quinta-feira, 14 de abril de 2016

A Igreja não é uma comunidade de seres perfeitos…

Na audiência geral de ontem, dia 13 de abril, o Papa, partindo das perícopas dos evangelhos sinóticos que narram a vocação de São Mateus (Mt 9,9-13; Mc 2,13-17; Lc 5,27-32), centrou a sua catequese semanal na declaração de que “a Igreja não é uma comunidade de seres perfeitos, mas de discípulos que seguem ao Senhor”.
E, porque assim é, torna-se imperioso que “abandonemos a presunção de nos crermos mais justos e melhores do que os outros”. Na verdade, porque não somos perfeitos e, por consequência, havemos de nos reconhecer como pecadores e carentes de perdão de Deus, temos de estar abertos ao perdão misericordioso, solicitá-lo e progredir em conformidade com a misericórdia divina e aceitar que ela se estenda a todos os demais. Também, nesta ordem de ideias e de sentimento, não atiraremos pedras a Cristo que “come com os cobradores de impostos e com os pecadores” (Mt 9,12), mas tentaremos perceber cada vez mais e melhor que Ele não veio “chamar os justos, mas os pecadores” e que, dentro da pureza e profundidade do conteúdo da velha aliança, Ele prefere a misericórdia aos sacrifícios (cf Mt 9,13; Os 6,6).
Por isso, temos de nos habituar a aproximar-nos de Jesus, como os cobradores de impostos e pecadores, para O escutarmos, e não como os fariseus e os doutores da Lei, para a murmuração (cf Lc 15,1-2). Por conseguinte, temos de nos livrar da arrogância do fariseu que rezava dando graças porque não era como o resto dos homens – e, a rezar, acusava-os de ladrões, injustos, adúlteros… – e jejuava das vezes por semana e pagava o dízimo de quanto possuía (cf Lc 18,9-2). E não podemos zangar-nos ou ter inveja pelo facto de os pecadores voltarem à casa paterna, levando a mal que o Pai os receba e faça festa pelo seu regresso (cf Lc 15,28-32). Com efeito, o Senhor prefere a oração humilde do pecador que reza, “Senhor, tem compaixão de mim que sou pecador” (Lc 18,13) e o propósito do pródigo que, caindo em si, diz: “Levantar-me-ei, irei ter como meu pai a dizer-lhe, Pai, pequei contra o céu e contra ti, já não sou digno de me chamar teu filho…” (Lc 15,17-19). A inveja das mercês de Deus a outrem não é pecado contra o Espírito?
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Mateus ou Levi – recorda o Papa – “era um publicano, coletor de impostos, considerado um pecador público”. Chamando-o, o Mestre “mostra aos pecadores que não olha para o seu passado, condição social ou convencionalismos exteriores”. Detestando a religiosidade farisaica de fachada, Jesus oferece, a “quem aceita o seu convite com um coração humilde e sincero”, um “futuro novo”, que implica ser chamado a sentar-se à sua mesa – mesa que “nos transforma e salva, uma dupla mesa: a mesa da palavra, “onde Ele Se nos revela e nos fala como amigos”; e a mesa da Eucaristia, em que “nos nutre com o seu corpo e renova a graça do Batismo”.
Aos peregrinos de língua portuguesa presentes na Praça de São Pedro recomendou o abandono da presunção de nos “crermos mais justos e melhores que os outros” e o reconhecimento da condição de discípulos e de pecadores “necessitados de ser tocados pela misericórdia de Deus”.
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Francisco prossegue na linha pastoral que sempre vem defendendo, baseado na lição bíblica. E é dentro deste horizonte pastoral radicado na doutrina de Jesus, lida de forma humanista e segundo o olhar misericordioso de Deus, que parece dever receber-se a exortação Amoris Laetitia, de 19 de março. É óbvio que o Papa não expôs nova doutrina nem alterou os códigos, mas sugeriu procedimentos ligeiramente diferentes, não do espírito da doutrina, mas do que uma certa inércia de entendimento tem levado a praticar na observância da letra da Lei e sem a suficiente reflexão sobre a doutrina. É neste quadro que vejo tantas citações de mestres como Tomás de Aquino e algumas suculentas notas explicativas de pé de página.
