terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Tribunal Constitucional dá luz verde à lei das ordens profissionais

 

Os juízes do Tribunal Constitucional (TC) pronunciaram-se, no dia 27 de fevereiro, pela não inconstitucionalidade da nova lei das ordens profissionais, tendo-se registado dois votos de vencido e a consequente declaração de voto.

“O Tribunal Constitucional não considerou desrespeitados quaisquer princípios ou normas constitucionais, não se pronunciando, consequentemente, no sentido da inconstitucionalidade de nenhuma das disposições fiscalizadas”, disse o presidente, João Caupers, que leu, em sessão pública, no Palácio Ratton, sede deste tribunal superior, a decisão do coletivo de juízes que valida a alteração legislativa promovida pelo Governo e remetida para fiscalização preventiva do TC a pedido do Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, formulado a 1 de fevereiro.

Segundo a nota publicada então, o PR considerava que o decreto da Assembleia da República (AR) suscitava “dúvidas relativamente ao respeito de princípios como os da igualdade e da proporcionalidade, da garantia de exercício de certos direitos, da autorregulação e democraticidade das associações profissionais, todos previstos na Constituição da República Portuguesa”. Por consequência, o chefe de Estado, “tendo em atenção a certeza e a segurança jurídicas”, decidiu submeter a fiscalização preventiva de constitucionalidade pelo TC, o Decreto n.º 30/XV da Assembleia da República, que “altera a legislação relativa às associações profissionais e o acesso a certas profissões reguladas”.

O diploma foi aprovado em votação final global, a 22 de dezembro de 2022, na AR, com votos favoráveis do Partido Socialista (PS), da Iniciativa Liberal (IL) e do Pessoas-Animais-Natureza (PAN). Contra estiveram o Partido Social Democrata (PSD), O Chega (C) e o Partido Comunista Português (PCP), enquanto o Bloco de Esquerda (BE) e o Livre (L) se abstiveram.

Agora, pelo Acórdão n.º 60/2023, o TC decidiu “não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas do Decreto n.º 30/XV da Assembleia da República, publicado no Diário da Assembleia da República, II Série – A, número 151 – Suplemento, de 23 de janeiro de 2023, e enviado ao Presidente da República para promulgação como lei, que procede à alteração da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais”, contidas: a) no artigo 2.º, na parte em que altera: o n.º 9 do artigo 8.º, a alínea e) do n.º 2 do artigo 15.º, a alínea a) do n.º 2 do artigo 19.º e o artigo 20.º, todos da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro; b) no artigo 3.º, na parte em que adita o artigo 15º-A à mesma Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, Lei das Associações Públicas Profissionais (LAPP). 

Após ter recebido o requerimento do PR, que apresentava as dúvidas de constitucionalidade quanto à composição do júri de avaliação dos estágios profissionais, à composição do órgão disciplinar (ambas por integrarem elementos não inscritos na respetiva ordem), ao estatuto do provedor (por alegada violação dos princípios da proporcionalidade e da autorregulação, às incompatibilidades para o exercício de quaisquer funções dirigentes na função pública (por alegada violação do princípio da igualdade) e à composição e competências do órgão de supervisão (por a maioria ser de não inscritos na respetiva ordem e o Presidente não poder ser um dos inscritos). Estas disposições, alegadamente, violariam o princípio da igualdade e o da proporcionalidade, a autonomia e a autorregulação no interior de cada ordem profissional. 

Previamente à sua decisão, o TC solicitou o esclarecimento do Presidente da AR, no atinente à génese (projetos do PS e do PA) e à evolução do processo legislativo, designadamente as entidades ouvidas (Conselho Nacional das Ordens Portuguesas, as várias Ordens, confederações sindicais, algumas associações, Autoridade da Concorrência e Provedora de Justiça), bem com as propostas de alteração (do PSD, do PS e do PCP) e os relatórios (da discussão na generalidade e da discussão e votação final global).

A fundamentar a decisão, os juízes do TC dissiparam as dúvidas do PR, com base na Jurisprudência do Tribunal, bem como na da Comissão Constitucional, que enformava as decisões do Conselho da Revolução em matéria da apreciação da constitucionalidade, antes da primeira revisão constitucional, e na doutrina formulada e fixada pelos constitucionalistas. Além disso, desmistificaram o sentido literal ou o sentido paraliteral (conforme os casos) de algumas normas constitucionais invocadas, não raro ao serviço de uma postura corporativista e do fechamento da organização e enclausuramento de associação profissional pública, que exerce um poder público por delegação do Estado, mas que tende a esquecer o interesse público e a lesar os utentes.  

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Em reação ao acórdão do TC, o bastonário da Ordem dos Economistas disse que o Tribunal é “competente nesta matéria e tomou a decisão: está tomada”. “É um órgão de soberania e cabe-nos, naturalmente, respeitar as decisões que são tomadas”, insistiu em entrevista à RTP, frisando, no entanto, que o facto de o TC considerar que não é inconstitucional “não quer dizer que não seja inapropriada”.

António Mendonça sustenta que a contestação tem a ver com o facto de as alterações legislativas que foram aprovadas relativamente à legislação anterior (de 2013 a 2015) serem “inapropriadas do ponto de vista do exercício e das competências próprias das ordens enquanto associações públicas profissionais”, sendo ainda “limitadoras do próprio funcionamento democrático das instituições”. E avançou à RTP que já estava marcada uma reunião das ordens profissionais para o dia 1 de março, para fazer o ponto de situação e analisar de que modo podem as ordens atuar após a decisão do TC.

Após a decisão do TC, cabe ao Presidente da República promulgar o diploma para valer como lei ou vetá-lo politicamente, devolvendo-o à AR, com mensagem a expor as razões políticas da discordância. Não obstante, Marcelo Rebelo de Sousa revelou que promulgará o diploma sobre as ordens profissionais, considerado constitucional pelo TC. Com efeito, o que o chefe de Estado pretendia era “segurança” e “certeza”.

“Havia 18 ou 19 ordens profissionais que entendiam que o diploma era muito inconstitucional, o governo entendia o contrário, tal como a maioria da Assembleia da República, nada como o TC clarificar isso”, afirmou o chefe de Estado em declarações aos jornalistas, no final de uma cerimónia no Instituto Superior Técnico, em Lisboa.

Para Marcelo Rebelo de Sousa, a decisão do TC “significa que deu luz verde à maioria do parlamento e ao governo para fazer a intervenção pretendida em termos do novo regime” das ordens profissionais.

Como escrevia o constitucionalista Vital Moreira, a 2 de fevereiro, o PR não tem razão quanto à objeção do suposto “princípio de autorregulação” das ordens profissionais, pois não há “nenhum direito constitucional nem a criar ordens profissionais nem à autorregulação profissional”. São decisões discricionárias do Estado, que precisam de fundamentação e que são reversíveis.

A única condição constitucional é a gestão democrática (autogoverno) das ordens profissionais que sejam criadas (o que não está em causa), sem prejuízo da tutela estadual, por serem entidades públicas no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado.

Quanto à regulação e disciplina profissional, que pertencem originariamente ao Estado, este só a atribui às ordens profissionais, como autorregulação e autodisciplina, nas condições estabelecidas na lei, não havendo direito natural ou constitucional a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta da parte das ordens.

As ordens não são apenas entidades reguladoras, São também entidades de representação e defesa de interesses profissionais, o que gera o risco de enviesarem o exercício dos seus poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em função dos interesses corporativos e em prejuízo dos utentes e do interesse público. Este fator pode justificar a imposição de um provedor dos direitos dos clientes e a participação de leigos nos órgãos de supervisão e de disciplina profissional, o que não lhes prejudica a autonomia.

Para Vital Moreira, como para o TC, o facto de o conselho de supervisão não ser composto só por membros designados pelos órgãos eletivos das ordens (pois inclui membros cooptados) não viola o princípio democrático, o qual só vale para os órgãos de governo das ordens (conselho e bastonário), não fazendo sentido aplicá-lo ao órgão oficial independente de regulação profissional, com poderes delegados pelo Estado.

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As ordens ou associações profissionais públicas têm de se adaptar ou esperar por nova maioria parlamentar.

