sexta-feira, 29 de abril de 2016

Escândalo: padre afasta funcionária por não trabalhar ao domingo

O JN de 28 de abril traz em primeira página a escandalosa notícia vazada em epígrafe. Um padre chegou ao desplante de punir uma trabalhadora por ela se recusar a trabalhar ao domingo e, questionado pelo jornal, remeteu-se ao silêncio.
Vamos a ler o desenvolvimento na página 20 e, afinal, a montanha pariu um rato. Na verdade, uma auxiliar de Centro Social e Paroquial, recusou o novo horário de trabalho numa instituição que tem uma valência que implica o trabalho por turnos, o que postula a prestação de serviço também em sábado, feriado e domingo – não todos os sábados, feriados e domingos. Compete à direção o estabelecimento do horário de trabalho, obviamente que, se possível, com a concordância do trabalhador. O caso terá sido objeto de processo disciplinar, intervenção de polícia, perda de salário, proibição de entrada nas instalações e, desde agora, de ação judicial.
Trata-se de situações recorrentes no campo laboral – o que deverá ser apreciado em termos de direito do trabalho e provavelmente à luz das liberdades, direitos e garantias pessoais.
Quem se ficasse pela leitura de títulos poderia erradamente ser induzido a pensar que um sacerdote teria querido proibir uma cristã do cumprimento do preceito do descanso dominical, contrariando quer o 3.º mandamento da Lei de Deus, quer o 2.º mandamento da Igreja.
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Que nos dizem os tais mandamentos?
O Compêndio do Catecismo da Igreja Católica (CCIC), nos seus números 453 e 454, resume o conteúdo dos preceitos atinentes à santificação semanal do Dia do Senhor, respondendo a duas questões: como santificar o domingo; e porque é importante reconhecer civilmente o domingo como dia festivo. Assim:
– “Os cristãos santificam o domingo e as festas de preceito participando na Eucaristia do Senhor e abstendo-se das atividades que o impedem de prestar culto a Deus e perturbam a alegria própria do dia do Senhor ou o devido descanso da mente e do corpo. São permitidas as atividades ligadas a necessidades familiares ou a serviços de grande utilidade social, desde que não criem hábitos prejudiciais à santificação do domingo, à vida de família e à saúde.” (n.º 453).
 – “Para que todos possam gozar de repouso suficiente e tempo livre, que lhes permitam cuidar da vida religiosa, familiar, cultural e social; para dispor de tempo propício à meditação, reflexão, silêncio e estudo; e para fazer boas obras, servir os doentes e os anciãos” (n.º 454).
E, na alínea b) do apêndice, a atinente a fórmulas de doutrina católica, enuncia como o primeiro dos cinco preceitos da Igreja: “participar na Missa, aos domingos e festas de guarda e abster-se de trabalhos e atividades que impeçam a santificação desses dias”. 
É um preceito (tanto no decálogo como na doutrina católica) de dupla vertente: a prestação de culto e a observância do repouso. Porém, é de notar que a observância do repouso está concebida em função quer da criação da oportunidade da prestação do culto a Deus e do revigoramento espiritual da pessoa humana, quer das necessidades de prestação do apoio e serviço à família quer de serviços de grande utilidade social.
Já, quando estudávamos a catequese pelos catecismos nacionais organizados por Amílcar do Amaral, nos ensinavam as situações em que estávamos dispensados do preceito dominical. Da missa dispensavam-nos o estado grave de doença própria ou de família e a distância excessiva; do repouso, os serviços urgentes ou os inadiáveis deveres de justiça e caridade. Todavia, nunca ficávamos dispensados da oração nem de perder de vista o sentido cristão do repouso, incompatível como o ócio puro e simples e sobretudo se pecaminoso.
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Talvez seja conveniente ver o que efetivamente nos diz o Catecismo da Igreja Católica (CIC), à luz do qual se elaborou o CCIC. Assim, quanto ao dever do repouso, o n.º 2185 estabelece:
“Aos domingos e outros dias festivos de preceito, os fiéis abstenham-se de trabalhos e negócios que impeçam o culto devido a Deus, a alegria própria do Dia do Senhor, a prática das obras de misericórdia ou o devido repouso do espírito e do corpo”.
Em termos da atenção solidária, o n.º 2186, dispõe:
“Os cristãos que dispõem de tempos livres lembrem-se dos seus irmãos que têm as mesmas necessidades e os mesmos direitos, e não podem descansar por motivos de pobreza e de miséria. O domingo é tradicionalmente consagrado, pela piedade cristã, às boas obras e aos serviços humildes dos doentes, enfermos e pessoas de idade.” […]. “O domingo é um tempo de reflexão, de silêncio, de cultura e de meditação, que favorecem o crescimento da vida interior e cristã”.
