Aponta-se, não raro, à União Europeia um défice democrático, expresso na multiplicidade
e rigidez das diretivas que os Estados-Membros devem transpor para o seu ordenamento
jurídico e na interferência assídua e irritante nos negócios dos mesmos. Tal ímpeto
antidemocrático resplende, de forma eminente, na relação com os países periféricos,
sobretudo os que tiveram necessidade de intervenção externa, seja por motivos
conexos com o exercício das funções de soberania, seja por motivos ligados com
o sistema financeiro ou o devir económico.
No entanto, as instituições da União Europeia (UE) apresentam-nos
uma prestigiada instituição a quem deveria ser entregue o cerne do poder político
europeu. Trata-se do Parlamento Europeu. Este é o único órgão da UE diretamente
eleito pelos cidadãos dos diversos países. Diz-se que a elevada abstenção em eleições
europeias se deve ao facto de a Europa estar mais perto da burocracia e dos
interesses dos grandes e longe dos cidadãos, tornando-se frágil nas posições que
toma face aos problemas comunitários, de cada um dos países que a compõem e
frente às situações problemáticas que afetam o Globo.
O panorama europeu ficaria, pois, mais enriquecido se efetivamente o poder
político residisse no Parlamento e a Comissão Europeia se centrasse sobretudo
na proposta legislativa e na execução das decisões daquela assembleia democrática
sob a superior coordenação dos conselhos de ministros europeus, quer a nível dos
conselhos Chefes de Estado e de Governo, quer a nível dos conselhos de ministros
setoriais. Por isso, é que o discurso do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, no
passado dia 13 de abril, tem a sua justificação por fazer vir ao de cima as
bases iniciais do projeto europeu e as razões que levaram o Estado Português a
acreditar nele e a aderir a ele. Com efeito, não faz sentido que os 30 anos de
pertença portuguesa à UE constituam para os portugueses um horizonte temporal
com sabor a desilusão e a frustração.
Assim, Marcelo, que foi convidado pelo Presidente do Parlamento Europeu
para discursar naquela assembleia um mês depois de ter assumido funções como Presidente
da República Portuguesa, chama a este Parlamento a “Casa da Democracia” da e para
a Europa. E justifica:
“Casa da Democracia porque a nenhuma
outra instituição europeia, e a esta escala, subjazem os princípios da
liberdade, da segurança, do humanismo, da participação dos cidadãos, que esta
Assembleia – e cada um dos seus membros – representa e garante”.
E, depois de
referir que poder estar naquela Casa “é sinal da relevância que a integração
europeia assumiu no nascimento e na afirmação da democracia portuguesa”, tece
considerações sobre as razões e circunstâncias da integração de Portugal na
Europa, assinalando que ela constituiu um “sonho, inseparável da Democracia, da
Descolonização, do Desenvolvimento económico e da Justiça Social”. Com efeito,
todos os portugueses da geração de Rebelo de Sousa recordam os três objetivos
do programa do Movimento das Forças Armadas que enquadrou a revolução abrilina,
objetivos conhecidos por os 3 D, que
Marcelo reiterou no seu discurso, acrescentando o da Justiça Social, que pautou os esforços de negociações com vista à
integração na então Comunidade Económica Europeia.
A este
respeito, o Presidente explica as duas razões que motivaram os esforços para a adesão:
“A conversão da ditadura em
democracia passava pelo fim do Império, mas não menos pela afirmação da
pertença de Portugal à Europa, seu berço geográfico, histórico e cultural. E,
mais claramente a partir dos anos 60 do século passado, destino da sua
principal emigração e origem e destino do seu comércio”.
E a Europa
em que os portugueses acreditavam era a “Europa em si mesma” e aquilo que ela
representava “como exemplo de paz, de solidariedade, de crescimento, de
equidade social, de vivência cultural” e, ainda, “como incentivo à construção
de um Portugal Novo”.
A seguir,
enumera algumas circunstâncias marcadamente pessoais, como: a sua integração da
primeira delegação universitária às Comunidades, no período revolucionário; a
influência europeia na sua atividade de deputado constituinte; a maneira como acompanhou
o pedido de adesão, em 1977, as longas negociações até 1985 e “a laboriosa
construção da moeda única”; e a viabilização, enquanto líder da oposição, de
três orçamentos de um governo minoritário, com vista à entrada do país na zona
Euro. E fez ainda referência ao facto de um português ter sido presidente da
Comissão e elogiou o trabalho de todos os eurodeputados portugueses.
***
No pressuposto
de que “as convicções antigas e fortes nunca mudam”, assegura a convicção do “papel
insubstituível da União Europeia, na Europa e no mundo” e da fidelidade de Portugal
“a esta constante da sua estratégia nacional”. É assim que, ao celebrar-se “o
40.º aniversário da sua Constituição, a carta fundadora da liberdade e da
democracia em Portugal”, é de salientar o contributo que “as Comunidades
europeias desempenharam na consolidação da democracia portuguesa, bem como a importância
do “contributo da União Europeia para o desenvolvimento do meu País e para a
melhoria da qualidade de vida do seu povo”. Tendo aproveitado “com êxito os
fundos estruturais provindos da Europa, Portugal “modernizou o seu tecido
produtivo, qualificou a sua mão-de-obra, construiu infraestruturas essenciais”.