2022.02.28 – Louro de Carvalho

Fuga laboratorial terá originado a pandemia de covid-19?

 

A dúvida persiste e a recente conclusão do Departamento de Energia dos Estados Unidos da América (EUA) quanto à origem do novo coronavírus, o SARS CoV-2, divide as restantes autoridades norte-americanas, nomeadamente os serviços secretos, que caraterizam a descoberta como de baixo grau de confiança. A questão prende-se com a desconfiança EUA-China.

Agora, o Departamento de Energia acredita que uma fuga acidental de um laboratório na China terá causado a pandemia. Porém, de acordo com The Wall Street Journal, as conclusões a que chegou o Departamento de Energia não têm base sólida, tendo muitas autoridades e agências mantido a ideia anterior, de que a pandemia terá começado num mercado de alimentos e animais vivos em Wuhan. E o jornal The New York Times vinca que algumas teses do Departamento de Energia provêm de estudos da rede de laboratórios nacionais, que conduzem pesquisas biológicas, em vez de recorrerem a redes de espionagem ou de interceção de telecomunicações.

Os serviços de informação já tinham alertado para a dificuldade – ou mesmo impossibilidade – de se concluir, com certeza, o que espoletou a pandemia que matou quase sete milhões de pessoas, devido à oposição de Pequim a novos estudos. E, agora, Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, recusou-se a confirmar a informação sobre as conclusões do Departamento de Energia, asseverando que não há “respostas definitivas”. Apenas adiantou que Joe Biden deu ordem para que os laboratórios do país se envolvessem nas investigações e mobilizassem “todas as ferramentas” de que o Governo dispõe. E, sendo encontradas novas informações, o Executivo norte-americano comunicará as descobertas ao Congresso e à população.

A 8 e 9 de março, os líderes das secretas norte-americanas responderão perante o Congresso sobre os dados das ameaças globais. Segundo o The New York Times, Avril D. Haines, diretora dos serviços de informação, e outros altos funcionários das secretas serão questionados sobre a investigação em curso referente às origens do coronavírus. A questão tem dividido os dois lados do espectro político nos EUA. Muitos democratas duvidam da possibilidade de fuga de um laboratório chinês e procuram “causas naturais” para a explicar. Ao invés, grande parte dos republicanos crê que o vírus pode ter tido origem num dos laboratórios científicos em Wuhan. E um subcomité do Congresso, criado quando os republicanos assumiram a Câmara dos Representantes, em janeiro, tornou a teoria da fuga o foco central do seu trabalho.

As autoridades de Pequim rejeitam as alegações de libertação de material biológico de laboratório em Wuhan, aduzindo que não têm base científica e que foram motivadas politicamente.

No início do seu mandato, Joe Biden pediu aos serviços de informação que investigassem as origens da pandemia, depois de terem criticado o comunicado da Organização Mundial de Saúde (OMS), publicado em março de 2021, que chegava à conclusão de que era “extremamente improvável” que o coronavírus tivesse sido libertado, acidentalmente, de um laboratório. Contudo, os EUA alegam que a China nomeou metade dos cientistas que redigiram o documento, tendo exercido grande pressão sobre eles. E os serviços de informação reconheceram que não há razão para acreditar que o coronavírus tenha sido criado para constituir uma arma biológica, mas defendem que o surto ter-se-á gerado num mercado em Wuhan ou em fuga laboratorial.

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O enviado especial da OMS para a covid-19, David Nabarro, admitia, a 30 de março, antes de a OMS publicar o relatório, que era “manifestamente difícil” encontrar a origem do vírus, mas que se trabalhava com várias hipóteses. “Encontrar a origem de um vírus, quando se tenta explicar de onde vem uma doença, é manifestamente difícil”, dizia Nabarro à BBC Radio 4, pois não se sabe a origem precisa do VIH [o vírus que provoca a Sida], nem a do Ébola e vai demorar muito a descobrir a origem da covid-19. Porfiando que a organização trabalhava com várias hipóteses – aliás como assegurara o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus –, dizia que esse trabalho levava tempo. E o relatório veio a sustentar que a teoria mais provável da origem da pandemia terá sido a transmissão do vírus de morcegos para humanos por meio de outro animal, enquanto a hipótese de fuga do vírus de um laboratório era “extremamente improvável”.

Assim, a possibilidade de um vírus ter escapado de um laboratório chinês, parecia posta de parte, segundo a Associated Press (AP), que acedera à versão preliminar do relatório.

Uma equipa internacional de cientistas da OMS fora encarregada de rastrear a origem da covid-19 na China, onde chegou, em janeiro de 2021, e de onde se comprometeu a explorar “todas as vias” para o nascimento do vírus que parou o mundo, mas sem apontar culpados diretos.

As conclusões eram conhecidas, mas a AP, que recebera a versão quase final do relatório, não identificava a fonte (um diplomata) por a revelação das conclusões não estar ainda autorizada.

Os cientistas identificaram quatro possíveis cenários e o primeiro era a transmissão do vírus através de um segundo animal. O vírus originara-se em morcegos, que o passaram a outra espécie, que o fez chegar aos humanos. Essa hipótese era mais provável do que a passagem de morcegos para um produto alimentar e só depois aos humanos. Porém, lia-se na descrição da AP, “a distância evolutiva entre esses vírus de morcego e o SARS-CoV-2 é estimada em várias décadas”, o que sugere a hipótese “um elemento em falta”. Além dos morcegos, também são tidos como possíveis portadores da doença pangolinsvisons gatos – todos vulneráveis à covid-19.

Peter Embarek, um dos líderes da perícia da OMS na China, mais precisamente em Wuhan, onde o vírus terá começado, afirmava que o relatório estava feito, verificado e traduzido. E Jamie Metzl, membro do Comité de Conselheiros Internacionais da OMS, evocava “a destruição de amostras médicas e a censura imposta a quem tenha informação”, por parte do regime chinês, como indícios de que a fuga acidental de um laboratório era a tese mais credível, o que a informação revelada pela AP vem contrariar. A AP dizia não haver conclusões definitivas, até porque existem relatos credíveis de outros casos, noutros pontos do país, antes desses.

Liang Wannian, ex-membro da direção da Comissão Nacional de Saúde chinesa, principal perito chinês da missão da OMS, excluiu a possibilidade de fuga laboratorial ter originado a pandemia, contrariando o diretor-geral da organização, Tedros Ghebreyesus.

Depois de a OMS ter anunciado, para breve, a publicaçáo do relatório da missão enviada à China, Liang Wannian deu uma entrevista ao jornal oficial chinês Global Times, a desviar o foco da tese da origem laboratorial. “A equipa de especialistas concordou, por unanimidade, que é extremamente improvável que o vírus tenha sido libertado do laboratório, portanto, as missões futuras de rastreamento da origem do vírus não estarão focadas nesta área, a menos que haja novas provas”, disse Liang, recusando que o atraso na entrega do relatório se tenha devido a divisões entre os peritos, que afirmaram, em janeiro, que a hipótese de origem laboratorial era mais improvável do que outras, como a da transmissão do vírus de animal para humanos.

Peter Ben Embarek, líder da missão internacional, disse à revista Science que a missão não tinha meios para auditoria laboratorial completa para avaliar a hipótese de fuga de laboratório, enquanto Tedros Ghebreyesus disse, no mês anterior, que todas as hipóteses ainda estavam em aberto.

A hipótese de o vírus ter escapado do Instituto de Virologia de Wuhan foi publicamente levantada pela administração dos EUA, no final do mandato de Donald Trump. Resultado de meses de negociações com Pequim, a missão apresentou pareceres iniciais que foram saudados na China, mas criticados em muitos outros países pelas limitações a que foi sujeita no terreno.

Na entrevista ao referido jornal oficial chinês, Liang recusou haver “conflitos” entre os membros da equipa na elaboração do relatório, apenas “discussões normais sobre assuntos científicos”, defendendo que os peritos tiveram acesso a toda a informação que quiseram, mas que, por limitações legais, não puderam levar os dados para fora do país.

