O JN de 28 de abril traz em primeira
página a escandalosa notícia vazada em epígrafe. Um padre chegou ao desplante
de punir uma trabalhadora por ela se recusar a trabalhar ao domingo e,
questionado pelo jornal, remeteu-se ao silêncio.
Vamos a ler o
desenvolvimento na página 20 e, afinal, a montanha pariu um rato. Na verdade,
uma auxiliar de Centro Social e Paroquial, recusou o novo horário de trabalho
numa instituição que tem uma valência que implica o trabalho por turnos, o que
postula a prestação de serviço também em sábado, feriado e domingo – não todos
os sábados, feriados e domingos. Compete à direção o estabelecimento do horário
de trabalho, obviamente que, se possível, com a concordância do trabalhador. O
caso terá sido objeto de processo disciplinar, intervenção de polícia, perda de
salário, proibição de entrada nas instalações e, desde agora, de ação judicial.
Trata-se de
situações recorrentes no campo laboral – o que deverá ser apreciado em termos
de direito do trabalho e provavelmente à luz das liberdades, direitos e
garantias pessoais.
Quem se
ficasse pela leitura de títulos poderia erradamente ser induzido a pensar que
um sacerdote teria querido proibir uma cristã do cumprimento do preceito do
descanso dominical, contrariando quer o 3.º mandamento da Lei de Deus, quer o
2.º mandamento da Igreja.
***
Que nos dizem os tais mandamentos?
O Compêndio
do Catecismo da Igreja Católica (CCIC),
nos seus números 453 e 454, resume o conteúdo dos preceitos atinentes à
santificação semanal do Dia do Senhor, respondendo a duas questões: como santificar o domingo; e porque é importante reconhecer
civilmente o domingo como dia festivo. Assim:
– “Os cristãos santificam
o domingo e as festas de preceito participando na Eucaristia do Senhor e
abstendo-se das atividades que o impedem de prestar culto a Deus e perturbam a
alegria própria do dia do Senhor ou o devido descanso da mente e do corpo. São
permitidas as atividades ligadas a necessidades familiares ou a serviços de
grande utilidade social, desde que não criem hábitos prejudiciais à
santificação do domingo, à vida de família e à saúde.” (n.º 453).
– “Para que todos
possam gozar de repouso suficiente e tempo livre, que lhes permitam cuidar da
vida religiosa, familiar, cultural e social; para dispor de tempo propício à
meditação, reflexão, silêncio e estudo; e para fazer boas obras, servir os
doentes e os anciãos” (n.º 454).
E, na alínea b)
do apêndice, a atinente a fórmulas de doutrina católica, enuncia como o
primeiro dos cinco preceitos da Igreja: “participar na Missa, aos domingos e festas de guarda e
abster-se de trabalhos e atividades que impeçam a santificação desses dias”.
É um preceito (tanto no decálogo como na doutrina católica) de dupla vertente: a prestação de culto e a observância do repouso.
Porém, é de notar que a observância do repouso está concebida em função quer da
criação da oportunidade da prestação do culto a Deus e do revigoramento
espiritual da pessoa humana, quer das necessidades de prestação do apoio e
serviço à família quer de serviços de grande utilidade social.
Já, quando estudávamos a catequese pelos
catecismos nacionais organizados por Amílcar do Amaral, nos ensinavam as
situações em que estávamos dispensados do preceito dominical. Da missa
dispensavam-nos o estado grave de doença própria ou de família e a distância
excessiva; do repouso, os serviços urgentes ou os inadiáveis deveres de justiça
e caridade. Todavia, nunca ficávamos dispensados da oração nem de perder de
vista o sentido cristão do repouso, incompatível como o ócio puro e simples e
sobretudo se pecaminoso.
***
Talvez
seja conveniente ver o que efetivamente nos diz o Catecismo da Igreja Católica
(CIC), à luz do qual se elaborou o CCIC. Assim, quanto ao dever do repouso, o
n.º 2185 estabelece:
“Aos domingos e outros
dias festivos de preceito, os fiéis abstenham-se de trabalhos e negócios que
impeçam o culto devido a Deus, a alegria própria do Dia do Senhor, a prática
das obras de misericórdia ou o devido repouso do espírito e do corpo”.
Em
termos da atenção solidária, o n.º 2186, dispõe:
“Os cristãos que dispõem
de tempos livres lembrem-se dos seus irmãos que têm as mesmas necessidades e os
mesmos direitos, e não podem descansar por motivos de pobreza e de miséria. O
domingo é tradicionalmente consagrado, pela piedade cristã, às boas obras e aos
serviços humildes dos doentes, enfermos e pessoas de idade.” […]. “O domingo é
um tempo de reflexão, de silêncio, de cultura e de meditação, que favorecem o
crescimento da vida interior e cristã”.
Quanto
aos afazeres que dispensam da obrigação do repouso dominical, o CIC estabelece:
“As necessidades familiares ou uma grande utilidade social constituem
justificações legítimas em relação ao preceito do descanso dominical. Mas os
fiéis estarão atentos a que legítimas desculpas não introduzam hábitos
prejudiciais à religião, à vida de família e à saúde”. “O amor da verdade procura o ócio santo: a necessidade do amor aceita o
negócio justo” (vd 2185).
