domingo, 5 de fevereiro de 2023

Fiscalização preventiva do decreto sobre associações profissionais

 

Pela atenção à certeza e à segurança jurídicas, o Presidente da República (PT) decidiu, a 1 de fevereiro, nos termos do n.º 1 do art.º 278.º da Constituição (CRP), bem como do n.º 1 do art.º 51.º e n.º 1 do art.º 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional), submeter a fiscalização preventiva de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional (TC), o Decreto n.º 30/XV da Assembleia da República (AR) que altera a legislação relativa às associações profissionais e o acesso a certas profissões reguladas.

No entendimento do PR, o decreto que “reforça a salvaguarda do interesse público, a autonomia e a independência da regulação e promoção do acesso a atividades profissionais, recebido e registado na Presidência da República”, a 27 de janeiro de 2023, para ser promulgado, “suscita dúvidas relativamente ao respeito de princípios como os da igualdade e da proporcionalidade, da garantia de exercício de certos direitos, da autorregulação e democraticidade das associações profissionais”, todos previstos na CRP.

O decreto em causa altera as seguintes normas da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais: n.º 9 do artigo (art.º) 8.º; alínea e) do n.º 2 do artigo 15.º; alínea a) do n.º 2 do artigo 19.º; artigo 20.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro. E adita o art.º 15.º-A mesma lei.

Assim, o n.º 9 do art.º 8.º (referente aos Estatutos) do decreto em causa estabelece: “A avaliação final do estágio é da responsabilidade de um júri independente, que deve integrar personalidades de reconhecido mérito, que não sejam membros da associação pública profissional”.

A alínea e) do n.º 2 do art.º 15.º (refente aos Órgãos) prevê “um órgão disciplinar, que deve integrar personalidades de reconhecido mérito com conhecimentos e experiência relevantes para a respetiva atividade, que não sejam membros da associação pública profissional”.

O n.º 2 do art.º 19.º (referente às incompatibilidades no exercício de funções) estabelece, na alínea a) que o exercício de funções pelos inscritos nas associações públicas profissionais nos seus órgãos é incompatível com “o exercício de quaisquer funções dirigentes na função pública”.

O art.º 20.º (referente ao Provedor dos destinatários de serviços) estabelece que, sem prejuízo do estatuto do Provedor de Justiça, estas associações designam uma personalidade independente (provedor), não inscrita na associação pública profissional, para defender os interesses dos destinatários dos serviços profissionais prestados pelos seus membros. Este provedor é designado pelo bastonário ou presidente da associação pública profissional, sob proposta do órgão de supervisão, e não pode ser destituído, salvo por falta grave no exercício das suas funções. Sem prejuízo das competências previstas na lei ou nos estatutos, compete ao provedor analisar as queixas apresentadas pelos destinatários dos serviços e fazer recomendações para a sua resolução, bem como, em geral, para o aperfeiçoamento do desempenho da associação. As funções de provedor são remuneradas nos termos do estatuto ou de regulamento da associação.

 

O novo art.º 15.º-A, referente ao Órgão de Supervisão, ora criado, estipula que “é independente no exercício das suas funções, zela pela legalidade da atividade exercida pelos órgãos da associação e exerce poderes de controlo, nomeadamente em matéria de regulação do exercício da profissão”. E, sem prejuízo de outras competências estabelecidas por lei, compete-lhe: exercer as atribuições da alínea c) do n.º 1 do art.º 8.º, sob proposta do órgão colegial executivo, em especial a determinação das regras de estágio, incluindo a avaliação final, e a fixação de qualquer taxa referente às condições de acesso à inscrição na associação profissional; verificar a não sobreposição das matérias a lecionar no período formativo e a avaliar em eventual exame final com as matérias ou unidades curriculares que integram o curso conferente da habilitação académica, nos termos da primeira parte do n.º 5 do art.º 8.º, após parecer vinculativo da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, a emitir no prazo de 120 dias a contar do pedido; acompanhar a atividade do órgão disciplinar, designadamente pela apreciação anual do relatório de atividades e pela emissão de recomendações genéricas sobre os seus procedimentos; acompanhar a atividade formativa da associação, em especial a realização dos estágios de acesso à profissão, e o reconhecimento de competências obtidas no estrangeiro, designadamente, pela apreciação anual do respetivo relatório de atividades e da emissão de recomendações genéricas sobre os seus procedimentos; supervisionar a legalidade e a conformidade estatutária e regulamentar da atividade dos órgãos da associação; e propor a designação do provedor dos destinatários dos serviços, por inerência, membro do órgão de supervisão, sem direito de voto.

A destituição do provedor dos destinatários dos serviços por falta grave no exercício das suas funções, ouvido o órgão colegial executivo.

O órgão de supervisão é composto por número ímpar de membros a definir nos Estatutos, incluindo: 40% representantes da profissão, inscritos na associação pública profissional; 40% oriundos dos estabelecimentos de ensino superior que habilitem academicamente o acesso à profissão organizada em associação pública profissional, não inscritos na associação; e 20% cooptados pelos membros referidos, por maioria absoluta, de entre personalidades de reconhecido mérito, com conhecimentos e experiência relevantes para a atividade da associação pública profissional, não inscritos na associação. Os elementos dos dois primeiros grupos são eleitos pelos inscritos na associação pública profissional, nos termos a definir nos respetivos estatutos.