A 22 de fevereiro 2021, corria a notícia de que os especialistas da OMS que visitaram a China para estudar a origem da pandemia recomendariam um rastreamento mais profundo dos contactos do primeiro paciente conhecido. De acordo com a televisão norte-americana CNN, os especialistas queriam saber mais sobre a cadeia de fornecimento de quase uma dúzia de comerciantes no mercado de Huanan, na cidade de Wuhan, que se acreditava ter desempenhado papel fundamental na propagação da doença, no final de 2019. Segundo fontes citadas pela CNN, as recomendações do painel da OMS seguiriam vários pontos-chave da investigação. Os especialistas solicitariam mais detalhes sobre o histórico de contacto do paciente tratado a 8 de dezembro de 2019, em Wuhan – o primeiro caso confirmado pelos cientistas chineses. Era um funcionário de escritório, na casa dos 40 anos, que não fez viagens e sem histórico de contactos com outros infetados. O paciente esteve com a equipa da OMS e, no final da reunião, indicou que os pais visitaram um mercado de produtos frescos em Wuhan, não o mercado de Huanan.

Peter Daszak, membro da equipa, observou que os cientistas chineses garantiram que os pais do paciente testaram negativo para a doença, mas não terão rastreado os contactos deles no mercado.

Cientistas independentes disseram à CNN que os especialistas chineses deveriam ter realizado uma investigação mais aprofundada sobre as origens do vírus há vários meses.

Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional do presidente dos EUA, disse que a China não forneceu “dados importantes suficientes” sobre a origem e subsequente disseminação do vírus. “Eles estão prestes a publicar um relatório sobre as origens da pandemia em Wuhan, sobre o qual temos dúvidas, porque não acreditamos que a China tenha disponibilizado dados suficientes sobre as origens, sobre como a pandemia começou, na China, e depois em todo o mundo”, disse à CBS News. E rematou: “Não estou em  posição de dizer como o covid-19 veio a este mundo. Estou apenas em posição de pedir à OMS que faça o seu trabalho.”

Jamie Metzl, ex-elemento da Administração Clinton (trabalhou no Conselho Nacional de Segurança e no Departamento de Estado), considerou, a 19 de março de 2021, a “pista do laboratório” (fuga resultante de acidente) a “mais credível”. Explicou-o em carta aberta com dezenas de peritos. E disse que “a reação da China reforça suspeitas de fuga do laboratório de Wuhan”. Por isso, a Casa Branca esclarecia que a origem do surto, por contacto com animais infetados ou por descuido laboratorial, continuava por determinar.

Metzl fala em politiquices. “Se tivéssemos uma pandemia com origem, por exemplo, em África, não ficava pedra sobre pedra. […] Neste caso, a China é o obstáculo principal à investigação. É essencial perceber como o vírus surgiu. Senão, como se prevenirá algo parecido no futuro?”

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Resta saber se esta conclusão do Departamento de Energia dos EUA será política ou faseada em amostras significativas e validadas cientificamente e em investigação forense. Aguardemos.

2023.02.27 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

A incerteza da eficácia da máscara é como a do guarda-chuva

 

Andou o Mundo, em dois anos, fiado numa certa eficácia das máscaras para conter a “surpresa” da covid-19 e, agora, estudos ditos científicos põem em causa a eficácia desse instrumento de proteção individual e também fautor da proteção coletiva. É certo que houve outras formas de combater a propagação do SARS-CoV-2, mas a máscara foi imposta, praticamente, em todos os lugares e mantém-se obrigatória em alguns. Vêm agora a que propósito?

A CNN Brasil (24/02) e o Expresso (27/02) dão-nos conta de que o estudo “Intervenções físicas para interromper ou reduzir a propagação de vírus respiratórios” – que se arvora em revisão sistemática e agregação, em que pontificam epidemiologistas britânicos – analisou os resultados de 78 pesquisas feitas em várias partes do Mundo, antes e durante a pandemia de covid-19, para determinar a eficácia real do uso de máscaras e da higiene das mãos, para deter a transmissão de doenças respiratórias, como a covid, a infeção respiratória aguda grave e a gripe.

Pronunciando-se sobre a eficácia da proteção de boca e nariz contra gripes, durante a última pandemia, concluem que, “provavelmente”, usar máscara “faz pouca ou nenhuma diferença”.

A principal conclusão causou grande surpresa e polémica: “Não há certeza se o uso de máscaras ou respiradores N95/P2 ajuda a retardar a propagação de vírus respiratórios”, disseram os epidemiologistas. Nestes termos, segundo eles, “o uso de máscara pode fazer pouca ou nenhuma diferença em quantas pessoas contraíram uma doença semelhante à gripe ou à covid-19; e, provavelmente, faz pouca ou nenhuma diferença em quantas pessoas têm gripe ou covid-19 confirmada por um teste de laboratório”.

Como fica explícito, os próprios autores do estudo alertam para inconsistências nos dados. E os especialistas em saúde pública portugueses também levantam dúvidas sobre os resultados. Quer dizer que a única conclusão segura é a dúvida, prevalecendo a incerteza sobre matéria tão grave, o que parece dar razão aos céticos.

Boa parte da polémica foi criada por um artigo do jornalista norte-americano Bret Stephens publicado no jornal The New York Times. O jornalista conservador que já questionou, no passado, as mudanças climáticas, mas que mudou de ideia após uma viagem à Groenlândia, declarou que o estudo comprovaria que as máscaras simplesmente não ajudam em nada na tentativa de deter a covid-19. “Aqueles céticos que foram furiosamente ridicularizados como excêntricos e ocasionalmente censurados como ‘desinformadores’ (por serem contra as máscaras) estavam certos. Os principais especialistas que apoiaram (as máscaras) estavam errados. Num mundo melhor, caberia a este último grupo reconhecer o seu erro, juntamente com os seus consideráveis custos físicos, psicológicos, pedagógicos e políticos”, escreveu.

O artigo é criticado na Internet pelo exagero e atendendo ao caráter não definitivo do estudo.

Da autoria da organização sem fins lucrativos Cochrane Library, base de dados de revisões sistemáticas de estudos científicos (entidade muito respeitada pelos seus estudos relacionados à saúde pública), para qual trabalharam 12 epidemiologistas, liderados pelo professor britânico Tom Jefferson, a avaliação agora publicada assenta na meta-análise de 78 trabalhos sobre a utilização de máscara e a higienização das mãos durante períodos gripais até 2016, incluindo a gripe pandémica de 2009, e na pandemia de SARS-CoV-2. Os autores, muito conceituados na área, escrevem que a utilização de máscara, “provavelmente, faz pouca ou nenhuma diferença” na transmissão de ambos os vírus respiratórios. Isto é, não evita o contágio. 

Já a lavagem das mãos tem, pelo menos, uma taxa de sucesso de 14%, “sugerindo um provável benefício”. “Seguir um programa de higiene das mãos pode reduzir o número de pessoas que contraem uma doença respiratória ou semelhante à gripe, ou têm gripe confirmada, em comparação com pessoas que não seguem esse programa”, disseram os epidemiologistas.

Contudo, é preciso confirmar que é mesmo assim, alertam.

Em todo o estudo é repetida a palavra “provável”. A justificação está no risco de viés nos dados de base dos artigos que integram a revisão pela Cochrane, que os autores dizem ser “muito elevado” ou até “desconhecido”.

A maioria dos 78 trabalhos científicos é relativa ao vírus influenza e apenas seis à covid-19, no caso feitos no México, Dinamarca, Bangladesh, Inglaterra e Noruega. Os dados foram recolhidos em múltiplos contextos, como escolas, unidades de saúde, na comunidade, entre outros, e em todos os tipos de países, dos subdesenvolvidos aos mais ricos. Com efeito, a diversidade na informação é essencial para apurar conclusões. Não obstante, pode ser uma barreira, quando não é sujeita ao método científico. Por isso, os autores são cautelosos: “O elevado risco de viés nos estudos, a variação na medição dos resultados e a relativa adesão às intervenções (máscara e lavagem das mãos) durante os estudos dificultam tirar conclusões seguras.”

Aliás, como refere o Expresso, os autores referem que são necessários estudos sobre a utilização das máscaras concomitantemente com outras intervenções físicas para evitar o contágio, sobretudo em idosos e crianças. “De certeza que a máscara teve um impacto importante em conjunto com o distanciamento, o confinamento e a lavagem das mãos. Este estudo é muito importante para nos alertar para a necessidade de uma avaliação científica rigorosa do que se passou durante a pandemia”, diz Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública. E dá o exemplo da China: “Quando retiraram as medidas de proteção, tiveram 70% da população infetada.”