Sobre outras formas de santificação do domingo, fica estabelecido:
“Os cristãos também santificarão o domingo prestando à sua família e
vizinhos tempo e cuidados difíceis de prestar nos outros dias da semana” (vd
2186).
O próprio CIC prevê situações em que não é possível cumprir o preceito do
repouso dominical, seja por o domingo não ser feriado nalguns países, seja por
haver trabalhos que têm de continuar a ser feitos ao domingo. Por isso, vêm ao
caso dois números que estabelecem, por um lado, o comportamento do cristão que
se vê impossibilitado de cumprir o preceito e, por outro, a obrigação que
impende sobre todos relativamente à criação de condições propícias à
observância do repouso dominical.
Relativamente ao primeiro caso, o n.º 2188 dispõe sobre a postura cívica e
cristã:
“No respeito pela liberdade religiosa e pelo bem comum de todos, os
cristãos devem esforçar-se pelo reconhecimento dos domingos e dias santos da
Igreja como dias feriados legais. Devem dar a todos o exemplo público de
oração, respeito e alegria, e defender as suas tradições como uma contribuição
preciosa para a vida espiritual da sociedade humana. Se a legislação do país ou
outras razões obrigarem a trabalhar ao domingo, que este dia seja vivido, no
entanto, como sendo o dia da nossa libertação, que nos faz participantes da reunião festiva, da assembleia de primogénitos inscritos nos céus” (Heb 12,22-23).
E, relativamente ao segundo, estabelece o n.º 2187, no atinente a diversos
agentes e situações:
“Santificar os domingos e festas de guarda exige um esforço comum. Todo o
cristão deve evitar impor a outrem, sem necessidade, o que possa impedi-lo de
guardar o Dia do Senhor. Quando os costumes (desporto, restaurantes,
etc.) e as obrigações sociais (serviços públicos, etc.) reclamam de alguns um trabalho dominical, cada um fica com a
responsabilidade de um tempo suficiente de descanso. Os fiéis estarão atentos,
com moderação e caridade, para evitar os excessos e violências originados às
vezes nas diversões de massa. Não obstante as pressões de ordem económica, os
poderes públicos preocupar-se-ão em assegurar aos cidadãos um tempo destinado
ao repouso e ao culto divino. Os patrões têm obrigação análoga para com os seus
empregados.
Penso não ser necessário lembrar a razão pela qual o cristianismo, embora reconhecendo
que o dinamismo do repouso sabático se relaciona com a ordem divina e responde
a uma necessidade do homem, transferiu o preceito da santificação do Dia do
Senhor para o primeiro dia da semana. Com efeito, foi em primeiro dia da semana
que o Senhor ressuscitou e que, depois, em dia homólogo irrompeu o Pentecostes
– constituindo ambos os factos a nova e mais relevante criação (em obra e repouso).
***
Sendo
assim, o sacerdote e a direção do Centro Social e Paroquial aludidos não podem
ser penalizados pela questão do descanso semanal da funcionária, mas por outros
eventuais motivos: se a trataram com equidade, se a ouviram, se o processo foi
organizado de forma correta, etc. No entanto, não excluo a hipótese de tribunal
superior vir a dar razão à funcionária por motivos do respeito pelo exercício
de um direito. Já quando um tribunal superior, em tempos, deu razão a uma
procuradora que recusou trabalhar ao sábado por motivos religiosos, eu me
perguntava sobre o que sucederia se todos os católicos recusassem trabalhar ao
domingo. É óbvio que os cristãos não teriam razão e os tribunais não podem
confundir direitos pessoais com a dispensa de prover às necessidades públicas, sendo
mais papistas que o Papa.
***
E que diz o Papa a este
respeito?
Na audiência
geral do passado dia 27 de abril, apresentou a sua reflexão sobre a parábola dita
do bom samaritano (cf Lc 10,25-37). Um doutor da Lei, abeirando-se de Jesus para o experimentar,
pergunta-lhe o que fazer para ter a vida eterna (v. 25). Jesus pede-lhe a ele a resposta. E o legista responde com os
mandamentos: “Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo
o teu pensamento; e ao teu próximo como a ti mesmo (v. 27). E Jesus, anuindo, responde: “Faz isto e viverás!” (v. 28).
À pergunta do
legista pergunta sobre quem seria o seu próximo, Jesus respondeu com a “parábola do homem que descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos
salteadores”. Prefiro chamar-lhe assim a
chamar-lhe parábola do bom samaritano,
já que também nos ensina, por antífrase, através do comportamento de
outros.
A parábola –
diz o Papa – “põe em cena um sacerdote, um levita e um samaritano”, ou seja,
dois homens “ligados ao culto do templo” e “um judeu hebreu cismático”, tido
como “estrangeiro, pagão e impuro”.
O sacerdote e
o levita deparam-se com um homem espancado, abandonado e moribundo, mas, apesar
de a Lei prescrever a obrigação do socorro, deixaram-se levar pela pressa do
serviço do Templo e pelo receio de se contaminarem com sangue impuro.