Ninguém iria admitir que o líder da Igreja viesse falar de sacramentalidade da união de facto, do casamento civil, dos catolicamente casados e divorciados e recasados civilmente, por mais compreensivo que se mostrasse com a boa fé e a situação de sofrimento dos implicados. Nem iria aceitar, apesar do devido respeito, como boa a união de pessoas do mesmo sexo. Porém, como referem os principais jornais americanos e ingleses, a exortação apostólica embora não mude a doutrina da Igreja, “estende a mão aos divorciados, recasados e homossexuais”.
Trata-se de um documento que, num mesmo meio de comunicação, suscita opiniões diferentes com artigos onde se celebra um importante passo adiante de uma Igreja católica sempre mais aberta ao mundo contemporâneo, a par de outros que falam, com deceção, de uma “mudança mais de forma do que de substância”.
Assim, The Guardian, Rosie Scammell e Harriet Sherwood dizem que Francisco “conclamou uma renovação na resposta da Igreja católica à vida familiar moderna, solicitando um maior acolhimento aos divorciados e homossexuais que aderem aos tradicionais ensinamentos da Igreja”. Definem Amoris Laetitia como documento em que o Papa “delineia uma visão mais compassiva da Igreja sobre temas familiares, convidando os sacerdotes a responder às próprias comunidades sem aplicar rigidamente as regras”. E várias organizações anglo-saxónicas para os direitos dos homossexuais referem que o Papa “levou a Igreja a reafirmar como cada pessoa, independentemente da orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e tratada com consideração” e como “toda a discriminação deve ser evitada com atenção, especialmente qualquer forma de agressão ou violência”.
No entanto, vêm à tona, as preocupações de algumas vozes do mundo católico, como a de Matthew McCusker, da organização Voice of the Family, a sustentar a existência de “graves problemas neste documento, que não consegue dar uma clara e fiel exposição da doutrina católica”. A este respeito, McCusker declarou que “a Igreja sempre ensinou que, quando um católico pratica um ato fortemente errado, deve buscar a reconciliação com Deus e com a comunidade dos fiéis através da confissão para voltar a ser admitido à Sagrada Comunhão”, sendo que, se a pessoa “opta por permanecer num tipo de união que contradiz a lei moral, não tem acesso à Eucaristia”. Também Amanda Holpuch acusa a deceção dalguns grupos LBGT americanos, que reconhecem que a exortação apostólica “adota uma linguagem mais tolerante para com as relações homossexuais, mas não inclui nenhuma mudança significativa na posição da Igreja sobre estas uniões”. E a vice-presidente da Human Rights Campaign Foundation, Mary Beth Maxwell, diz a que Amoris Laetitia “será interpretada de formas muito diferentes pelos líderes da Igreja”, em resultado de dois anos de discussões, nem sempre serenas, entre os líderes da Igreja, divididos no atinente ao mundo homossexual. Não obstante, não se estranha que, “embora não se comprometendo muito com a plena inclusão que tantas pessoas procuram, tente, de todas as formas, criar uma cultura em que amar seja mais importante do que julgar”.
Por outro lado, Laurie Goodstein, no New York Times, avalia positivamente “a abordagem de Francisco ao aceitar as famílias como são, em vez de insistir nos ideais de perfeição”, através do uso duma linguagem que deixa ampla margem aos sacerdotes para discernirem “se os católicos divorciados podem ser readmitidos ao sacramento da Comunhão”. Assim, ficaram satisfeitos os que esperavam “uma Igreja mais flexível” e tranquilizados os que esperavam “a reafirmação da ideia tradicional do matrimónio como permanente e indissolúvel”.
Nestes termos, Jim Yardley escreve no jornal da  Big Apple:
“Mais do que dar regras, o documento do Papa dá licença de adaptação. Alguns analistas definiram-no revolucionário, outros descreveram-no como opaco ou insosso. Mais do que impor uma linha política como um chefe executivo, Francisco efetivamente devolveu poderes a cada um dos párocos e sacerdotes, sugerindo que, numa Igreja global, as melhores respostas, às vezes, se encontram a nível local”.