Os membros do órgão de supervisão elegem o presidente de entre os membros não inscritos.

O PR, no requerimento ao TC, escuda-se no respaldo constitucional, observando que as associações profissionais são consideradas associações públicas, gozando de um estatuto com o seguinte assento constitucional: direito de todos à liberdade de escolha da profissão ou do género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade (art.º 47.º, n.º 1); reserva relativa de competência legislativa da AR em matéria de associações públicas (art.º 165.º, n.º 1, alínea s); constituição das associações públicas só para a satisfação de necessidades específicas, não podendo exercer funções próprias das associações sindicais e tendo organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos (art.º 267.º, n.º 4).

Daí resulta, considera o PR, um regime constitucional próprio das associações públicas, em particular das associações profissionais, que deve ser respeitado pelo legislador, sendo que, no âmbito do princípio da autorregulação das Associações Profissionais, as mesmas devem reger-se por princípios democráticos internos, através de órgãos próprios, eleitos pelos seus membros.

As normas do decreto em causa estabelecem um conjunto de restrições relevantes ao princípio da autorregulação das associações profissionais e à demais proteção constitucional destas entidades, “o que sucede com a conjugação da competência com a composição do Conselho de Supervisão”, que, ao assumir funções de autorregulação genérica – incluindo o controlo da legalidade no exercício da regulação – tendo titulares que, na sua maioria, não pertencem à respetiva associação, e não são democraticamente eleitos pelos associados da mesma.

Aduz o PR que, nos Conselhos Gerais das Universidades (entidades públicas integradas na administração autónoma do Estado), os membros eleitos, que estão sempre em maioria, cooptam os membros não pertencentes ao corpo da universidade. Assim, órgãos de entidades públicas autónomas são mais estritos na democraticidade da composição do que os de entidades privadas.

Também o requerente critica a atribuição de funções de natureza disciplinar, de avaliação de final de estágio ou da atribuição da função de provedor a não inscritos na associação, pela violação do princípio da autorregulação, tal como põe em causa o regime de incompatibilidades absolutas relativamente ao exercício de funções dirigentes na Administração Pública, que deixa de exigir a demonstração da existência concreta de incompatibilidade, criando desproporcionada restrição ao exercício destas funções, sem evidência de fundamento material, que pode violar o disposto nos artigos 13.º, 18.º, 47.º, 50.º, 267.º e 269.º da CRP.

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A este respeito, o professor e constitucionalista Vital Moreira considera, no blogue Causa nossa, que “não existe nenhum direito constitucional nem a criar ordens profissionais nem à autorregulação profissional” Trata-se de decisões discricionárias do Estado, que precisam de fundamentação e que são reversíveis. A única exigência é a gestão democrática ou autogoverno das ordens que sejam criadas (que não está em causa), sem prejuízo da tutela estadual, por serem “entidades públicas no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado”. E o Estado só atribui às ordens as funções de regulação e disciplina profissional, que pertencem originariamente ao Estado, como autorregulação e autodisciplina, na medida e nas condições estabelecidas na lei. Com efeito, não há, segundo o académico, “direito natural ou constitucional a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta da profissão por parte das ordens profissionais”.

E aponta o académico e constitucionalista que o requerimento do PR omite que as ordens não são apenas entidades reguladoras, mas também entidades de representação e defesa de interesses profissionais (privilégio das profissões “ordenadas”), o que gera o risco de enviesarem o exercício dos seus poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em função dos interesses corporativos e em prejuízo dos utentes e do interesse público. “O défice de exercício do poder disciplinar é gritante entre nós” – sublinha. 

A esta luz, pode justificar-se, salvaguardando a autonomia das ordens, a imposição do provedor dos direitos dos clientes e a participação de não inscritos na ordem nos órgãos de supervisão e de disciplina profissional, cuja eleição / designação a lei a confere às ordens, e não a estranhos.

Mencionando uma questão levantada por um leitor sobre o privilégio de as ordens representarem e defenderem os interesses profissionais dos seus membros, o professor reconhece que elas são unicitárias e de inscrição universal obrigatória dispondo de recursos públicos (as quotas são contribuições tributárias), enquanto as demais profissões recorrem a associações voluntárias e, até concorrentes, dependendo das quotas voluntárias dos membros, o que viola o princípio da igualdade. Ademais, num Estado liberal, não há fundamento para caber a entidades públicas a defesa de interesses particulares. E esta questão não foi suscitada no requerimento presidencial.

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Enfim, o PR usou em demasia o bisturi e deixou de fora questões importantes. A meu ver, não há diferença entre o estabelecido para as ordens e para os conselhos gerais das universidades. Aliás, nos conselhos gerais das outras escolas, o número de elementos não docentes é maior que o dos docentes. E não vejo, se isso é bom, por que motivo tal não se há de replicar nos demais órgãos do poder (ex., Conselho Superior da Magistratura e Conselho Superior do Ministério Público).

Pode, inadvertidamente, estar a pressão das 20 ordens no subtexto do requerimento do PR.  

2023.02.05 – Louro de Carvalho

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