Desviam-se, pois, e seguem por outra via. O Pontífice, pelos apartes que faz,
mostra que hoje os comportamentos são parecidos em muitos casos, enuncia aqui
logo um primeiro ensinamento:
“Não é automático que quantos
frequentam a casa de Deus e conhecem a sua misericórdia saibam amar o próximo.
Não é automático! Tu podes conhecer a Bíblia inteira, podes conhecer todas as
rubricas litúrgicas, podes conhecer toda a teologia, mas do conhecer não nasce
espontaneamente o amar: o amar segue outro caminho; é necessária a
inteligência, mas também algo mais...”.
Sacerdote e
levita não advertiram que
não existe culto autêntico
se não se traduzir em serviço ao próximo. Assim:
“Nunca podemos esquecer: ante o
sofrimento de tantas pessoas extenuadas pela fome, pela violência e pelas
injustiças, não podemos permanecer espectadores. Que significa ignorar o
sofrimento do homem? Significa ignorar Deus! Se não me aproximo daquele homem,
daquela mulher, daquela criança, daquele idoso ou daquela idosa que sofre, não
me aproximo de Deus.”
Porém, o samaritano,
isto é, o desprezado, que também tinha “os seus compromissos e afazeres”, “encheu-se
de compaixão” (v. 33). O coração “estava sintonizado com
o coração do próprio Deus”. E a “compaixão” (‘padecer com’) é “característica essencial da
misericórdia de Deus”, que “padece ao nosso lado, sente os nossos próprios
sofrimentos”.
Assim, “nos
gestos e ações” do samaritano (e não nos do sacerdote ou do levita), “reconhecemos o agir misericordioso de Deus em toda a
história da salvação”, pois, como diz o Papa:
“É a mesma compaixão com a qual o
Senhor vem ao encontro de cada um de nós: Ele não nos ignora, conhece as nossas
dores, sabe como temos necessidade de ajuda e de consolação. Aproxima-se de nós
e nunca nos abandona”.
Com efeito, o
samaritano comporta-se com verdadeira misericórdia: cura as feridas do homem,
leva-o para a hospedaria, cuida pessoalmente dele e provê à sua assistência – o
que “nos ensina que a compaixão, a caridade, não é um sentimento incerto”, mas
implica “cuidar do outro até pagar pessoalmente por ele”, ou seja, “comprometer-se
dando todos os passos necessários para se aproximar
do outro até se identificar com ele: Amarás
o teu próximo como a ti mesmo”. Não basta pensar ou sentir quem é o meu
próximo, mas é preciso que eu queira e saiba ser próximo de quem precisa.
A novidade da
mensagem de Cristo em torno do preceito, “amarás
o teu próximo como a ti mesmo”, é justamente esta: tornar-se próximo do outro sem
esperar que ele seja próximo nosso. Por isso, “Jesus inverte a questão
do doutor da Lei” ao perguntar: “Qual
destes três parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos
salteadores?” (v. 36). E o legista respondeu sem inequívoco:
“Aquele que foi misericordioso para com
ele” (v. 27). No início, “para o sacerdote e
para o levita o próximo era o moribundo”; mas, “no final, o próximo é o
samaritano que se fez próximo”. Por isso, o Pontífice comenta:
“Tu podes
tornar-te próximo de quem quer que se encontre em necessidade, e sê-lo-ás se no
teu coração sentires compaixão, ou seja, se tiveres a capacidade de padecer com
o outro”.
Quando o
legista perguntou quem seria o seu próximo, certamente esperava uma resposta que
remetesse para os parentes, amigos, compatriotas ou correligionários. Ora Jesus,
ao pregar o perdão a dar sempre a todos os que nos ofendem (Mt 18,21), ao mandar amar até os inimigos e rezar pelos que nos
perseguem e caluniam (Mt
5,44), rejeita a ideia
da enunciação de “uma regra clara” que nos “permita classificar os outros em próximos e não próximos, naqueles que podem tornar-se próximos e em quantos não
podem tornar-se tais”. E, reparando que o doutor da Lei percebeu que tinha de
ser ele a tornar-se próximo de quem precisa, despediu-o dizendo: “Vai, e também
tu faz o mesmo!” (Lc 10,
37).
Por isso, no
final da sua reflexão catequética, Bergoglio diz-nos que a “parábola é para
todos nós uma dádiva maravilhosa, mas também um compromisso”, pois, “a cada um
de nós, Jesus repete o que disse ao doutor da Lei”. Pelo que “somos todos
chamados a percorrer o mesmo caminho do bom samaritano, que é a figura de
Cristo”, o qual se debruçou “sobre nós”, se fez “nosso servo”, e assim “nos
salvou, para que também nós pudéssemos amar-nos como Ele nos amou”.
***
Talvez o Evangelho
e a reflexão catequética de Francisco forneçam os critérios de apreciação justa
do caso do padre e da funcionária, a qual também parece ter problemas familiares.
2016.04.29 – Louro de Carvalho
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