Na
audiência geral de ontem, dia 13 de abril, o Papa, partindo das perícopas dos
evangelhos sinóticos que narram a vocação de São Mateus (Mt 9,9-13; Mc 2,13-17;
Lc 5,27-32),
centrou a sua catequese semanal na declaração de que “a Igreja não é uma
comunidade de seres perfeitos, mas de discípulos que seguem ao Senhor”.
E,
porque assim é, torna-se imperioso que “abandonemos a presunção de nos crermos
mais justos e melhores do que os outros”. Na verdade, porque não somos perfeitos
e, por consequência, havemos de nos reconhecer como pecadores e carentes de
perdão de Deus, temos de estar abertos ao perdão misericordioso, solicitá-lo e
progredir em conformidade com a misericórdia divina e aceitar que ela se
estenda a todos os demais. Também, nesta ordem de ideias e de sentimento, não
atiraremos pedras a Cristo que “come com os cobradores de impostos e com os
pecadores” (Mt
9,12), mas
tentaremos perceber cada vez mais e melhor que Ele não veio “chamar os justos,
mas os pecadores” e que, dentro da pureza e profundidade do conteúdo da velha
aliança, Ele prefere a misericórdia aos sacrifícios (cf Mt 9,13; Os 6,6).
Por
isso, temos de nos habituar a aproximar-nos de Jesus, como os cobradores de
impostos e pecadores, para O escutarmos, e não como os fariseus e os doutores
da Lei, para a murmuração (cf Lc 15,1-2). Por conseguinte, temos de nos livrar da
arrogância do fariseu que rezava dando graças porque não era como o resto dos
homens – e, a rezar, acusava-os de ladrões, injustos, adúlteros… – e jejuava
das vezes por semana e pagava o dízimo de quanto possuía (cf Lc 18,9-2). E não podemos
zangar-nos ou ter inveja pelo facto de os pecadores voltarem à casa paterna,
levando a mal que o Pai os receba e faça festa pelo seu regresso (cf Lc 15,28-32). Com efeito, o Senhor
prefere a oração humilde do pecador que reza, “Senhor, tem compaixão de mim que sou pecador” (Lc 18,13) e o propósito do
pródigo que, caindo em si, diz: “Levantar-me-ei, irei ter como meu pai a
dizer-lhe, Pai, pequei contra o céu e
contra ti, já não sou digno de me chamar teu filho…” (Lc 15,17-19). A inveja das mercês
de Deus a outrem não é pecado contra o Espírito?
***
Mateus
ou Levi – recorda o Papa – “era um publicano, coletor de impostos, considerado
um pecador público”. Chamando-o, o Mestre “mostra aos pecadores que não olha
para o seu passado, condição social ou convencionalismos exteriores”.
Detestando a religiosidade farisaica de fachada, Jesus oferece, a “quem aceita
o seu convite com um coração humilde e sincero”, um “futuro novo”, que implica
ser chamado a sentar-se à sua mesa – mesa que “nos transforma e salva, uma
dupla mesa: a mesa da palavra, “onde
Ele Se nos revela e nos fala como amigos”; e a mesa da Eucaristia, em que “nos nutre com o seu corpo e renova a
graça do Batismo”.
Aos
peregrinos de língua portuguesa presentes na Praça de São Pedro recomendou o
abandono da presunção de nos “crermos mais justos e melhores que os outros” e o
reconhecimento da condição de discípulos e de pecadores “necessitados de ser
tocados pela misericórdia de Deus”.
***
Francisco
prossegue na linha pastoral que sempre vem defendendo, baseado na lição
bíblica. E é dentro deste horizonte pastoral radicado na doutrina de Jesus,
lida de forma humanista e segundo o olhar misericordioso de Deus, que parece dever
receber-se a exortação Amoris Laetitia,
de 19 de março. É óbvio que o Papa não expôs nova doutrina nem alterou os
códigos, mas sugeriu procedimentos ligeiramente diferentes, não do espírito da
doutrina, mas do que uma certa inércia de entendimento tem levado a praticar na
observância da letra da Lei e sem a suficiente reflexão sobre a doutrina. É
neste quadro que vejo tantas citações de mestres como Tomás de Aquino e algumas
suculentas notas explicativas de pé de página.