Partilhando com os peritos internacionais os receios sobre a qualidade dos dados, diz: “Grande parte da meta-análise é baseada em estudos até 2016, quando quase ninguém usava máscara. Nos estudos durante a pandemia, a utilização foi muito heterogénea e medir populacionalmente o uso de máscara é muito ineficaz e, assim, o impacto será muito limitado. Além disso, é dada a mesma importância aos 78 estudos, quando alguns têm apenas oito mil pessoas.”

Salienta haver “muitos outros estudos que dizem que a utilização correta de máscara é eficaz. “Quando olhamos para a evolução da pandemia em Portugal, vemos claramente as duas alturas em que Portugal se foi libertando das máscaras. Nesses dois momentos, houve mais casos, internamentos e mortes, com especial evidência na população mais velha, mostrando o impacto protetor prático que as máscaras tiveram. Isto é superevidente em maio de 2022, quando as máscaras deixaram de ser obrigatórias em quase todos os locais, com exceção dos serviços de saúde e lares.”

Também António Vaz Carneiro, presidente do Conselho Diretivo do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, sustenta que, respeitando os princípios da medicina baseada na evidência, medidas de grande impacto social exigem dados científicos muitíssimo sólidos. E defende: “É natural que os estudos, e este em particular, venham agora a ser mal interpretados por cada um dos lados. É um excelente trabalho para se pensar no futuro.”

Considerando que o estudo contraria uma das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) durante a pandemia, que foi o uso sistemático das máscaras respiratórias para evitar a disseminação do novo coronavírus e que a recomendação se mantém, a CNN Brasil ouviu Julio Croda, médico infeciologista da Fiocruz e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, que afirmou que “a revisão da Cochrane apesar da metodologia correta, não é a melhor forma de responder se as máscaras funcionam como medida de saúde pública”.

Julio Croda afirma que os próprios autores do estudo “deixam claro que, na maioria dos ensaios clínicos analisados, não houve um desenho adequado, com falha de acompanhamento e falta de importantes informações como a qualidade das máscaras, tempo de uso, adesão e utilização correta em adultos e crianças”. E lembra que “a evidência de eficácia no nível da população não é a mesma que a evidência em indivíduos ou em laboratórios” e que “os ensaios clínicos individuais não são um bom método para avaliar as intervenções populacionais”.

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Para lá da provável pouca eficácia, o aumento do número de horas de uso da máscara, acarreta sintomas incómodos. E Paula Filipa Moreira da Silva aponta, em Perceção do Impacto na Cavidade Oral do Uso Intenso de Máscaras de Proteção, de 2021 (que sintetizo), a vermelhidão nas bochechas, a boca seca, a ponta do nariz vermelha, as orelhas vermelhas, a transpiração e, no caso das máscaras N95, também a irritação cutânea, que geram outras infeções que requerem tratamento e cuidados.

Além destes incómodos, há o desconforto, a falta de ar, as tonturas e dores de cabeça, a que se juntam a diminuição dos níveis de oxigenação da hemoglobina, inversamente proporcional ao aumento do tempo de utilização da máscara, e as lesões no tecido local, resultantes das compressões provocadas pelos elásticos/tiras das máscaras, com efeito irritativo sobre os nervos sensoriais superficiais subjacentes com enfase no ramo do nervo trigémeo ou occipital que enervam o rosto, a cabeça e a região cervical. Por outro lado, a utilização da máscara pode trazer alterações do bem-estar geral a nível da cavidade oral, tornando a pessoa mais vulnerável a sensações de desconforto. Além disso, aumenta os níveis de higiene oral, pela sensação de halitose; o bruxismo, a tensão, a dor na articulação tempero-mandibular, em virtude do aumento do stresse e da ansiedade; o bloqueio na expressão facial, que leva à diminuição de percetibilidade de expressões e de posições labiais; a protusão da mandibula ou a invasão da dimensão de descanso muscular, pela sensação de boca seca, pelo estiramento repetitivo dos músculos ou pelo sistema esquelético orofacial, com alterações na interposição da oclusão dentária.

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São os custos e incómodos – geralmente efémeros – de um, até agora, provável benefício para o indivíduo e para a comunidade. Porém, é de salientar o caráter não definitivo do estudo em causa, apesar da enfatizada competência dos especialistas, tal como a conjugação do conjunto das medidas tomadas e impostas ou recomendas para conter a propagação da covid-19 e de outras infeções respiratórias: confinamento, higienização das mãos, distanciamento físico, uso da máscara, desinfeção de superfícies, etiqueta respiratória, vacina. Cada uma das medidas é insuficiente, mas a conjugação delas evitou muitos dissabores à comunidade.

Aliás é como a (in)suficiência do guarda-chuva: protege da chuva, mas não totalmente, sobretudo se o vento soprar forte. Por isso, também se usa o gorro, a gabardina, as botas, etc.

2023.02.27 – Louro de Carvalho    

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Colocar Deus no centro da nossa existência é o apelo da Quaresma

 

Ainda em início da caminhada quaresmal, aberta pela Quarta-feira de Cinzas, a Palavra de Deus, neste 1.º domingo quaresmal, constitui um convite à conversão, que postula colocar ou recolocar Deus no centro da nossa vida, disponibilizando-nos para a comunhão com Ele e concretizando, fielmente, no Mundo, o seu desígnio de paz e de felicidade para todos. 

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Da 1.ª leitura (Gn 2,7-9;3,1-7), deduzimos que Deus criou o homem para a felicidade e para a vida sem labéu. Escutando-O e não nos fechando no egoísmo, conhecemos a felicidade; porém, se prescindimos d’Ele, incorremos na prepotência e construímos vias de sofrimento e de morte.

O relato javista da criação (Gn 2,4b-3,24) é um texto do século X a.C., que terá aparecido em Judá, na época do rei Salomão. Tem um estilo exuberante, colorido e pitoresco, o que lhe dá o tom de obra de um catequista popular a ensinar com imagens coloridas e fortes.

O seu escopo não é científico ou histórico, mas teológico: mais do que explicar como apareceram o Mundo e o Homem, o autor quer vincar que na origem da vida e do homem está Javé.

Para apresentar esta catequese aos homens do século X a.C., os teólogos javistas recorrem a elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por exemplo, a formação do homem do pó da terra é um elemento dos mitos de raiz mesopotâmica). Todavia, transformam e adaptam os símbolos retirados das narrações lendárias de outros povos, dando-lhes novo enquadramento e nova interpretação, ao serviço da catequese e da fé de Israel. Assim, a linguagem e a apresentação literária das narrações bíblicas da criação apresentam paralelos com os mitos originários dos povos do Crescente Fértil, mas são muito diferentes as conclusões teológicas, principalmente as respeitantes a Deus e ao lugar que o homem ocupa no projeto de Deus.

A primeira parte (cf Gn 2,7-9) do trecho desta dominga desenvolve-se em dois quadros.

O primeiro pinta – a cores quentes e sugestivas – a origem do homem: “o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe nas narinas um sopro de vida”. O verbo usado para descrever a ação de Deus é yasar (formar, modelar), verbo ligado ao trabalho do oleiro. Deus aparece, pois, como o oleiro que modela a argila. Estamos próximos da conceção mesopotâmica, onde o homem é criado pelos deuses a partir do barro, como denota o jogo de palavras adam (homem) e adamah (terra), sugerindo que o homem (adam) vem da terra (adamah) e que, morrendo, voltará à terra de onde foi tirado. Porém, o homem não é apenas terra, porque recebe o sopro (neshamá) de Deus. A palavra hebraica utilizada significa sopro, hálito, respiração. É a vida que vem de Deus que torna o homem vivo. Por isso, o homem tem algo de divino, pois a sua vida procede de Deus. É de relevar o cuidado de Deus na criação do homem: Deus modela, qual oleiro, cuidadosa e amorosamente a sua obra e transmite-lhe a vida divina. O homem aparece, pois, como o centro do projeto de Deus, ocupando um lugar especial na criação, sendo que tudo foi criado para ele.