Neste sentido, Amoris Laetitia “cria um espaço maior na relação entre o clero e os fiéis, um espaço que alguns católicos liberais acreditam que poderia fornecer um percurso de readmissão aos sacramentos, incluindo a comunhão, para divorciados e recasados”. Na verdade, referindo-se à ajuda da Igreja a pessoas em situação objetiva de pecado em que a pessoa possa não ser imputável ou totalmente imputável, a nota 351, do n.º 305 da AL refere:
“Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, [diz o Papa] aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor […]. E de igual modo assinalo que a Eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”.
Segundo Randy Boyagoda, do New York Times, a exortação “coloca em primeiro lugar a vida e cura feridas, até se a sua abordagem produzir confusão e conflito”. Porém, admite que se alguém pensava que o Papa traçaria um percurso claro para os católicos divorciados ou recasados civilmente que querem ser readmitidos à comunhão, estará dececionado. Não obstante e contra os que preferem ser juízes dos outros a guardiões e dispensadores da misericórdia, o Pontífice fala de forma honesta e inesperada a muitas famílias católicas que se sentem excluídas da Igreja e é crítico para com uma visão muito rígida e irrealista da vida matrimonial. Não oferece novas e rápidas regras para a readmissão aos sacramentos, mas convida os sacerdotes a discernir caso a caso através do diálogo e reflexão com os católicos divorciados.
Para Anthony Faiola e Michelle Boorstein, no The Washington Post, Francisco encorajou o clero a abraçar os pecadores, à maneira dos santos, e estendeu o ramo de oliveira aos católicos divorciados e recasados, banidos do maior dos sacramentos, a comunhão, ou seja, deu as boas-vindas a casais divorciados e recasados, afirmando que não devem ser julgados, discriminados ou excluídos da vida da Igreja, encorajando os sacerdotes à misericórdia e a lidarem mais com o mundo em que vivem do que a pensarem muito naquele que desejariam.
Num editorial de Jonathan Capehart, no Washington Post, pode ler-se:
“Se a Igreja Católica fosse um enorme navio de guerra que, há dois milénios, navega lentamente nos mares da moral humana, o Papa Francisco seria o seu novo comandante que está tentando lentamente mudar de rota”. […] “O seu tom e as suas palavras sobre divórcio, família, e sobre como os homossexuais são tratados na Igreja marcaram uma profunda diferença do que já estávamos acostumados a escutar no Vaticano”.
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Para o cardeal Christoph Schönborn, arcebispo de Viena, a Amoris Laetitia é uma grande catequese sobre o amor conjugal e familiar, que os pastores podem e devem utilizar.
O cardeal austríaco expressou, com as suas esperanças em relação ao documento de 325 números, em 263 páginas, o apreço pela inclusão que o Pontífice fez da colaboração dos bispos durante os dois sínodos e pela reafirmação do ensinamento da Igreja sobre matrimónio. No entanto, reconhece os perigos que subsistem em relação à implementação da Amoris Laetitia (mesmo o da sua extensão), e aplaude o exemplo papal do bom pastor, que conhece bem a correta ‘arte’ de acompanhar as pessoas, não sendo duro, mas não fazendo concessões.
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Porém, é de ter em conta que a exortação não se circunscreve ao capítulo VIII, o que aborda as matérias de que se vem falando. O mencionado prelado de Viena sugere que os pastores peguem, por exemplo, no quarto capítulo, “Como viver o amor”, que “é uma grande catequese” e, até, podem “pegar capítulo por capítulo, passagem por passagem, e trabalhar sobre a exortação na paróquia, nas comunidades”.
Por seu turno, o Padre Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, ilustra o significado e a estrutura da Amoris Laetitia como fruto dos dois Sínodos sobre a família. O documento, segundo o jesuíta, vai ao encontro da experiência quotidiana e tende a superar visões abstratas da família. E é com as suas palavras que ponho termo a este texto de reflexão:
“É uma Exortação que qualquer pessoa pode ler, não é reservada aos  entendidos no tema. Portanto, eu diria que o respiro é absolutamente amplo e permeado de experiência. Sobretudo é importante a insistência do Papa para se evitar toda a forma de inútil abstração idealística, que muitas vezes permeou a linguagem teológica. Amoris Laetitia pretende reiterar com força não o ideal abstrato da família, mas a sua realidade rica e complexa. Existe uma abordagem absolutamente positiva em relação à realidade, acolhedora, cordial”.
Assim se entenda e pratique.

2016.04.14 – Louro de Carvalho

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