Quanto aos afazeres que dispensam da obrigação do repouso dominical, o CIC estabelece:
“As necessidades familiares ou uma grande utilidade social constituem justificações legítimas em relação ao preceito do descanso dominical. Mas os fiéis estarão atentos a que legítimas desculpas não introduzam hábitos prejudiciais à religião, à vida de família e à saúde”. “O amor da verdade procura o ócio santo: a necessidade do amor aceita o negócio justo” (vd 2185).
Sobre outras formas de santificação do domingo, fica estabelecido:
“Os cristãos também santificarão o domingo prestando à sua família e vizinhos tempo e cuidados difíceis de prestar nos outros dias da semana” (vd 2186).
O próprio CIC prevê situações em que não é possível cumprir o preceito do repouso dominical, seja por o domingo não ser feriado nalguns países, seja por haver trabalhos que têm de continuar a ser feitos ao domingo. Por isso, vêm ao caso dois números que estabelecem, por um lado, o comportamento do cristão que se vê impossibilitado de cumprir o preceito e, por outro, a obrigação que impende sobre todos relativamente à criação de condições propícias à observância do repouso dominical.
Relativamente ao primeiro caso, o n.º 2188 dispõe sobre a postura cívica e cristã:
“No respeito pela liberdade religiosa e pelo bem comum de todos, os cristãos devem esforçar-se pelo reconhecimento dos domingos e dias santos da Igreja como dias feriados legais. Devem dar a todos o exemplo público de oração, respeito e alegria, e defender as suas tradições como uma contribuição preciosa para a vida espiritual da sociedade humana. Se a legislação do país ou outras razões obrigarem a trabalhar ao domingo, que este dia seja vivido, no entanto, como sendo o dia da nossa libertação, que nos faz participantes da reunião festiva, da assembleia de primogénitos inscritos nos céus” (Heb 12,22-23).
E, relativamente ao segundo, estabelece o n.º 2187, no atinente a diversos agentes e situações:
“Santificar os domingos e festas de guarda exige um esforço comum. Todo o cristão deve evitar impor a outrem, sem necessidade, o que possa impedi-lo de guardar o Dia do Senhor. Quando os costumes (desporto, restaurantes, etc.) e as obrigações sociais (serviços públicos, etc.) reclamam de alguns um trabalho dominical, cada um fica com a responsabilidade de um tempo suficiente de descanso. Os fiéis estarão atentos, com moderação e caridade, para evitar os excessos e violências originados às vezes nas diversões de massa. Não obstante as pressões de ordem económica, os poderes públicos preocupar-se-ão em assegurar aos cidadãos um tempo destinado ao repouso e ao culto divino. Os patrões têm obrigação análoga para com os seus empregados.
Penso não ser necessário lembrar a razão pela qual o cristianismo, embora reconhecendo que o dinamismo do repouso sabático se relaciona com a ordem divina e responde a uma necessidade do homem, transferiu o preceito da santificação do Dia do Senhor para o primeiro dia da semana. Com efeito, foi em primeiro dia da semana que o Senhor ressuscitou e que, depois, em dia homólogo irrompeu o Pentecostes – constituindo ambos os factos a nova e mais relevante criação (em obra e repouso).
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Sendo assim, o sacerdote e a direção do Centro Social e Paroquial aludidos não podem ser penalizados pela questão do descanso semanal da funcionária, mas por outros eventuais motivos: se a trataram com equidade, se a ouviram, se o processo foi organizado de forma correta, etc. No entanto, não excluo a hipótese de tribunal superior vir a dar razão à funcionária por motivos do respeito pelo exercício de um direito. Já quando um tribunal superior, em tempos, deu razão a uma procuradora que recusou trabalhar ao sábado por motivos religiosos, eu me perguntava sobre o que sucederia se todos os católicos recusassem trabalhar ao domingo. É óbvio que os cristãos não teriam razão e os tribunais não podem confundir direitos pessoais com a dispensa de prover às necessidades públicas, sendo mais papistas que o Papa.
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E que diz o Papa a este respeito?
Na audiência geral do passado dia 27 de abril, apresentou a sua reflexão sobre a parábola dita do bom samaritano (cf Lc 10,25-37). Um doutor da Lei, abeirando-se de Jesus para o experimentar, pergunta-lhe o que fazer para ter a vida eterna (v. 25). Jesus pede-lhe a ele a resposta. E o legista responde com os mandamentos: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu pensamento; e ao teu próximo como a ti mesmo (v. 27). E Jesus, anuindo, responde: “Faz isto e viverás!” (v. 28).
À pergunta do legista pergunta sobre quem seria o seu próximo, Jesus respondeu com a “parábola do homem que descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores. Prefiro chamar-lhe assim a chamar-lhe parábola do bom samaritano, já que também nos ensina, por antífrase, através do comportamento de outros. 
A parábola – diz o Papa – “põe em cena um sacerdote, um levita e um samaritano”, ou seja, dois homens “ligados ao culto do templo” e “um judeu hebreu cismático”, tido como “estrangeiro, pagão e impuro”.