No segundo quadro, o autor javista reflete sobre a situação do homem criado por Deus. Deus não criou o homem para ser escravo dos deuses e prover ao sustento das divindades, como nos mitos mesopotâmicos. Na ótica deste catequista, o homem foi criado para ser feliz, em comunhão com Deus. Para descrever a situação ideal do homem, criado para a realização plena, o javista coloca-o num jardim cheio de árvores de fruto. Para um povo que sentia pesar sobre si a ameaça do deserto árido, o ideal de felicidade seria um lugar com muitas árvores e muita água.

Nessa vegetação abundante, o autor destaca duas árvores especiais: a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. A primeira simboliza a imortalidade concedida ao homem. Ao falar desta árvore, o autor estará a pensar na Lei. Desde o início, Deus ofereceu ao homem a possibilidade da vida imortal, que passa por uma vida percorrida no caminho da Lei e dos seus mandamentos. Ao lado da árvore da vida e em contraposição a ela (pois traz a morte), está a árvore do conhecimento do bem e do mal, que simboliza o orgulho e a autossuficiência de quem acha que pode conquistar a felicidade, prescindindo de Deus. Comer dessa árvore significa fechar-se em si próprio, querer decidir só por si o que é bem e o que é mal, pôr-se no lugar de Deus, reivindicar autonomia total em relação ao criador. O homem que renuncia à comunhão com Deus resolve seguir o caminho da morte.

A ideia do catequista é: Deus criou o homem para ser feliz; deu-lhe a possibilidade de vida imortal; mas o homem pode escolher prescindir de Deus e percorrer vias onde Deus não está.

Na segunda parte do trecho em causa (Gn 3,1-7), o autor equaciona a questão do mal. O mal que desfeia o Mundo e impede o Homem de ter vida plena vem das opções erradas que o homem tem feito, desde o início da história. Para dizer isto, o autor javista recorre à imagem da serpente. Entre os povos antigos, a serpente, cujo culto estava difundido entre os cananeus, é o símbolo, por excelência, da vida e da fecundidade (mercê da sua configuração fálica). Nos santuários cananeus invocavam-se os deuses da fertilidade (representados, não raro, pela serpente) e faziam-se rituais mágicos para assegurar a fecundidade dos campos. E os israelitas, instalados ali, deixaram-se fascinar por esses cultos e praticavam esses rituais para obterem a fecundidade dos campos e dos rebanhos. Porém, isso significava prescindir de Javé e da Lei, com os seus mandamentos. A serpente surge, portanto, como símbolo de tudo o que afasta os homens de Deus e do seu desígnio.

Em síntese, Deus criou o homem para ser feliz e indicou-lhe a via da imortalidade e da vida plena. Contudo, o homem tenta-se à rota do orgulho e da autossuficiência e vive à margem de Deus e do seu desígnio. E é essa a origem do mal, que destrói a harmonia do mundo.

***

O Evangelho (Mt 4,1-11) apresenta o exemplo de Jesus, que recusou – em absoluto – uma vida vivida à margem de Deus e do seu desígnio. Com efeito, a Palavra de Deus, por vezes invocada de forma enviesada, garante que, na perspetiva cristã, vida que ignore o desígnio do Pai e aposte em esquemas de realização pessoal é vida perdida e que toda a tentação de ignorar Deus é de iniciativa diabólica, pelo que o cristão a deve rejeitar com firmeza, sem dialogar com ela.

A cena das tentações antecede, em Mateus, como nos outros sinóticos, a vida pública de Jesus. A cena segue-se imediatamente – em termos cronológicos e lógicos – ao Batismo. Porque recebeu o Espírito (batismo), Jesus pode afrontar e vencer a tentação da proposta de atuação messiânica que o convida a subverter a proposta do Pai.

Mateus diz que “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, a fim de ser tentado pelo demónio”. Os quarenta dias e quarenta noites que, segundo o relato, Jesus aí passou, resumem os quarenta anos da travessia de Israel pelo deserto. Nas mentes judaicas, o deserto é o lugar da “prova”, onde os israelitas experimentaram a tentação do abandono de Javé e do seu plano de libertação, mas também é o lugar do encontro com Deus e da descoberta do seu rosto, o lugar onde o Povo fez a experiência da sua fragilidade e pequenez e aprendeu a confiar na bondade e no amor de Deus. Porém, Jesus, no deserto, aprimorando o encontro com o Pai, mostra como resistir à tentação.

O relato mateano não resulta da observação presencial do combate teológico entre Jesus e o diabo. É, antes, uma página de catequese, com vista a ensinar que Jesus, tendo sentido a mordedura das tentações, soube pôr acima de tudo o desígnio e vontade do Pai e resistiu fundamentadamente.

O relato de Mateus, bem como o de Lucas, parte do relato, muito curto, de Marcos, mas ampliando o relato original, com um diálogo entre Jesus e o diabo, feito de citações do Antigo Testamento (AT), sobretudo do livro do Deuteronómio (DT).

A catequese sobre as opções de Jesus aparece em três quadros parabólicos.

O primeiro sugere que Jesus podia ter escolhido a via da realização material, da satisfação de necessidades físicas. É a tentação de fazer dos bens materiais a prioridade da vida. Contudo, Jesus sabe que “nem só de pão vive o homem” e que a realização do homem não está na acumulação de bens. A sua resposta cita Dt 8,3 e sugere que o seu alimento, a sua prioridade, não é um esquema de enriquecimento rápido, mas é o cumprimento da Palavra (vontade) do Pai.

O segundo quadro sugere que Jesus podia ter optado pela via do êxito fácil, mostrando o seu poder com gestos espetaculares e sendo aclamado pelas multidões, dispostas a deixarem-se fascinar pelo “show” mediático. E Jesus responde a esta tentação, citando Dt 6,16 e sugerindo que não está interessado em utilizar os dons de Deus para satisfazer projetos pessoais de êxito e de triunfo. Não tentar o Senhor Deus significa não exigir de Deus sinais e provas que sirvam para a promoção pessoal do homem e para que ele se imponha aos olhos dos outros homens.

O terceiro quadro sugere que Jesus podia ter elegido a via do poder, do domínio, da prepotência, à laia dos grandes da terra. Não obstante, sabe que a tentação de fazer do poder e do domínio a prioridade da vida é tentação diabólica. Por isso, citando Dt 6,13, assume, para Si, que só o Pai é absoluto e que só Ele deve ser adorado.

Estas três tentações constituem as três faces de uma única tentação, a de prescindir de Deus, de escolher a via do orgulho e da autossuficiência, à margem da vontade de Deus. Mas, para Jesus, ser “Filho de Deus” significa viver em comunhão com o Pai, escutar a sua voz e cumprir, obedientemente, o seu plano. Ao longo da sua vida, diante das diversas provocações dos adversários, vai confirmar a sua opção fundamental em torno do Reino e vai procurar concretizar, com total fidelidade, o desígnio do Pai.

Israel, ao longo da caminhada pelo deserto, sucumbiu, frequentemente, à tentação de ignorar a via de Deus. Jesus, ao invés, venceu a tentação de prescindir de Deus e de escolher caminhos à margem do desígnio do Pai. De Jesus vai nascer, por isso, o novo Povo de Deus, cuja vocação essencial é viver em comunhão com o Pai e concretizar o seu plano de salvação para o Mundo.

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A 2.ª leitura (Rm 5,12-19) propõe dois exemplos: Adão e Jesus. Adão representa o homem que prefere ignorar o plano de Deus e decidir, por si só, o caminho da vida; Jesus é o homem que assume viver na obediência ao desígnio de Deus. O esquema de Adão gera egoísmo, sofrimento e morte; o esquema de Jesus gera vida plena e definitiva.

No final da década de 50 (a Carta aos Romanos apareceu por volta de 57/58), multiplicavam-se as crises entre os cristãos oriundos do judaísmo e os oriundos do paganismo. Tinham perspetivas diferentes da salvação e da forma de viver o compromisso com Cristo e com o Evangelho. Os cristãos de origem judaica entendiam que, além da fé em Jesus, era preciso cumprir as obras da Lei (nomeadamente a circuncisão); e os de origem pagã recusavam-se a aceitar a obrigatoriedade das práticas judaicas. Este problema era também sentido pela comunidade cristã de Roma.

Assim, Paulo mostra a todos os crentes a unidade da revelação e da história da salvação: judeus e não judeus são, de igual forma, chamados por Deus à salvação; o essencial não é cumprir a Lei de Moisés, que não salva, mas acolher a salvação que Deus faz a todos, por Jesus.

O trecho em referência faz parte da primeira parte da carta (Rm 11,18-11,36). Depois de demonstrar que todos vivem mergulhados no pecado e que é a justiça de Deus que a todos salva, Paulo ensina que é através de Jesus que a vida de Deus chega aos homens e que se faz oferta de salvação para todos. Para deixar isto bem claro, recorre à antítese. Adão é a figura da humanidade que prescinde de Deus, escolha que produz injustiça e alienação; Cristo propôs um outro caminho, o da escuta de Deus, que, levando à superação do orgulho e da autossuficiência, faz nascer o Homem Novo, plenamente livre. Foi essa a proposta que Jesus fez à humanidade e libertou os homens da economia de pecado e inculcou no Mundo a economia de graça que gera a vida plena.

Não é claro que Paulo se refira, aqui, ao que a teologia posterior designou como pecado original (enquanto pecado histórico cometido pelo primeiro homem, que atinge e marca todos os homens). O que é claro é que a intervenção de Cristo na história humana se traduziu num dinamismo de esperança e de vida autêntica. Cristo apresentou à humanidade a via de comunhão com Deus e de obediência ao seu desígnio. E não pode haver serpente que desvie o Homem dessa via.

Para tanto, urge a conversão, urge colocar ou recolocar Deus no centro das nossas vidas.

2023.02.26 – Louro de Carvalho

Entre a autarcia e a hiperglobalização total

 

A guerra na Ucrânia é uma guerra por procuração entre os Estados Unidos (EUA) e a Rússia, mas não é apenas sobre a Ucrânia, é também sobre a China e Taiwan. Di-lo Nouriel Roubini, autor de Mega-Ameaças, livro editado em Portugal pela Planeta.

O também autor do bestseller internacional Crisis Economics, que mora em Nova Iorque, é um dos analistas económicos mais influentes do mundo. É professor emérito de economia na Stern School of Business da Universidade de Nova Iorque e fundador e presidente da Roubini Macro Associates. É economista-chefe da Atlas Capital Team. Serviu na Casa Branca e no Departamento do Tesouro dos EUA. Foi apelidado de Dr. Catástrofe até que as suas previsões sobre a crise imobiliária de 2008 e a Grande Crise Financeira se tornaram realidade, mas era demasiado tarde.

No Mega-Ameaças, apresenta uma análise lúcida e realista da situação atual, análise a não ignorar. As ameaças estão interligadas, sobrepõem-se, reforçam-se e potenciam-se mutuamente. São tão prementes que o autor as encara como mega-ameaças e vão da pior crise da dívida que o mundo viu à inflação, ao crescimento do populismo, à ascensão de nova competição de superpotências entre a China e os EUA, à normalização das pandemias, à crise climática, ao impacto da inteligência artificial (IA) no emprego, ao colapso demográfico, à desglobalização da economia.

Diz o analista – não querendo assustar ninguém, apenas vincando termos de estar preparados – que há uma pequena hipótese de evitar o desastre e garantir um futuro mais pacífico e próspero, se começarmos a trabalhar em conjunto e a agir já. Com efeito, as mega-ameaças que identificou vão remodelar o mundo tal como o conhecemos, alterarão “o mundo que pensávamos conhecer”.

Considera o economista que “atualmente, vacilamos à beira do precipício, o chão foge-nos de baixo dos pés”. No entanto, a maioria, num “erro gritante”, pensa que “o futuro será parecido com o passado”, enquanto “os novos sinais de alerta parecem inequívocos e arrebatadores”. E, no atinente ao problema nuclear, vaticina que o risco poderá ser maior entre grandes potências, mas também deixará marcas e mesmo destruição entre potências menores e nos países seus inimigos.

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Em entrevista ao Diário de Notícias (DN), por ocasião do lançamento do Mega-Ameaças, em Portugal, abordou os riscos de uma guerra convencional deixar de ser convencional e temas, como, por exemplo, o impacto da desglobalização e da inteligência artificial (IA).

Depois das restrições causadas pela pandemia, com a invasão da Ucrânia pela Rússia e com as novas fraturas (evidentes ou latentes) entre o Ocidente e outras partes do mundo, Nouriel Roubini crê que “a globalização está sob ameaça, especialmente a hiperglobalização que vimos nas últimas décadas”. A questão não é ente a globalização total e a desglobalização total. Porém, começamos a ter algum grau de desglobalização e restrição no movimento de bens, de serviços, de capital, de trabalho e, sobretudo, no movimento de tecnologia, de dados e de informação.

Estamos entre dois extremos: a total autarcia (autossuficiência da comunidade que não depende de outrem, em nada) e a hiperglobalização total, sendo que a hiperglobalização começou a esmorecer com a crise financeira global, há 15 anos. O comércio global vem abrandando e caminhamos para o protecionismo, que é “desglobalização”. O comércio livre cede o passo ao comércio seguro, a menos deslocalização, a menos dependência das cadeias de fornecimento globais, a várias formas de fragmentação e localização.

A reação à globalização começou há décadas, quando os trabalhadores braçais, numa economia avançada, viram os empregos ameaçados por produtos mais baratos vindos da China, do resto da Ásia e de outras partes do Mundo. Depois, houve preocupações com os impactos da globalização no ambiente. Como economia avançada, dizíamos aos países dos mercados emergentes que nos preocupamos com as normas de trabalho e esses países começaram a ser fontes de nacionalismo, dizendo não quererem que os seus recursos, mas também as marcas campeãs nacionais, fossem adquiridos por empresas estrangeiras. Em França não quiseram que os iogurtes Danone fossem adquiridos por estrangeiros por serem empresa campeã nacional. Depois, a reação à globalização foi reforçada pela crise financeira, que também atingiu os mercados emergentes. E outra evidência desta reação é a depressão geopolítica corporizada pela China, pela Rússia, pelo Irão e pela Coreia do Norte – todos aliados de facto e de jure no desafio à ordem económica, financeira, comercial, de investimento, política, de segurança e geopolítica que os EUA, a Europa e o Ocidente em geral criaram após a II Guerra Mundial. A dimensão EUA-China é importante, mas não é a única.

Os EUA, a Europa e o Ocidente (com a Austrália, a Nova Zelândia, o Japão e a Coreia do Sul) ainda são bastante fortes, mas há potências em ascensão, como a China, a Índia e partes dinâmicas da economia global na Ásia. Em cada um destes países e regiões, há forças, fraquezas e o risco de ganhos, tal como o risco de perdas na dimensão económica, financeira, em termos dos seus próprios sistemas políticos, da sua capacidade de projetar poder globalmente. Assim, a força tem muitas dimensões e nada no Mundo é preto e branco. A China tem os seus desafios, que incluem um regime cada vez mais autoritário e um capitalismo de Estado que funcionou durante um tempo, mas que pode não funcionar no futuro. O Ocidente tem todas essas funcionalidades económicas, financeiras e políticas, mas as coisas têm de mudar no Ocidente também.

O autor de Mega-Ameaças inclui nos riscos internos para o Ocidente a emergência de políticos populistas. Todavia, considera as crispações populistas como manifestações de um mal-estar mais generalizado, que tem a ver com o aumento da desigualdade de rendimentos, com a diminuição dos rendimentos das classes médias e das classes trabalhadoras, espremidas nos últimos anos, e com o facto de a geração mais jovem ter um futuro económico mais débil que os seus pais.

Há muitos fenómenos que são preocupações em economias avançadas e em mercados emergentes, sendo alguns deles as alterações climáticas, os efeitos da pandemia de covid-19, o impacto da IA, a aprendizagem automática nos empregos (nos trabalhos braçais e nos serviços). E, atualmente, na dimensão económica, patenteia-se como reação à globalização a inflação crescente e o problema demográfico (com o envelhecimento da população). Ou seja, estes problemas económicos, financeiros, sociais, políticos e geopolíticos geram a reação contra os mercados liberalizados e a ascensão da extrema-direita que se torna mais popular nas economias avançadas e nos mercados emergentes, em sintonia com as preocupações subjacentes de muitas pessoas.

