sábado, 25 de fevereiro de 2023

Destruição de casas de 760 milhões de pessoas e nova geoestratégia

 

O uso intensivo dos recursos da natureza e a poluição dos solos, dos oceanos e do ar, que geram as alterações climáticas, a que assistimos – aliás de que somos agentes e protagonistas – de que resultam, entre outras situações, o aumento global da temperatura, estão a causar a subida sistemática da água dos mares e oceanos e podem originar uma nova geoestratégia política.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU)os níveis médios globais do mar aumentaram mais rapidamente desde 1900 do que em qualquer século anterior, nos últimos 3000 anos, e o oceano como um todo aqueceu mais rápido, no último século, do que em qualquer outro momento nos últimos 11.000 anos. Por consequência, daqui a um ou dois séculos, as grandes metrópoles da atualidade poderão ser muito diferentes, caso não se diminuam, sobretudo, os níveis de poluição da atmosfera.

Ainda que a temperatura global aumente só dois graus Celsius (2ºC) até 2100, o impacto em algumas megacidades costeiras será bastante significativo. O nível da água do mar pode subir tanto que algumas zonas de cidades como Nova Iorque, Xangai e Bombaim, ficarão submersas, afetando a vida de, pelo menos, 130 milhões de pessoas (não ficando imunes cidades costeiras de Portugal). E, se a temperatura aumentar 4ºC, como apontam as trajetórias atuais, a subida do mar afetará entre 470 a 760 milhões de pessoas, que terão de procurar outro sítio para viver.

O alerta é da ONU, que avisa que, se nada for feito, o mar vai inundar dezenas de cidades e até países inteiros, pois subirá entre um e 1,60 metros, até 2100. A subida do nível do mar põe em risco a vida de milhões de pessoas, em todo o planeta: um risco direto nas regiões costeiras e nos arquipélagos, um perigo, também, para todos os outros, reitera o secretário-geral da ONU, António Guterres.

Segundo um estudo publicado na revista Science, em 2022, mesmo se conseguirmos limitar o aumento da temperatura global a 1.5°C, corremos o risco de provocar múltiplos “pontos de não retorno climáticos” no Ártico, o que agravará o cenário climático para todo o planeta.

Por outro lado, a investigação, “Hamburg Climate Futures Outlook”, do departamento de “Clima, Alterações Climáticas e Sociedade” (CLICCS, na sigla original) da Universidade de Hamburgo, Alemanha, analisou, além de questões físicas ligadas ao clima, a política climática, os protestos e a crise devido à invasão da Ucrânia pela Rússia, tendo concluído que a mudança social é essencial para cumprir os objetivos do Acordo de Paris.

Limitar o aquecimento global a 1,5ºC é improvável, indica o seu relatório, que valoriza as mudanças sociais, para cumprir os objetivos de redução de emissões de gases com efeito de estufa.

O Acordo de Paris, assinado em 2015 por quase todos os países do Mundo, estabelece, como meta para o controlo do aumento da temperatura, os 2ºC em relação à época pré-industrial e insta a que, se possível, o aumento não ultrapasse os 1,5ºC. E o objetivo tem sido mantido nas reuniões mundiais sobre o clima.

Para a “Hamburg Climate Futures Outlook”, as metas alcançadas até agora não são suficientes, sendo necessária nova abordagem sobre a adaptação às mudanças climáticas. “Na verdade, quando se trata de proteção climática, algumas coisas já foram postas em marcha. Mas, se analisarmos o desenvolvimento dos processos sociais em pormenor, manter o aquecimento global abaixo dos 1,5 graus ainda não é plausível”, diz Anita Engels, do CLICCS, citada no documento.

O estudo diz, nomeadamente, que os padrões de consumo e as respostas empresariais não estão a contribuir para as medidas de proteção climática, que são urgentemente necessárias.