No entanto,
o Presidente confessou que, “para se ajustar às regras europeias”, o país deu “em
12 anos os passos” para os quais economias mais fortes tiveram disponíveis mais
de 40 anos e, ao mesmo tempo, arcou com as responsabilidades da descolonização a
que procedeu em 2 anos, vindo a acolher e integrar “700.000 nacionais e
africanos de língua portuguesa”. Por outro lado, apesar de o poder militar ter permanecido
no topo até 1982 (ano da 1.ª revisão da Constituição), Portugal saiu duma economia “parcialmente colonial,
rural e fechada” para a economia de tipo europeu, globalizada, aberta,
reprivatizada e com maior peso de serviços e novas indústrias.
Porém,
reconheceu que, dada dimensão do “preço destas mudanças em curto espaço de
tempo, “nem a utilização dos fundos comunitários” se revelou suficiente para a consolidação
delas.
Depois, a
crise mundial e europeia de 2008 e 2009 abateu-se nos seus efeitos sobre um país
ainda com “problemas estruturais” sem solução à vista, pelo que, durante três
anos e meio, foi objeto de um Programa de Ajustamento, em que intervieram a
Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. Segundo
o Presidente, aquela intervenção externa “testou a capacidade histórica dos
portugueses para resistirem às crises e aos sacrifícios pessoais de modo a que
o equilíbrio financeiros interno e externo pudessem vingar”.
Porém, é
discutível o orgulho que diz sentir por alegadamente poder dizer que “a Europa
não faltou no auxílio a Portugal e Portugal honrou os seus compromissos, saindo
de forma limpa do Programa de Ajustamento”. É que o apoio da Europa não foi
justo nem generoso; Portugal honrou os compromissos com sacrifício desmesurado,
no falso pressuposto da inevitabilidade; e a saída do programa de ajustamento foi
tudo menos limpa, como atestam os factos.
***
Sobre o
futuro, Marcelo reitera, no alinhamento com o XXI Governo, o desejo do país de “continuar
a garantir os equilíbrios financeiros”, enquanto procura “começar a compensar
setores sociais mais sacrificados no passado recente”, crendo que, a par das
exportações e do investimento privado, “também o consumo das famílias pode
criar crescimento e emprego”. A este respeito, sublinha o empenhamento diverso,
mas europeísta, dos dois governos, ora secundado “também por partidos de uma outra
relevante família europeia, que, até agora, tinham estado fora da área do poder
executivo constitucional em Portugal”.
E acentua
que, enquanto Presidente de todos os portugueses, embora oriundo de família política
diferente da atual maioria parlamentar, sente “que é essencial pacificar,
desdramatizar, cicatrizar feridas, reconstruir consensos”. Por isso, a sua mensagem
é de “estabilidade, recusa de crises políticas a somar às questões económicas e
sociais, procura de convergências alargadas, reforço do sistema financeiro”, bem
como “desejo sincero de que tenha pleno sucesso o caminho exigente de
compatibilização entre rigor financeiro e preocupações sociais, assentes em
crescimento pelo dinamismo do mercado interno”.
***
O “europeísta
incorrigível” refere que a Europa com que sonha ele e a grande maioria dos
portugueses “enfrenta novos reptos”, mais complicados do que os do passado. Por
isso, “a reflexão sobre o futuro da União” deve insuflar nova vida ao modelo
que “permitiu à Europa viver um período de paz e prosperidade”, inédito na sua
História milenar. Pelo que se devem afastar “comportamentos xenófobos”,
combater “nacionalismos exacerbados”, rejeitar estéreis chauvinismos, recusar “isolacionismos
de outrora”. Para tanto, o debate europeu tem de assentar “num diálogo
constante com os cidadãos da Europa” e no respeito pelas “suas legítimas
aspirações a viverem num espaço de segurança, liberdade e justiça, a par dum território
comum de bem-estar e de solidariedade”. Assim, os líderes europeus e nacionais
devem estar atentos “a essas aspirações”, “à vontade manifestada nos termos
próprios das nossas sociedades democráticas” e à necessidade de uma “maior pedagogia
europeia e proximidade dos cidadãos”.
A Europa tem
de “manter-se unida e solidária, interna e externamente, atenta a possíveis
chegadas, desejando que não haja partidas”; deve buscar “sempre soluções
conjuntas para os efeitos sociais das guerras em zonas vizinhas, nomeadamente
no caso dos refugiados”; tem de saber superar “as ameaças do fanatismo
religioso e político e do terrorismo”; deve agir “solidariamente perante
difíceis contextos e dramáticos efeitos”; deve ambicionar “ter um peso político
mundial correspondente ao seu peso comercial”, pelo que tem de fazer ouvir a
sua voz e liderar “efetivamente causas universais, como, entre outras, a da
transparência financeira e a da justiça ambiental intergeracional”.
A Europa com
que sonha Marcelo é a Europa em que a Política e o Direito acompanhem “o ritmo
da realidade científica, técnica, económica, social e cultural”; é a Europa “que
recupere os povos, os eleitorados, os mais jovens, os esquecidos no termo das
suas carreiras profissionais, para uma causa que combata o crescente pessimismo
e o oposicionismo militante”; é a Europa que tenha “um projeto portador de
liberdade e justiça, democracia e solidariedade, transparência e enraizamento
popular”; é uma Europa otimista, que seja símbolo de futuro.
***
Não basta
que o Presidente do Parlamento Europeu tenha gostado da palavra “solidariedade”,
proferida por Marcelo. Importa é que a Europa arregace as mangas e trabalhe
como o professor Marcelo ensinou. Não aconteça que ele seja o último dos
moicanos a sonhar “Europa”.
2016.04.15 – Louro de Carvalho
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