Ninguém
iria admitir que o líder da Igreja viesse falar de sacramentalidade da união de
facto, do casamento civil, dos catolicamente casados e divorciados e recasados
civilmente, por mais compreensivo que se mostrasse com a boa fé e a situação de
sofrimento dos implicados. Nem iria aceitar, apesar do devido respeito, como
boa a união de pessoas do mesmo sexo. Porém, como referem os principais jornais americanos e ingleses, a
exortação apostólica embora não mude a doutrina da Igreja, “estende a mão aos
divorciados, recasados e homossexuais”.
Trata-se
de um documento que, num mesmo meio de comunicação, suscita opiniões diferentes
com artigos onde se celebra um importante
passo adiante de uma Igreja católica sempre mais aberta ao mundo contemporâneo,
a par de outros que falam, com deceção, de uma “mudança mais de forma do que de
substância”.
Assim,
The Guardian, Rosie Scammell e Harriet
Sherwood dizem que Francisco “conclamou uma renovação na resposta da Igreja
católica à vida familiar moderna, solicitando um maior acolhimento aos
divorciados e homossexuais que aderem aos tradicionais ensinamentos da Igreja”.
Definem Amoris Laetitia como
documento em que o Papa “delineia uma visão mais compassiva da Igreja sobre
temas familiares, convidando os sacerdotes a responder às próprias comunidades
sem aplicar rigidamente as regras”. E várias organizações anglo-saxónicas para
os direitos dos homossexuais referem que o Papa “levou a Igreja a reafirmar
como cada pessoa, independentemente da orientação sexual, deve ser respeitada
na sua dignidade e tratada com consideração” e como “toda a discriminação deve
ser evitada com atenção, especialmente qualquer forma de agressão ou
violência”.
No
entanto, vêm à tona, as preocupações de algumas vozes do mundo católico, como a
de Matthew McCusker, da organização Voice of the Family, a sustentar a
existência de “graves problemas neste documento, que não consegue dar uma clara
e fiel exposição da doutrina católica”. A este respeito, McCusker declarou que
“a Igreja sempre ensinou que, quando um católico pratica um ato fortemente
errado, deve buscar a reconciliação com Deus e com a comunidade dos fiéis
através da confissão para voltar a ser admitido à Sagrada Comunhão”, sendo que,
se a pessoa “opta por permanecer num tipo de união que contradiz a lei moral,
não tem acesso à Eucaristia”. Também Amanda Holpuch acusa a deceção dalguns
grupos LBGT americanos, que reconhecem que a exortação apostólica “adota uma
linguagem mais tolerante para com as relações homossexuais, mas não inclui
nenhuma mudança significativa na posição da Igreja sobre estas uniões”. E a vice-presidente
da Human Rights Campaign Foundation, Mary Beth Maxwell, diz a que Amoris Laetitia “será interpretada de
formas muito diferentes pelos líderes da Igreja”, em resultado de dois anos de
discussões, nem sempre serenas, entre os líderes da Igreja, divididos no
atinente ao mundo homossexual. Não obstante, não se estranha que, “embora não
se comprometendo muito com a plena inclusão que tantas pessoas procuram, tente,
de todas as formas, criar uma cultura em que amar seja mais importante do que
julgar”.
Por
outro lado, Laurie Goodstein, no New York
Times, avalia positivamente “a abordagem de Francisco ao aceitar as
famílias como são, em vez de insistir nos ideais de perfeição”, através do uso
duma linguagem que deixa ampla margem aos sacerdotes para discernirem “se os
católicos divorciados podem ser readmitidos ao sacramento da Comunhão”. Assim,
ficaram satisfeitos os que esperavam “uma Igreja mais flexível” e
tranquilizados os que esperavam “a reafirmação da ideia tradicional do matrimónio
como permanente e indissolúvel”.
Nestes
termos, Jim Yardley escreve no jornal da Big Apple:
“Mais do que dar regras,
o documento do Papa dá licença de adaptação. Alguns analistas definiram-no
revolucionário, outros descreveram-no como opaco ou insosso. Mais do que impor
uma linha política como um chefe executivo, Francisco efetivamente devolveu
poderes a cada um dos párocos e sacerdotes, sugerindo que, numa Igreja global,
as melhores respostas, às vezes, se encontram a nível local”.
Neste sentido, Amoris
Laetitia “cria um espaço maior na relação entre o clero e os fiéis, um espaço
que alguns católicos liberais acreditam que poderia fornecer um percurso de
readmissão aos sacramentos, incluindo a comunhão, para divorciados e
recasados”. Na verdade, referindo-se
à ajuda da Igreja a pessoas em situação objetiva de pecado em que a pessoa
possa não ser imputável ou totalmente imputável, a nota 351, do n.º 305 da AL
refere:
“Em
certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, [diz o
Papa] aos sacerdotes, lembro que o
confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia
do Senhor […]. E de igual modo assinalo que a Eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um
remédio generoso e um alimento para os fracos”.
