sábado, 18 de fevereiro de 2023

Os leigos não são convidados nem hóspedes da Igreja

 

Na manhã do dia 18 de fevereiro, o Papa recebeu, em audiência, na Sala do Sínodo, no Vaticano, os participantes no Congresso Internacional para os presidentes e outros responsáveis das comissões episcopais para os leigos, de 16 a 18 de fevereiro, promovido pelo Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, sob o tema “Pastores e fiéis leigos chamados a caminharem juntos”.

“Chegou a hora de pastores e leigos caminharem juntos em cada âmbito da vida da Igreja, em todas as partes do mundo”, disse o Pontífice, reiterando o sonho de uma Igreja missionária, onde os leigos não sejam mais clericalizados do que os próprios clérigos.

Os leigos não são hóspedes na Igreja, nem seus convidados, mas estão em sua própria casa. Trata-se de corresponsabilidade de pastores e fiéis a caminharem juntos na Igreja, não de subalternidade, nem de confusão de papéis. Por isso, o Papa deteve-se na dimensão sinodal desta caminhada, pedindo a superação de modos de agir autónomos, pois a sinodalidade encontra a fonte e o fim último na missão: pastores e fiéis leigos juntos, não pessoas isoladas, mas povo que evangeliza. E vincou: “Esta é a intuição que devemos ter sempre: a Igreja é o santo povo de Deus. Na Lumen Gentium capítulo III, é isto, não é populismo nem elitismo. Não. É o santo povo fiel de Deus. E isto não se aprende teoricamente, entende-se vivendo.”

Francisco resgatou a exortação apostólica Evangelii gaudium, onde expressa o sonho de uma Igreja missionária, que precisa de ser sinodal. E frisou: “Sonho uma Igreja missionária. E vem-me à mente uma figura do Apocalipse, quando Jesus diz: ‘Estou à porta e bato’. É verdade, era para entrar: ‘Se alguém me abrir, entrarei e comerei com ele’. Mas hoje o drama da Igreja é que Jesus continua a bater à porta, mas a partir de dentro, para que o deixem sair! Muitas vezes a Igreja acaba prisioneira que não deixa o Senhor sair, o tem como propriedade, e o Senhor veio para a missão e quer-nos missionários.” Este horizonte oferece a chave de leitura do tema da corresponsabilidade, da valorização dos leigos, o que não depende de novidade teológica nem é reivindicação de categoria, mas se baseia na correta visão da Igreja como Povo de Deus, de que os leigos fazem plenamente parte com os ministros ordenados, que não são donos, mas servidores.

Francisco afirmou que é preciso recuperar uma eclesiologia integral, onde se acentue a unidade, não a separação. O leigo não é um “não clérigo” ou um “não religioso”, mas um batizado como membro do Povo santo de Deus. No Novo Testamento, disse o Papa, não aparece a palavra leigo, mas termos fiéis, discípulos, irmãos – aplicados a todos: leigos e ministros ordenados. Portanto, o único elemento fundamental é a pertença a Cristo. Os mártires, por exemplo, não se declaram bispos ou leigos, mas cristãos. E explicitou: “Num mundo que se seculariza cada vez mais, o que realmente nos distingue como Povo de Deus é a fé em Cristo, não o estado de vida. Somos batizados cristãos, discípulos de Cristo. O resto é secundário.”

Os leigos são chamados a viver a sua missão em ambientes seculares, mas isso não exclui que tenham capacidades, competências para contribuir para a vida da Igreja. Neste processo, a formação dos leigos é indispensável para a corresponsabilidade. Formação não só académica, mas prática, pois o apostolado laical é, sobretudo, testemunho. Também neste ponto o Papa salientou que a formação deve ser orientada para a missão, não só para as teorias, porque isso acaba nas ideologias. “É terrível, é uma peste: a ideologia na Igreja é uma peste”, apontou. E os pastores devem ser formados para a colaboração quotidiana e ordinária com os leigos.

A corresponsabilidade permite superar dicotomias, medos e desconfianças recíprocas. E clamou o Papa: “Chegou a hora de pastores e leigos caminharem juntos em cada âmbito da vida da Igreja, em todas as partes do mundo. Os fiéis leigos não são ‘hóspedes’ na Igreja, estão em sua casa, por isso são chamados a cuidar da própria casa.”

Francisco pediu uma maior valorização dos leigos, sobretudo das mulheres, na vida das paróquias e das dioceses. E apontou exemplos de colaboração com os sacerdotes: na formação de crianças e jovens, na preparação para o matrimónio, no acompanhamento da vida familiar, na organização de iniciativas, trabalhando nos serviços das dioceses e contribuindo, inclusive, na formação de seminaristas e religiosos, recordando que um leigo também pode ser diretor espiritual.

“Poderemos dizer: leigos e pastores juntos na Igreja, leigos e pastores juntos no mundo”, concluiu o Papa, citando o livro Meditations sur l’Eglise, em que o cardeal De Lubac alerta para o clericalismo. E sentenciou: “O clericalismo deve ser expulso. Um sacerdote, um bispo que cai nesta atitude faz muito mal à Igreja. Mas é uma doença contagiosa e pior que um padre ou bispo clerical são os leigos clericalizados: por favor, são uma peste na Igreja. Leigo é leigo.”

E Francisco finalizou o seu discurso recomendando que todos tenham no coração e na mente esta bela visão da Igreja: “Uma Igreja propensa à missão e onde se unificam as forças e se caminha juntos para evangelizar”.

Nestes termos, os leigos, e especialmente as mulheres, devem ser mais valorizados nas suas competências e dons humanos e espirituais na vida das comunidades. E devem ser consultados na preparação de novas iniciativas pastorais em todos os níveis, local, nacional e universal. Devem ter voz nos conselhos pastorais das igrejas. Devem estar presentes nos serviços das dioceses. Podem ajudar no acompanhamento espiritual de outros leigos e contribuir para a formação de seminaristas e religiosos. E, juntamente com os pastores, devem dar testemunho cristão nos ambientes seculares: no trabalho, na cultura, na política, na arte e na comunicação social.

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A propósito, respigo algumas ideias da Lumen Gentium, no atinente aos leigos.

Se tudo o que se diz a respeito do Povo de Deus se dirige igualmente aos leigos, aos religiosos e aos clérigos, algumas coisas pertencem aos leigos, homens e mulheres, em razão do seu estado e missão; e os seus fundamentos, devido às circunstâncias hodiernas, devem ser cuidadosamente expostos. Os pastores conhecem quanto os leigos contribuem para o bem de toda a Igreja e devem reconhecer os seus serviços e carismas, de modo que todos, cada um segundo o seu modo próprio, cooperem na obra comum, pois é preciso que todos, “praticando a verdade na caridade, cresçamos de todos os modos, para que Aquele que é a cabeça, Cristo, pelo influxo do corpo inteiro, bem ajustado e coeso por toda a espécie de junturas que o alimentam, com a ação típica de cada membro, cresça em ordem à própria edificação na caridade.

Leigos são todos os fiéis que, incorporados em Cristo pelo Batismo, constituídos em Povo de Deus. E, tornados partícipes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo, exercem, pela parte que lhes toca, a missão de todo o Povo cristão na Igreja e no mundo. É, assim, própria e peculiar deles a secularidade. Por vocação própria, compete-lhes procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus.

Vivem no mundo, em toda e qualquer ocupação e atividade terrena e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, aí, exercendo o ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e manifestem Cristo aos outros, antes de mais, pelo testemunho de vida, pela irradiação da fé, esperança e caridade. Compete-lhes iluminar e ordenar as realidades temporais a que estão estreitamente ligados, de tal modo que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor.

Um só é o Povo de Deus: “um só Senhor, uma só fé, um só Batismo”; comum a dignidade dos membros, pela regeneração em Cristo; comum a graça de filhos, comum a vocação à perfeição; uma só salvação, uma só esperança e uma caridade indivisa. Nenhuma desigualdade em Cristo e na Igreja, por motivo de etnia ou de nação, de condição social ou de sexo. Não há judeu nem grego, escravo ou homem livre, homem ou mulher: em Cristo Jesus, todos somos um.

Unidos no Povo de Deus e constituídos no corpo único de Cristo sob uma só cabeça, os leigos são todos chamados a concorrer como membros vivos, com todas as forças que receberam da bondade do Criador e por graça do Redentor, para o crescimento da Igreja e sua santificação.

O apostolado dos leigos é participação na missão da Igreja e para ele todos são destinados pelo Senhor, por meio do Batismo e da Confirmação. E os sacramentos, sobretudo a Eucaristia, comunicam e alimentam o amor para com Deus e para com os homens – a alma do apostolado.

Mas os leigos são chamados a tornarem a Igreja presente e cativa nos locais e circunstâncias em que só por meio deles ela pode ser o sal da terra. Todo e qualquer leigo, pelos dons que lhe foram concedidos, é testemunha e instrumento vivo da missão da Igreja, “segundo a medida concedida por Cristo”. Além deste apostolado, os leigos podem ser chamados à colaboração mais imediata no apostolado da Hierarquia, ao modo dos homens e mulheres que ajudavam o apóstolo Paulo no Evangelho, trabalhando muito no Senhor. E têm a capacidade de ser chamados pela Hierarquia a exercer certos cargos eclesiásticos, com finalidade espiritual. Esteja-lhes, pois, aberto o caminho, a fim de que, segundo as próprias forças e as necessidades dos tempos, participem com ardor na ação salvadora da Igreja.

Mesmo quando ocupados com os cuidados temporais, podem e devem exercer valiosa ação para a evangelização do mundo. E, se alguns suprem nas funções religiosas os ministros sagrados que faltam ou estão impedidos, a todos incumbe o dever de cooperar para a dilatação e crescimento do Reino de Cristo no mundo. Dediquem-se, pois, com diligência a conseguir um conhecimento mais profundo da verdade revelada e peçam insistentemente a Deus o dom da sabedoria.

Devem os fiéis conhecer a natureza e o valor de todas as criaturas e a sua ordenação para a glória de Deus, ajudando-se uns aos outros, mesmo pelas atividades temporais, a levar uma vida santa, para que, assim, o mundo seja penetrado do espírito de Cristo e, na justiça, na caridade e na paz, atinja o seu fim. Além disso, pela união das próprias forças, devem os leigos sanear as estruturas e condições do mundo, se elas propendem a levar ao pecado, de tal modo que todas se conformem às normas da justiça e ajudem ao exercício das virtudes. Agindo assim, informarão de valor moral a cultura e as obras humanas. E, por este modo, o mundo ficará mais preparado para a semente da palavra divina e abrir-se-ão mais à Igreja as portas para introduzir no mundo a mensagem da paz.

Devido à economia da salvação, devem os fiéis aprender a distinguir entre os direitos e deveres que lhes competem como membros da Igreja e os que lhes dizem respeito enquanto parte da sociedade humana. Procurem harmonizar entre si uns e outros, lembrando-se de que se devem guiar em todas as coisas temporais pela consciência cristã, já que nenhuma atividade humana, nem mesmo em assuntos temporais, se pode subtrair ao domínio de Deus. É necessário, em nossos dias, que esta distinção e harmonia se manifestem nas atitudes dos fiéis, para que a missão da Igreja corresponda mais plenamente às condições do mundo atual, assim como se deve reconhecer que a cidade terrena se consagra, a justo título, aos assuntos temporais e se rege por princípios próprios. Porém, são de rejeitar as doutrinas que pretendem construir a sociedade sem ter em conta a religião, atacando e destruindo a liberdade religiosa dos cidadãos.

Cada leigo deve ser, perante o mundo, testemunha da ressurreição e da vida do Senhor Jesus e sinal do Deus vivo. Todos em conjunto e cada um por si devem alimentar o mundo com frutos espirituais e nele difundir o espírito que anima os pobres, os mansos e os pacíficos, que o Senhor proclama bem-aventurados Enfim, “sejam os cristãos no mundo o que a alma é no corpo”.

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Quem vive este dinamismo rejeita a laicidade e a secularidade, avessas ou hostis à religião, e vive a laicidade e a secularidade verdadeiras como fator de pertença ao povo (laós, em Grego).

2023.02.18 – Louro de Carvalho

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