O sacerdote e o levita deparam-se com um homem espancado, abandonado e moribundo, mas, apesar de a Lei prescrever a obrigação do socorro, deixaram-se levar pela pressa do serviço do Templo e pelo receio de se contaminarem com sangue impuro. Desviam-se, pois, e seguem por outra via. O Pontífice, pelos apartes que faz, mostra que hoje os comportamentos são parecidos em muitos casos, enuncia aqui logo um primeiro ensinamento:
“Não é automático que quantos frequentam a casa de Deus e conhecem a sua misericórdia saibam amar o próximo. Não é automático! Tu podes conhecer a Bíblia inteira, podes conhecer todas as rubricas litúrgicas, podes conhecer toda a teologia, mas do conhecer não nasce espontaneamente o amar: o amar segue outro caminho; é necessária a inteligência, mas também algo mais...”.
Sacerdote e levita não advertiram que não existe culto autêntico se não se traduzir em serviço ao próximo. Assim:
“Nunca podemos esquecer: ante o sofrimento de tantas pessoas extenuadas pela fome, pela violência e pelas injustiças, não podemos permanecer espectadores. Que significa ignorar o sofrimento do homem? Significa ignorar Deus! Se não me aproximo daquele homem, daquela mulher, daquela criança, daquele idoso ou daquela idosa que sofre, não me aproximo de Deus.”
Porém, o samaritano, isto é, o desprezado, que também tinha “os seus compromissos e afazeres”, “encheu-se de compaixão” (v. 33). O coração “estava sintonizado com o coração do próprio Deus”. E a “compaixão” (‘padecer com’) é “característica essencial da misericórdia de Deus”, que “padece ao nosso lado, sente os nossos próprios sofrimentos”.
Assim, “nos gestos e ações” do samaritano (e não nos do sacerdote ou do levita), “reconhecemos o agir misericordioso de Deus em toda a história da salvação”, pois, como diz o Papa:
“É a mesma compaixão com a qual o Senhor vem ao encontro de cada um de nós: Ele não nos ignora, conhece as nossas dores, sabe como temos necessidade de ajuda e de consolação. Aproxima-se de nós e nunca nos abandona”.
Com efeito, o samaritano comporta-se com verdadeira misericórdia: cura as feridas do homem, leva-o para a hospedaria, cuida pessoalmente dele e provê à sua assistência – o que “nos ensina que a compaixão, a caridade, não é um sentimento incerto”, mas implica “cuidar do outro até pagar pessoalmente por ele”, ou seja, “comprometer-se dando todos os passos necessários para se aproximar do outro até se identificar com ele: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Não basta pensar ou sentir quem é o meu próximo, mas é preciso que eu queira e saiba ser próximo de quem precisa.
A novidade da mensagem de Cristo em torno do preceito, “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, é justamente esta: tornar-se próximo do outro sem esperar que ele seja próximo nosso. Por isso, “Jesus inverte a questão do doutor da Lei” ao perguntar: “Qual destes três parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?” (v. 36). E o legista respondeu sem inequívoco: “Aquele que foi misericordioso para com ele” (v. 27). No início, “para o sacerdote e para o levita o próximo era o moribundo”; mas, “no final, o próximo é o samaritano que se fez próximo”. Por isso, o Pontífice comenta:
“Tu podes tornar-te próximo de quem quer que se encontre em necessidade, e sê-lo-ás se no teu coração sentires compaixão, ou seja, se tiveres a capacidade de padecer com o outro”.
Quando o legista perguntou quem seria o seu próximo, certamente esperava uma resposta que remetesse para os parentes, amigos, compatriotas ou correligionários. Ora Jesus, ao pregar o perdão a dar sempre a todos os que nos ofendem (Mt 18,21), ao mandar amar até os inimigos e rezar pelos que nos perseguem e caluniam (Mt 5,44), rejeita a ideia da enunciação de “uma regra clara” que nos “permita classificar os outros em próximos e não próximos, naqueles que podem tornar-se próximos e em quantos não podem tornar-se tais”. E, reparando que o doutor da Lei percebeu que tinha de ser ele a tornar-se próximo de quem precisa, despediu-o dizendo: “Vai, e também tu faz o mesmo!” (Lc 10, 37).
Por isso, no final da sua reflexão catequética, Bergoglio diz-nos que a “parábola é para todos nós uma dádiva maravilhosa, mas também um compromisso”, pois, “a cada um de nós, Jesus repete o que disse ao doutor da Lei”. Pelo que “somos todos chamados a percorrer o mesmo caminho do bom samaritano, que é a figura de Cristo”, o qual se debruçou “sobre nós”, se fez “nosso servo”, e assim “nos salvou, para que também nós pudéssemos amar-nos como Ele nos amou”.
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Talvez o Evangelho e a reflexão catequética de Francisco forneçam os critérios de apreciação justa do caso do padre e da funcionária, a qual também parece ter problemas familiares.

2016.04.29 – Louro de Carvalho

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