No atinente à guerra nuclear, que dizem ser o maior perigo do Mundo, recorda que, depois de crescer, nos anos 1960 e 1970, na Europa, em Itália, após a détente entre os EUA e a União Soviética e, depois, a China, a ameaça passou a ser muito baixa. A partir da crise dos mísseis de Cuba, havia rivalidade, mas só havia guerras por procuração entre o Ocidente e a União Soviética.

O problema nuclear é que, agora, o risco pode ser maior entre grandes potências, mas também entre potências menores, as que têm armamento nuclear. A guerra da Rússia na Ucrânia é “uma guerra por procuração entre os Estados Unidos, o Ocidente, e a Rússia, que não é apenas sobre a Ucrânia, é também sobre a China e Taiwan”. E pode tornar-se não convencional e estender-se à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Henry Kissinger disse que a III Guerra Mundial podia começar com a Rússia e a Ucrânia. O Irão está a passos de ter a bomba nuclear e Israel tem de estudar os prós e os contras de atacar o Irão. Se o Irão conseguir a bomba dentro de poucos anos, a Arábia Saudita comprará a bomba ao Paquistão, o que faz com que tenham a bomba meia dúzia de países instáveis numa região instável.

Depois, na Ásia, há, entre os EUA e a China, uma guerra fria em relação a Taiwan, que pode vir a aquecer. Uma guerra que comece convencional pode escalar para outra não convencional.

No concernente à IA, Nouriel Roubini pensa que esta inovação fará crescer a produtividade e fará crescer a economia de 1% ou 2%, na Europa, e 4% ou 5%, ou mesmo 6%, nos EUA. É, pois, uma oportunidade. Todavia, comporta o risco de levar a um desemprego tecnológico permanente entre trabalhadores dos serviços braçais. E poderão ser afetados os trabalhos criativos e outros, como os dos economistas e os dos jornalistas, que podem vir a ficar obsoletos em algumas dimensões.

Porque a inovação tecnológica significa capital intensivo, maiores competências e poupança no trabalho, em algum tempo, a IA tornar-nos-á mais produtivos, mas ameaçará, crescentemente, os empregos. Quem dominar a IA, a aprendizagem da máquina e a automação robótica, dominará a interconexão no futuro e tornar-se-á na maior potência geopolítica, militar e de segurança.

Em 2022, o antigo CEO da Google, Eric Schmidt e Henry Kissinger (estratego político americano) escreveram um livro onde dizem que a questão entre os EUA e a China não tem a ver apenas com qual é a parte dominante economicamente, mas também com qual é a potência dominante a nível geopolítico e militar, o qual terá cada vez mais a dimensão cibernética e de IA.

Colocado perante o problema da demografia, o autor de Mega-Ameaças respondeu ao cenário da diminuição da população da China, menor do que a da Índia já neste ano, ao problema demográfico por que passa a Rússia, depois da queda da União Soviética, e ao fenómeno do aumento da população dos EUA, muito mais atrativos do que outras potências para a imigração, mercê do tipo de sociedade e da língua inglesa.

Observando que o número de pessoas é importante, considera que podemos ter muita gente que sem habilitações, sem educação, sem saúde, etc. Podemos aumentar o potencial de crescimento ou não, mas teremos milhões de pessoas ainda muito pobres. Assim, a dimensão da população é só uma medida do potencial para se ser grande potência. A China, que tinha a maior população do Mundo, era muito pobre e, agora, tem tido bom crescimento económico. E, sem crescimento demográfico, podemos ter boa produtividade e crescer na inovação, na tecnologia, no conhecimento e na informação. Ou seja, pode compensar-se a queda demográfica com o aumento da produtividade. A África é um continente com 54 países e com uma população de 1400 milhões de pessoas e, no fim do século, pode chegar aos 2000 milhões, o que não constitui uma boa oportunidade económica (até pode ser um perigo), pois tem falta de habilitações, de educação, de saúde. Portanto, a demografia – que é importante por muitas razões, mas não é a única coisa que importa – “poderá não ser tão importante como outras medidas com força económica”.

À questão de o crescimento demográfico ser uma vantagem para os EUA, pois o país tem capacidade para oferecer educação e produtividade, além de atrair imigrantes, Nouriel Roubini responde que “não é certo que a população dos Estados Unidos não comece também a decrescer, além de que começa a haver também uma reação significativa contra a imigração”. Nesse campo, sublinha, a administração Joe Biden não é muito diferente da de Donald Trump. Não é verdade que os imigrantes estejam a roubar postos de trabalho, como se diz. Porém, em certas zonas dos EUA a reação anti-imigração é muito violenta, embora o que tornou grandes os EUA tenha sido atrair “tanta gente de tantos países, com tantos níveis diferentes de educação e de cultura”.

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Os desafios são muitos e os problemas são complexos, sobretudo quando criados pelos decisores.

2023.02.26 – Louro de Carvalho

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Destruição de casas de 760 milhões de pessoas e nova geoestratégia

 

O uso intensivo dos recursos da natureza e a poluição dos solos, dos oceanos e do ar, que geram as alterações climáticas, a que assistimos – aliás de que somos agentes e protagonistas – de que resultam, entre outras situações, o aumento global da temperatura, estão a causar a subida sistemática da água dos mares e oceanos e podem originar uma nova geoestratégia política.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU)os níveis médios globais do mar aumentaram mais rapidamente desde 1900 do que em qualquer século anterior, nos últimos 3000 anos, e o oceano como um todo aqueceu mais rápido, no último século, do que em qualquer outro momento nos últimos 11.000 anos. Por consequência, daqui a um ou dois séculos, as grandes metrópoles da atualidade poderão ser muito diferentes, caso não se diminuam, sobretudo, os níveis de poluição da atmosfera.

Ainda que a temperatura global aumente só dois graus Celsius (2ºC) até 2100, o impacto em algumas megacidades costeiras será bastante significativo. O nível da água do mar pode subir tanto que algumas zonas de cidades como Nova Iorque, Xangai e Bombaim, ficarão submersas, afetando a vida de, pelo menos, 130 milhões de pessoas (não ficando imunes cidades costeiras de Portugal). E, se a temperatura aumentar 4ºC, como apontam as trajetórias atuais, a subida do mar afetará entre 470 a 760 milhões de pessoas, que terão de procurar outro sítio para viver.

O alerta é da ONU, que avisa que, se nada for feito, o mar vai inundar dezenas de cidades e até países inteiros, pois subirá entre um e 1,60 metros, até 2100. A subida do nível do mar põe em risco a vida de milhões de pessoas, em todo o planeta: um risco direto nas regiões costeiras e nos arquipélagos, um perigo, também, para todos os outros, reitera o secretário-geral da ONU, António Guterres.

Segundo um estudo publicado na revista Science, em 2022, mesmo se conseguirmos limitar o aumento da temperatura global a 1.5°C, corremos o risco de provocar múltiplos “pontos de não retorno climáticos” no Ártico, o que agravará o cenário climático para todo o planeta.

Por outro lado, a investigação, “Hamburg Climate Futures Outlook”, do departamento de “Clima, Alterações Climáticas e Sociedade” (CLICCS, na sigla original) da Universidade de Hamburgo, Alemanha, analisou, além de questões físicas ligadas ao clima, a política climática, os protestos e a crise devido à invasão da Ucrânia pela Rússia, tendo concluído que a mudança social é essencial para cumprir os objetivos do Acordo de Paris.

Limitar o aquecimento global a 1,5ºC é improvável, indica o seu relatório, que valoriza as mudanças sociais, para cumprir os objetivos de redução de emissões de gases com efeito de estufa.

O Acordo de Paris, assinado em 2015 por quase todos os países do Mundo, estabelece, como meta para o controlo do aumento da temperatura, os 2ºC em relação à época pré-industrial e insta a que, se possível, o aumento não ultrapasse os 1,5ºC. E o objetivo tem sido mantido nas reuniões mundiais sobre o clima.

Para a “Hamburg Climate Futures Outlook”, as metas alcançadas até agora não são suficientes, sendo necessária nova abordagem sobre a adaptação às mudanças climáticas. “Na verdade, quando se trata de proteção climática, algumas coisas já foram postas em marcha. Mas, se analisarmos o desenvolvimento dos processos sociais em pormenor, manter o aquecimento global abaixo dos 1,5 graus ainda não é plausível”, diz Anita Engels, do CLICCS, citada no documento.

O estudo diz, nomeadamente, que os padrões de consumo e as respostas empresariais não estão a contribuir para as medidas de proteção climática, que são urgentemente necessárias.

Contudo, paralelamente, fatores como a política climática da ONU, as legislações, os protestos climáticos e o desinvestimento em combustíveis fósseis estão a apoiar os esforços para atingir os objetivos climáticos. São dinâmicas positivas, mas não suficientes para manter a temperatura no limite dos 1,5ºC. “A profunda descarbonização necessária está simplesmente a progredir demasiado lentamente", diz Anita Engels.

Os investigadores também analisaram processos físicos que são muitas vezes discutidos como pontos de rutura, como a perda de gelo no Oceano Glacial Ártico, o derretimento das calotas polares ou as alterações climáticas regionais, considerando que terão pouca influência sobre a temperatura global até 2050. E mais importante, embora de forma moderada, será o descongelamento das zonas com solo sempre gelado (permafrost), o enfraquecimento das correntes superficiais e profundas do Oceano Atlântico ou a perda de floresta na Amazónia.

“O facto é que estes temidos pontos de viragem poderiam mudar drasticamente as condições de vida na Terra, mas são largamente irrelevantes para alcançar os objetivos de temperatura do Acordo de Paris”, diz Jochem Marotzke, do Instituto Max Planck de Meteorologia, de Hamburgo.

O estudo, que analisou também a pandemia de covid-19 e a invasão russa da Ucrânia, concluiu que os programas de reconstrução económica reforçaram a dependência dos combustíveis fósseis, o que significa que as mudanças necessárias são agora menos plausíveis do que se supunha antes.

Porém, continua a não ser claro se os esforços para salvaguardar o fornecimento de energia à Europa e as tentativas da comunidade internacional para se tornar independente do gás russo irão minar ou acelerar a eliminação gradual dos combustíveis fósseis a longo prazo.

De acordo com o estudo, a melhor esperança para moldar um futuro climático positivo reside na capacidade da sociedade de fazer mudanças fundamentais, sendo importantes para isso as iniciativas transnacionais e não-governamentais e a continuação da pressão sobre os políticos.

A variação do nível do mar está associada à eustasia (do Grego stásis, posição + eu, bem, em relação a) e à isostasia (stásis, com o adjetivo isós, igual). A primeira é relativa ao volume das bacias oceânicas, enquanto a segunda se relaciona com os movimentos tectónicos.

A variação eustática resulta de fator que faça variar, significativamente, o volume de água presente no oceano. Uma das suas causas é a variação da quantidade de água presente nos oceanos, devido às alterações climáticas abruptas que ocorrem desde o início do Quaternário (período da escala de tempo geológico em que vivemos), em que se dá a fusão de calotas polares e/ou o aprisionamento de água em massas de gelo. A oscilação do volume da água do mar depende também da expansão e contração térmica, mercê da variação significativa da sua temperatura. Este processo, designado de “estereoeustasia” (stásis, com o adjetivo stereós), pode causar regressão ou transgressão, consoante a temperatura da água. Outra das causas é a mudança do volume das bacias oceânicas, como a ocorrida com o alargamento do Oceano Atlântico, devido à divergência das placas tectónicas, fazendo com que a eustasia e isostasia estejam interligadas.

Os movimentos isostáticos, como referido acima, estão diretamente ligados à tectónica de placas, provocando, assim, a subida e descida dos continentes e, por consequência, o recuo e o avanço do nível da água do mar, respetivamente. Uma das principais causas da isostasia é a glacio-isostasia, que se dá quando há formação de inlandsis, isto é, grandes mantos de gelo que cobrem área igual ou superior a 50.000 km². Este fenómeno foi observado no pico máximo da Glaciação de Würm há, aproximadamente, 18.000 anos, onde o mar recuou cerca de 120 metros devido à formação de inlandsis que chegavam aos 3 km de espessura, em alguns locais da Escandinávia, por exemplo. O peso destes mantos de gelo originou uma subsidência (descida) dessa região, fazendo com que os Países Baixos emergissem (subissem).

Atualmente, com o degelo desses inlandsis acontece o contrário, ou seja, a Escandinávia está a emergir e, por consequência, ali, o nível do mar está, momentaneamente, a descer (prova disso são as praias fósseis visíveis em alguns locais desta região), e os Países Baixos a subsidir, estando o nível do mar a subir. Uma outra causa poderá ser a sedimento-isostasia em que a deposição excessiva de sedimentos poderá ter os mesmos efeitos que a deposição do gelo.

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O Ártico está a aquecer. E, como avisa Tomé Ribeiro Gomes, bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) sob o impacto da competição entre grandes potências e do aquecimento global, o mapa geopolítico do Ártico está em transformação, com imprevisíveis consequências.

Apesar disso, está longe das nossas mentes, talvez por a nossa conceção da geografia terrestre estar condicionada pelo planisfério de Mercator, cartógrafo flamengo do século XVI, que projetou o globo de forma plana, mas com várias distorções. Uma delas é a omissão da posição central do Oceano Glacial Ártico relativamente à América do Norte e à Eurásia. Além de ser a menor das cinco bacias oceânicas por área (4,3% da superfície terrestre), a bacia do Ártico é bordejada pela Rússia, EUA (Alasca), Canadá, Dinamarca (Gronelândia), Islândia e Noruega. A Finlândia e a Suécia não têm costa no Ártico, mas têm territórios a norte da linha do Círculo Polar Ártico.

Ora, se forem aceites os pedidos de adesão da Finlândia e da Suécia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), sete dos Oito do Ártico pertencerão a essa Aliança Atlântica, ficando de fora apenas a Federação Russa, quando cresce a animosidade entre este país e a NATO.

Durante a Guerra Fria, o Ártico era visto por ambos os lados como zona de fronteira, onde era essencial ter forte presença militar, incluindo bases aéreas e navais, sistemas de vigilância militar, armas nucleares e, no caso da União Soviética, frotas de submarinos com capacidade nuclear. Porém, após a dissolução da União Soviética, em 1991, abriu-se espaço para a cooperação internacional na região, sistema cujo alicerce é o Conselho do Ártico, fórum intergovernamental onde os Oito do Ártico, outros Estados com estatuto de observador e representantes de comunidades indígenas se reúnem, tendo celebrado acordos importantes nas áreas de busca e e de salvamento, bem como na resposta a desastres ambientais e na cooperação científica.

Esta e outras plataformas de diálogo estão em risco, devido à invasão da Ucrânia. A última reunião do Conselho do Ártico, em que a Rússia assumiu a liderança rotativa, aconteceu em 2021. O calendário normal apontaria para uma reunião em maio deste ano, mas os restantes sete membros permanentes não estão dispostos a reunir com representantes da Rússia.

Ao mesmo tempo, a calota ártica, a formidável barreira geográfica, está a ser erodida pelo aquecimento global. As medições de banquisa (camada congelada na superfície da água do mar, sazonal ou permanente) existente em setembro, feitas pela NASA, mostram a redução média de 12,6% por década. Com a extensão de banquisa a diminuir de ano para ano, torna-se mais fácil movimentar meios navais através do oceano Ártico, sobretudo no verão. Por conseguinte, aumenta a vulnerabilidade estratégica dos Estados costeiros, bem como os incentivos à exploração de recursos acessíveis, nomeadamente os depósitos minerais do Ártico (cobalto e níquel), e à utilização de rotas marítimas mais navegáveis. Deixarão de ser precisos os navios quebra-gelo, de custos proibitivos, e serão usados navios normais. Tudo isto será mais fácil para a Rússia.

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Enfim, as alterações climáticas também podem originar nova geoestratégia política e provocar a desglobalização. Basta que os países se lembrem, cada um, de zelar pelos seus interesses, com os próprios meios, dizendo adeus ao multilateralismo e à cooperação dialogante.

2023.02.25 – Louro de Carvalho