Contudo, paralelamente, fatores como a política climática da ONU, as legislações, os protestos climáticos e o desinvestimento em combustíveis fósseis estão a apoiar os esforços para atingir os objetivos climáticos. São dinâmicas positivas, mas não suficientes para manter a temperatura no limite dos 1,5ºC. “A profunda descarbonização necessária está simplesmente a progredir demasiado lentamente", diz Anita Engels.

Os investigadores também analisaram processos físicos que são muitas vezes discutidos como pontos de rutura, como a perda de gelo no Oceano Glacial Ártico, o derretimento das calotas polares ou as alterações climáticas regionais, considerando que terão pouca influência sobre a temperatura global até 2050. E mais importante, embora de forma moderada, será o descongelamento das zonas com solo sempre gelado (permafrost), o enfraquecimento das correntes superficiais e profundas do Oceano Atlântico ou a perda de floresta na Amazónia.

“O facto é que estes temidos pontos de viragem poderiam mudar drasticamente as condições de vida na Terra, mas são largamente irrelevantes para alcançar os objetivos de temperatura do Acordo de Paris”, diz Jochem Marotzke, do Instituto Max Planck de Meteorologia, de Hamburgo.

O estudo, que analisou também a pandemia de covid-19 e a invasão russa da Ucrânia, concluiu que os programas de reconstrução económica reforçaram a dependência dos combustíveis fósseis, o que significa que as mudanças necessárias são agora menos plausíveis do que se supunha antes.

Porém, continua a não ser claro se os esforços para salvaguardar o fornecimento de energia à Europa e as tentativas da comunidade internacional para se tornar independente do gás russo irão minar ou acelerar a eliminação gradual dos combustíveis fósseis a longo prazo.

De acordo com o estudo, a melhor esperança para moldar um futuro climático positivo reside na capacidade da sociedade de fazer mudanças fundamentais, sendo importantes para isso as iniciativas transnacionais e não-governamentais e a continuação da pressão sobre os políticos.

A variação do nível do mar está associada à eustasia (do Grego stásis, posição + eu, bem, em relação a) e à isostasia (stásis, com o adjetivo isós, igual). A primeira é relativa ao volume das bacias oceânicas, enquanto a segunda se relaciona com os movimentos tectónicos.

A variação eustática resulta de fator que faça variar, significativamente, o volume de água presente no oceano. Uma das suas causas é a variação da quantidade de água presente nos oceanos, devido às alterações climáticas abruptas que ocorrem desde o início do Quaternário (período da escala de tempo geológico em que vivemos), em que se dá a fusão de calotas polares e/ou o aprisionamento de água em massas de gelo. A oscilação do volume da água do mar depende também da expansão e contração térmica, mercê da variação significativa da sua temperatura. Este processo, designado de “estereoeustasia” (stásis, com o adjetivo stereós), pode causar regressão ou transgressão, consoante a temperatura da água. Outra das causas é a mudança do volume das bacias oceânicas, como a ocorrida com o alargamento do Oceano Atlântico, devido à divergência das placas tectónicas, fazendo com que a eustasia e isostasia estejam interligadas.

Os movimentos isostáticos, como referido acima, estão diretamente ligados à tectónica de placas, provocando, assim, a subida e descida dos continentes e, por consequência, o recuo e o avanço do nível da água do mar, respetivamente. Uma das principais causas da isostasia é a glacio-isostasia, que se dá quando há formação de inlandsis, isto é, grandes mantos de gelo que cobrem área igual ou superior a 50.000 km². Este fenómeno foi observado no pico máximo da Glaciação de Würm há, aproximadamente, 18.000 anos, onde o mar recuou cerca de 120 metros devido à formação de inlandsis que chegavam aos 3 km de espessura, em alguns locais da Escandinávia, por exemplo. O peso destes mantos de gelo originou uma subsidência (descida) dessa região, fazendo com que os Países Baixos emergissem (subissem).

