de 25 de maio de 1949.
Respigam-se as ideias consideradas mais relevantes.
Antes
de mais, aborda-se a questão da corruptibilidade da língua. Os filólogos apontam-na
e Botelho o Amaral batia-se contra ela com a competência e porfia de um Pedro
Eremita.
Aquilino
admite que não se corrompa no sentido tórpido da palavra “corrupção”, mas no do
abastardamento perpetrado pela abundância de barbarismos e solecismos, graças à
ignorância de muitos que fizeram da língua o seu ganha-pão. Na verdade,
“escrever exige uma demora, uma disciplina que não se compadece com a lufa-lufa
moderna e a restrita paciência que é contar hoje em dia para a obra pura do
espírito”. Contra a mecanização generalizada, a arte das letras “é obra de
técnica manual” similar do “obrar do marfim” ou do tear – “o tear de Penélope e
das nossas avós” – o “daquelas belas teias de linho em que nascia, noivava,
morria uma geração”, ficando ainda “pano para lavar e durar”. Por outro lado, o
nosso idioma fica bastante desarmado face ao fenómeno de intercomunicação de
idioma para idioma, sobretudo no atinente à terminologia científica e
industrial (hoje acrescentar-se-ia a tecnologia e a linguagem
económico-financeira).
Refere o Mestre que o “automóvel, a rádio” (e a televisão,
acrescente-se), a
eletricidade e eletrónica “trouxeram um aluvião de vocábulos, que a nossa
língua aceitou de boamente sem aproveitar de nenhuma espécie de reciprocidade
nem os submeter a visto das academias”.
No
entanto, não é de somenos importância salientar que também dentro do corpus linguístico, sem considerar
aquele “joio”, “propagado por todos os ventos bravos da internacionalidade”,
haverá muito que sanear”, sendo necessário impedir que “a imperícia do mau
escriba e o pechisbeque do iconoclasta” conspurquem a língua portuguesa.
Depois,
sustenta que “de todos os patrimónios comuns”, o da língua “é sem dúvida o mais
lídimo e precioso”. E justifica:
“A
língua não se perde. Essa resiste a todas as vicissitudes; é eterna tanto
quanto de infinito pode caber nos nossos cálculos falíveis. Acabou a Hélade,
feita de graça; ficou o grego. Acabou o império romano, que parecia amassado de
bronze; ficou o latim. Com sobrada razão, a obra escrita de hoje oferece pela
natureza dos materiais empregados e sua irradicação uma resistência maior aos
estragos do tempo que o papiro ou as tabuletas em que os antigos nos legaram as
maravilhas do seu pensamento. Deve partir-se do princípio, no entanto, de que
hoje as nacionalidades não corram menos risco que no pretérito. Não esteve na
iminência de soçobrar a Alemanha sábia e orgulhosa? Mas, supondo que era
riscada do mapa e os seus habitantes dispersos pelo Mundo, perduraria o idioma
de Schiler, de Goethe, de Kant, enquanto raiasse na terra a luz do
entendimento.”.
E,
salientando o papel identificador, testemunhal e documental da língua, declara:
“Por isso, o
idioma, que envolve a prova máxima de que se é gente, se teve personalidade, se
desempenhou um papel no mundo, tem de ser cuidado, velado como as coisas mas
sagradas e vitais, tanto como a água das fontes, a pureza do ar que respiramos,
a segurança do teto que nos serve de domicílio”.
Porém,
o escritor altibeirão arrisca mesmo uma definição da língua:
“A
língua é a vestidura do pensamento, consoante a definição imediata. Mas
trata-se de uma vestidura de espécie singular, que tem por objeto não esconder,
mas antes revelar, tal uma musselina, o fantasma cuja nudez sem ela seria
invisível. Para isso, é necessário que ela se modele sobre o pensamento,
acusando seus refolhos e contornos, com exata medida e propriedade. Se é longa
demais, abafa-o; se apertada, contrafá-lo; se os plissados são totós,
desfeia-o. A vestidura tem de ser diáfana e fúlgida, e tecida – pois se trata
de sons ou sinais – de palavras que não leve o vento.”.
Sendo
assim, há que ter em conta a relevância da ciência da linguagem e da
necessidade de, à sua luz, conhecer, descrever e utilizar a língua.
“Para
quem conhece e pratica o código gramatical, que é mais que o enfaixe da múmia,
a sinalização estabelecida não deixa errar caminho. Quando se escreve
corretamente, por via de regra, pensa-se com justeza. Pelo menos, não se é tão
suscitável de erro, quer se faça com mais ou menos profundidade.”.
Por
consequência, Aquilino entende que “por todas as razões devemos à língua em que
estão vazadas as obras imortais de Camões, de Gil Vicente, de João de Barros,
de Herculano, de Camilo e de Eça, a mais moderada vénia”.
***
Também
não é despiciendo o entendimento que Aquilino Ribeiro mostra na peça prefacial
ao Dicionário de Calão, de Albino
Lapa (1959), pela reflexão que faz sobre a
língua portuguesa.
Em primeiro lugar, reconhece não
ter a competência necessária ao apadrinhamento do novel dicionário:
“Que
pena eu tenho de não ser um escritor no género de Francis Carco só para me
arvorar competente padroeiro do trabalho que me anuncia! Em verdade, sou um
escritor circunspecto e pompier.”.
Acusa o tom dos críticos ao
cultor das belas letras:
“Há
quem jure que me tem visto de noite, vestido, como um alquimista, de balandrau
preto, óculos pretos, e uma lupa de bom aumento, sobre os palimpsestos da
língua, à procura de termos arrevesados, visigóticos, turdetanos, com que
rechear os meus romances de tamancos e crossa de junco”.
E justifica-se:
“Ora
quem anda por estas paragens alpestres do idioma ignora por força o vocábulo
vitil, conciso, trocista, de emprego restrito, que se acoitou sob a capa do
tuno e a esclavina de bandoleiro, e os lexicógrafos remetem, se lhes vem ao
gadanho, ao cemitério da língua. Pois é ao conjunto desses termos, tidos por
espúrios, bastardos e adulterinos, que chamam gíria, nome que soa a detestável
galdéria.”.
Reconhece não ter capacidade
neste âmbito do calão ou da gíria, a não ser naquele sentido em que até se acha
graça ao que é agramatical e imoral:
“Que
pena, repito, eu tenho de ser um leigo em tal léxico para agora aqui ter voz
ativa e circunstanciada! Em todo o caso, eu lhe digo francamente, nada me
extasia mais que uma dessas frases irreverentes condenadas pela gramática, se
não pela moral, em nome dos bons costumes. Uma dessas frases que estalam e
repicam como os chicotes antigos para caleças puxadas a seis cavalos, que
golpeavam o ar, e curveteando em espiral de dois centros, despediam um estalido
sonoro que uma nota de Caruso!”.
Depois, expõe a sua ótica sobre a
origem do calão enquanto forma de defesa e protesto:
“O
calão, a meu ver, começou por ser uma linguagem de defesa do fraco contra o poderoso,
do preso contra o carcereiro e algoz, do conspirador contra o juiz e o tirano.
Que procurasse tornar-se criptográfica o mais possível, é lógico. Que acabasse
por tornar-se parasita, está também na derivação das coisas humanas.”.
Assinala a limitação natural da
língua portuguesa para a prolixidade verbal, embora com vantagem, fazendo notar
o género de trabalho dos escritores portugueses:
“A
nossa língua, porém, não chegou à fase de maturidade léxica para que medre em
si semelhante superfetação à maneira dos cogumelos gigantescos, chamados vacas,
que crescem no toro dos velhos castanheiros. Tal luxo é para o inglês, o
francês, em que o pensamento, desde o mais imediato ao mais subtil, encontra
fácil e cansada expressão. Nós, os escritores portugueses, estamos a escrever e
a fazer a língua, como um amassador de pão a tender a massa para a fornada. O
idioma escrito que herdámos não podia ser mais retórico e chorão, talhado para
pregadores, poetas e escrivães da louvaminha.”
Por isso, ressalta o papel dos
escritores que Aquilino denomina de naturalistas e entre os quais ele se conta:
“Da
fala popular, a boa, a viva, quem se importava com ela? Nós, pobres obreiros
naturalistas, andamos a recensear esta e dar volta àquela, de forma a
arranjarmos uma língua apta, como um razoável clavicórdio, a interpretar as
desvairadas árias da vida. Repare como é avessa a exprimir o subjetivo, o
metafísico, o matemático! Por isso, a mim, que sou um cabouqueiro da língua,
que me aproveito de todos os materiais, inclusive das palavras perdidas ou
desdenhadas dos puristas, graças às quais o estilo alcança caráter se não
originalidade, palavras essas semelhantes às pedras que os alvenéis chamam
rebos, porventura rebus, de res no ablativo, caso que poderíamos
classificar de pau para toda a colher dada a sua amplitude morfológica, me
acoimam de calcetar o discurso com palavras raras.”.
No entanto, confessa que teve
familiaridade pessoal com o ambiente em que ressalta o calão:
“Todavia,
eu as ouvi, que não li nos cartapácios. E sempre que uma dessas palavras vivas,
que não andam pelos cafés de Lisboa e significam movimento, ação, emoção
particular, embora confinadas às portelas provinciais, aparece na minha prosa,
com certeza que não representa valo que se não salte sem socorro do dicionário.”.
Depois, dá algumas indicações sobre
o calão e como entrou na comunidade linguística:
“Mas
onde eu vou?! O calão será pois tudo aquilo. Linguagem secreta, arbitrária e
parasita. Completamente parasita, não, pois que atende a uma necessidade. Mas
tenha-se como irmã enjeitada da saborosa linguagem popular que os senhores
filólogos, tal aquele bom Silvestre Silvério, deixam à porta, por chula,
indecente e má figura. Todavia, sem alvará destes argos, contra o respeito
devido aos manes dos Vieiras e Castilhos, ela vai entrando, posto que à
capucha. Entra como o João da Rua a dar o seu recado ao João de Espera em Deus.
E vai anotando o que se passa na roda dos golfos, a quem servem, desde que o
mundo é mundo, rasos filantes e toda a espécie de guitas. No tempo em que havia
cordanta, muitos mecos que a falavam acabariam a espernear.”.
E acredita que Albino Lapa, como
Aquilino e qualquer pessoa que pertença ao povo, sabe do calão, ao menos por
ouvido, pelo que o calão terá o seu lugar de direito na língua:
“Adiante,
Jorge Ferreira de Vasconcelos é mais denso que isto. O Garoto de Lisboa vem
tauxiado desta vidraria policrómica. Ouvia-a nos meus tempos de rapaz nos
tascos de camareiras ao Poço de Almas. Decerto, você, Albino Lapa, percorreu
estas e melhores tavolagens; enfronhou-se por outros becos; adiantou o pé até
as alfurjas do Alfama antes de saneadas pelos higienistas do folclore a cal e
água de cheiro. Faço votos para que alcance carta foral para o calão.”.
Inscreve a formação do calão no quadro
da multiplicidade dos processos de formação da língua:
“A
língua formou-se de mil maneiras, havendo-se destilado em alambiques de vária
ordem. Quem diria que ‘suis pes’
resultava em chispe, ‘lux quae fugit’ em lusco-fusco, ‘callis angusta
em cangosta’? Como acertou a dar-se o
termo ‘papo-seco’ aos pães pequeninos
do almoço, feitos de pretensa farinha-flor? E ‘girinho’ a qualquer traste bonito e agradável? E que dizer do ‘trafulha’ aplicado como denominador
comum, universal, ao bicho que culmina e abarrota a praça neste ano de graça? Todos
os caminhos vão dar a Roma, como todas as palavras e expressões confluem à boa
economia do idioma desde que representem uma modalidade nova, aceno imprevisto
de psique, reflexo inédito do espírito, cada vez mais fosfórico e exigente.”.
Finalmente, o incentivo e a
expressão da função enditante do calão, mesmo que os glossaristas não achem bem:
“Estou
convencido de que o seu trabalho contribuirá para enriquecimento da locução,
quer em artigo de vozes realistas, quer em falhas do vocabulário e em colorido,
por isso toco o meu rouxinol como um sinaleiro ao ver-lhe adiantar o calcante: Senhores
glossaristas, alto aí! Passe lá vossemecê!”.
E
os dicionaristas lá vão dicionarizando palavras que dantes eram proscritas da linguagem
dita das pessoas decentes…
2016.04.28 – Louro de Carvalho
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