Segundo
Randy Boyagoda, do New York Times, a
exortação “coloca em primeiro lugar a vida e cura feridas, até se a sua
abordagem produzir confusão e conflito”. Porém, admite que se alguém pensava
que o Papa traçaria um percurso claro para os católicos divorciados ou
recasados civilmente que querem ser readmitidos à comunhão, estará dececionado.
Não obstante e contra os que preferem ser juízes dos outros a guardiões e
dispensadores da misericórdia, o Pontífice fala de forma honesta e inesperada a
muitas famílias católicas que se sentem excluídas da Igreja e é crítico para
com uma visão muito rígida e irrealista da vida matrimonial. Não oferece novas
e rápidas regras para a readmissão aos sacramentos, mas convida os sacerdotes a
discernir caso a caso através do diálogo e reflexão com os católicos
divorciados.
Para
Anthony Faiola e Michelle Boorstein, no The
Washington Post, Francisco encorajou o clero a abraçar os pecadores, à
maneira dos santos, e estendeu o ramo de oliveira aos católicos divorciados e
recasados, banidos do maior dos sacramentos, a comunhão, ou seja, deu as boas-vindas
a casais divorciados e recasados, afirmando que não devem ser julgados,
discriminados ou excluídos da vida da Igreja, encorajando os sacerdotes à misericórdia
e a lidarem mais com o mundo em que vivem do que a pensarem muito naquele que
desejariam.
Num
editorial de Jonathan Capehart, no Washington
Post, pode ler-se:
“Se a Igreja Católica
fosse um enorme navio de guerra que, há dois milénios, navega lentamente nos
mares da moral humana, o Papa Francisco seria o seu novo comandante que está tentando
lentamente mudar de rota”. […] “O seu tom e as suas palavras sobre divórcio,
família, e sobre como os homossexuais são tratados na Igreja marcaram uma
profunda diferença do que já estávamos acostumados a escutar no Vaticano”.
***
Para
o cardeal Christoph Schönborn, arcebispo de Viena, a Amoris Laetitia é uma grande catequese sobre o amor conjugal e
familiar, que os pastores podem e devem utilizar.
O
cardeal austríaco expressou, com as suas esperanças em relação ao documento de 325
números, em 263 páginas, o apreço pela inclusão que o Pontífice fez da
colaboração dos bispos durante os dois sínodos e pela reafirmação do ensinamento
da Igreja sobre matrimónio. No entanto, reconhece os perigos que subsistem em
relação à implementação da Amoris Laetitia
(mesmo o
da sua extensão), e aplaude o exemplo papal do bom pastor, que conhece bem a correta ‘arte’ de acompanhar as
pessoas, não sendo duro, mas não fazendo concessões.
***
Porém,
é de ter em conta que a exortação não se circunscreve ao capítulo VIII, o que
aborda as matérias de que se vem falando. O mencionado prelado de Viena sugere
que os pastores peguem, por exemplo, no quarto capítulo, “Como viver o amor”, que “é uma grande catequese” e, até, podem “pegar
capítulo por capítulo, passagem por passagem, e trabalhar sobre a exortação na
paróquia, nas comunidades”.
Por
seu turno, o
Padre Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, ilustra o significado e a estrutura
da Amoris Laetitia como fruto dos
dois Sínodos sobre a família. O documento, segundo o jesuíta, vai ao encontro
da experiência quotidiana e tende a superar visões abstratas da família. E é
com as suas palavras que ponho termo a este texto de reflexão:
“É uma Exortação que qualquer pessoa pode ler, não é reservada
aos entendidos no tema. Portanto, eu diria que o respiro é absolutamente
amplo e permeado de experiência. Sobretudo é importante a insistência do Papa
para se evitar toda a forma de inútil abstração idealística, que muitas vezes
permeou a linguagem teológica. Amoris
Laetitia pretende reiterar com força não o ideal abstrato da família, mas a
sua realidade rica e complexa. Existe uma abordagem absolutamente positiva em
relação à realidade, acolhedora, cordial”.
Assim se entenda e
pratique.
2016.04.14 – Louro de Carvalho
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