Atualmente, com o degelo desses inlandsis acontece o contrário, ou seja, a Escandinávia está a emergir e, por consequência, ali, o nível do mar está, momentaneamente, a descer (prova disso são as praias fósseis visíveis em alguns locais desta região), e os Países Baixos a subsidir, estando o nível do mar a subir. Uma outra causa poderá ser a sedimento-isostasia em que a deposição excessiva de sedimentos poderá ter os mesmos efeitos que a deposição do gelo.

***

O Ártico está a aquecer. E, como avisa Tomé Ribeiro Gomes, bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) sob o impacto da competição entre grandes potências e do aquecimento global, o mapa geopolítico do Ártico está em transformação, com imprevisíveis consequências.

Apesar disso, está longe das nossas mentes, talvez por a nossa conceção da geografia terrestre estar condicionada pelo planisfério de Mercator, cartógrafo flamengo do século XVI, que projetou o globo de forma plana, mas com várias distorções. Uma delas é a omissão da posição central do Oceano Glacial Ártico relativamente à América do Norte e à Eurásia. Além de ser a menor das cinco bacias oceânicas por área (4,3% da superfície terrestre), a bacia do Ártico é bordejada pela Rússia, EUA (Alasca), Canadá, Dinamarca (Gronelândia), Islândia e Noruega. A Finlândia e a Suécia não têm costa no Ártico, mas têm territórios a norte da linha do Círculo Polar Ártico.

Ora, se forem aceites os pedidos de adesão da Finlândia e da Suécia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), sete dos Oito do Ártico pertencerão a essa Aliança Atlântica, ficando de fora apenas a Federação Russa, quando cresce a animosidade entre este país e a NATO.

Durante a Guerra Fria, o Ártico era visto por ambos os lados como zona de fronteira, onde era essencial ter forte presença militar, incluindo bases aéreas e navais, sistemas de vigilância militar, armas nucleares e, no caso da União Soviética, frotas de submarinos com capacidade nuclear. Porém, após a dissolução da União Soviética, em 1991, abriu-se espaço para a cooperação internacional na região, sistema cujo alicerce é o Conselho do Ártico, fórum intergovernamental onde os Oito do Ártico, outros Estados com estatuto de observador e representantes de comunidades indígenas se reúnem, tendo celebrado acordos importantes nas áreas de busca e e de salvamento, bem como na resposta a desastres ambientais e na cooperação científica.

Esta e outras plataformas de diálogo estão em risco, devido à invasão da Ucrânia. A última reunião do Conselho do Ártico, em que a Rússia assumiu a liderança rotativa, aconteceu em 2021. O calendário normal apontaria para uma reunião em maio deste ano, mas os restantes sete membros permanentes não estão dispostos a reunir com representantes da Rússia.

Ao mesmo tempo, a calota ártica, a formidável barreira geográfica, está a ser erodida pelo aquecimento global. As medições de banquisa (camada congelada na superfície da água do mar, sazonal ou permanente) existente em setembro, feitas pela NASA, mostram a redução média de 12,6% por década. Com a extensão de banquisa a diminuir de ano para ano, torna-se mais fácil movimentar meios navais através do oceano Ártico, sobretudo no verão. Por conseguinte, aumenta a vulnerabilidade estratégica dos Estados costeiros, bem como os incentivos à exploração de recursos acessíveis, nomeadamente os depósitos minerais do Ártico (cobalto e níquel), e à utilização de rotas marítimas mais navegáveis. Deixarão de ser precisos os navios quebra-gelo, de custos proibitivos, e serão usados navios normais. Tudo isto será mais fácil para a Rússia.

***

Enfim, as alterações climáticas também podem originar nova geoestratégia política e provocar a desglobalização. Basta que os países se lembrem, cada um, de zelar pelos seus interesses, com os próprios meios, dizendo adeus ao multilateralismo e à cooperação dialogante.

2023.02.25 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário