domingo, 26 de fevereiro de 2023

Colocar Deus no centro da nossa existência é o apelo da Quaresma

 

Ainda em início da caminhada quaresmal, aberta pela Quarta-feira de Cinzas, a Palavra de Deus, neste 1.º domingo quaresmal, constitui um convite à conversão, que postula colocar ou recolocar Deus no centro da nossa vida, disponibilizando-nos para a comunhão com Ele e concretizando, fielmente, no Mundo, o seu desígnio de paz e de felicidade para todos. 

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Da 1.ª leitura (Gn 2,7-9;3,1-7), deduzimos que Deus criou o homem para a felicidade e para a vida sem labéu. Escutando-O e não nos fechando no egoísmo, conhecemos a felicidade; porém, se prescindimos d’Ele, incorremos na prepotência e construímos vias de sofrimento e de morte.

O relato javista da criação (Gn 2,4b-3,24) é um texto do século X a.C., que terá aparecido em Judá, na época do rei Salomão. Tem um estilo exuberante, colorido e pitoresco, o que lhe dá o tom de obra de um catequista popular a ensinar com imagens coloridas e fortes.

O seu escopo não é científico ou histórico, mas teológico: mais do que explicar como apareceram o Mundo e o Homem, o autor quer vincar que na origem da vida e do homem está Javé.

Para apresentar esta catequese aos homens do século X a.C., os teólogos javistas recorrem a elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por exemplo, a formação do homem do pó da terra é um elemento dos mitos de raiz mesopotâmica). Todavia, transformam e adaptam os símbolos retirados das narrações lendárias de outros povos, dando-lhes novo enquadramento e nova interpretação, ao serviço da catequese e da fé de Israel. Assim, a linguagem e a apresentação literária das narrações bíblicas da criação apresentam paralelos com os mitos originários dos povos do Crescente Fértil, mas são muito diferentes as conclusões teológicas, principalmente as respeitantes a Deus e ao lugar que o homem ocupa no projeto de Deus.

A primeira parte (cf Gn 2,7-9) do trecho desta dominga desenvolve-se em dois quadros.

O primeiro pinta – a cores quentes e sugestivas – a origem do homem: “o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe nas narinas um sopro de vida”. O verbo usado para descrever a ação de Deus é yasar (formar, modelar), verbo ligado ao trabalho do oleiro. Deus aparece, pois, como o oleiro que modela a argila. Estamos próximos da conceção mesopotâmica, onde o homem é criado pelos deuses a partir do barro, como denota o jogo de palavras adam (homem) e adamah (terra), sugerindo que o homem (adam) vem da terra (adamah) e que, morrendo, voltará à terra de onde foi tirado. Porém, o homem não é apenas terra, porque recebe o sopro (neshamá) de Deus. A palavra hebraica utilizada significa sopro, hálito, respiração. É a vida que vem de Deus que torna o homem vivo. Por isso, o homem tem algo de divino, pois a sua vida procede de Deus. É de relevar o cuidado de Deus na criação do homem: Deus modela, qual oleiro, cuidadosa e amorosamente a sua obra e transmite-lhe a vida divina. O homem aparece, pois, como o centro do projeto de Deus, ocupando um lugar especial na criação, sendo que tudo foi criado para ele.

No segundo quadro, o autor javista reflete sobre a situação do homem criado por Deus. Deus não criou o homem para ser escravo dos deuses e prover ao sustento das divindades, como nos mitos mesopotâmicos. Na ótica deste catequista, o homem foi criado para ser feliz, em comunhão com Deus. Para descrever a situação ideal do homem, criado para a realização plena, o javista coloca-o num jardim cheio de árvores de fruto. Para um povo que sentia pesar sobre si a ameaça do deserto árido, o ideal de felicidade seria um lugar com muitas árvores e muita água.

Nessa vegetação abundante, o autor destaca duas árvores especiais: a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. A primeira simboliza a imortalidade concedida ao homem. Ao falar desta árvore, o autor estará a pensar na Lei. Desde o início, Deus ofereceu ao homem a possibilidade da vida imortal, que passa por uma vida percorrida no caminho da Lei e dos seus mandamentos. Ao lado da árvore da vida e em contraposição a ela (pois traz a morte), está a árvore do conhecimento do bem e do mal, que simboliza o orgulho e a autossuficiência de quem acha que pode conquistar a felicidade, prescindindo de Deus. Comer dessa árvore significa fechar-se em si próprio, querer decidir só por si o que é bem e o que é mal, pôr-se no lugar de Deus, reivindicar autonomia total em relação ao criador. O homem que renuncia à comunhão com Deus resolve seguir o caminho da morte.

A ideia do catequista é: Deus criou o homem para ser feliz; deu-lhe a possibilidade de vida imortal; mas o homem pode escolher prescindir de Deus e percorrer vias onde Deus não está.

Na segunda parte do trecho em causa (Gn 3,1-7), o autor equaciona a questão do mal. O mal que desfeia o Mundo e impede o Homem de ter vida plena vem das opções erradas que o homem tem feito, desde o início da história. Para dizer isto, o autor javista recorre à imagem da serpente. Entre os povos antigos, a serpente, cujo culto estava difundido entre os cananeus, é o símbolo, por excelência, da vida e da fecundidade (mercê da sua configuração fálica). Nos santuários cananeus invocavam-se os deuses da fertilidade (representados, não raro, pela serpente) e faziam-se rituais mágicos para assegurar a fecundidade dos campos. E os israelitas, instalados ali, deixaram-se fascinar por esses cultos e praticavam esses rituais para obterem a fecundidade dos campos e dos rebanhos. Porém, isso significava prescindir de Javé e da Lei, com os seus mandamentos. A serpente surge, portanto, como símbolo de tudo o que afasta os homens de Deus e do seu desígnio.

Em síntese, Deus criou o homem para ser feliz e indicou-lhe a via da imortalidade e da vida plena. Contudo, o homem tenta-se à rota do orgulho e da autossuficiência e vive à margem de Deus e do seu desígnio. E é essa a origem do mal, que destrói a harmonia do mundo.

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O Evangelho (Mt 4,1-11) apresenta o exemplo de Jesus, que recusou – em absoluto – uma vida vivida à margem de Deus e do seu desígnio. Com efeito, a Palavra de Deus, por vezes invocada de forma enviesada, garante que, na perspetiva cristã, vida que ignore o desígnio do Pai e aposte em esquemas de realização pessoal é vida perdida e que toda a tentação de ignorar Deus é de iniciativa diabólica, pelo que o cristão a deve rejeitar com firmeza, sem dialogar com ela.

A cena das tentações antecede, em Mateus, como nos outros sinóticos, a vida pública de Jesus. A cena segue-se imediatamente – em termos cronológicos e lógicos – ao Batismo. Porque recebeu o Espírito (batismo), Jesus pode afrontar e vencer a tentação da proposta de atuação messiânica que o convida a subverter a proposta do Pai.

Mateus diz que “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, a fim de ser tentado pelo demónio”. Os quarenta dias e quarenta noites que, segundo o relato, Jesus aí passou, resumem os quarenta anos da travessia de Israel pelo deserto. Nas mentes judaicas, o deserto é o lugar da “prova”, onde os israelitas experimentaram a tentação do abandono de Javé e do seu plano de libertação, mas também é o lugar do encontro com Deus e da descoberta do seu rosto, o lugar onde o Povo fez a experiência da sua fragilidade e pequenez e aprendeu a confiar na bondade e no amor de Deus. Porém, Jesus, no deserto, aprimorando o encontro com o Pai, mostra como resistir à tentação.

O relato mateano não resulta da observação presencial do combate teológico entre Jesus e o diabo. É, antes, uma página de catequese, com vista a ensinar que Jesus, tendo sentido a mordedura das tentações, soube pôr acima de tudo o desígnio e vontade do Pai e resistiu fundamentadamente.

O relato de Mateus, bem como o de Lucas, parte do relato, muito curto, de Marcos, mas ampliando o relato original, com um diálogo entre Jesus e o diabo, feito de citações do Antigo Testamento (AT), sobretudo do livro do Deuteronómio (DT).

A catequese sobre as opções de Jesus aparece em três quadros parabólicos.

O primeiro sugere que Jesus podia ter escolhido a via da realização material, da satisfação de necessidades físicas. É a tentação de fazer dos bens materiais a prioridade da vida. Contudo, Jesus sabe que “nem só de pão vive o homem” e que a realização do homem não está na acumulação de bens. A sua resposta cita Dt 8,3 e sugere que o seu alimento, a sua prioridade, não é um esquema de enriquecimento rápido, mas é o cumprimento da Palavra (vontade) do Pai.

O segundo quadro sugere que Jesus podia ter optado pela via do êxito fácil, mostrando o seu poder com gestos espetaculares e sendo aclamado pelas multidões, dispostas a deixarem-se fascinar pelo “show” mediático. E Jesus responde a esta tentação, citando Dt 6,16 e sugerindo que não está interessado em utilizar os dons de Deus para satisfazer projetos pessoais de êxito e de triunfo. Não tentar o Senhor Deus significa não exigir de Deus sinais e provas que sirvam para a promoção pessoal do homem e para que ele se imponha aos olhos dos outros homens.

O terceiro quadro sugere que Jesus podia ter elegido a via do poder, do domínio, da prepotência, à laia dos grandes da terra. Não obstante, sabe que a tentação de fazer do poder e do domínio a prioridade da vida é tentação diabólica. Por isso, citando Dt 6,13, assume, para Si, que só o Pai é absoluto e que só Ele deve ser adorado.

Estas três tentações constituem as três faces de uma única tentação, a de prescindir de Deus, de escolher a via do orgulho e da autossuficiência, à margem da vontade de Deus. Mas, para Jesus, ser “Filho de Deus” significa viver em comunhão com o Pai, escutar a sua voz e cumprir, obedientemente, o seu plano. Ao longo da sua vida, diante das diversas provocações dos adversários, vai confirmar a sua opção fundamental em torno do Reino e vai procurar concretizar, com total fidelidade, o desígnio do Pai.

Israel, ao longo da caminhada pelo deserto, sucumbiu, frequentemente, à tentação de ignorar a via de Deus. Jesus, ao invés, venceu a tentação de prescindir de Deus e de escolher caminhos à margem do desígnio do Pai. De Jesus vai nascer, por isso, o novo Povo de Deus, cuja vocação essencial é viver em comunhão com o Pai e concretizar o seu plano de salvação para o Mundo.

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A 2.ª leitura (Rm 5,12-19) propõe dois exemplos: Adão e Jesus. Adão representa o homem que prefere ignorar o plano de Deus e decidir, por si só, o caminho da vida; Jesus é o homem que assume viver na obediência ao desígnio de Deus. O esquema de Adão gera egoísmo, sofrimento e morte; o esquema de Jesus gera vida plena e definitiva.

No final da década de 50 (a Carta aos Romanos apareceu por volta de 57/58), multiplicavam-se as crises entre os cristãos oriundos do judaísmo e os oriundos do paganismo. Tinham perspetivas diferentes da salvação e da forma de viver o compromisso com Cristo e com o Evangelho. Os cristãos de origem judaica entendiam que, além da fé em Jesus, era preciso cumprir as obras da Lei (nomeadamente a circuncisão); e os de origem pagã recusavam-se a aceitar a obrigatoriedade das práticas judaicas. Este problema era também sentido pela comunidade cristã de Roma.

Assim, Paulo mostra a todos os crentes a unidade da revelação e da história da salvação: judeus e não judeus são, de igual forma, chamados por Deus à salvação; o essencial não é cumprir a Lei de Moisés, que não salva, mas acolher a salvação que Deus faz a todos, por Jesus.

O trecho em referência faz parte da primeira parte da carta (Rm 11,18-11,36). Depois de demonstrar que todos vivem mergulhados no pecado e que é a justiça de Deus que a todos salva, Paulo ensina que é através de Jesus que a vida de Deus chega aos homens e que se faz oferta de salvação para todos. Para deixar isto bem claro, recorre à antítese. Adão é a figura da humanidade que prescinde de Deus, escolha que produz injustiça e alienação; Cristo propôs um outro caminho, o da escuta de Deus, que, levando à superação do orgulho e da autossuficiência, faz nascer o Homem Novo, plenamente livre. Foi essa a proposta que Jesus fez à humanidade e libertou os homens da economia de pecado e inculcou no Mundo a economia de graça que gera a vida plena.

Não é claro que Paulo se refira, aqui, ao que a teologia posterior designou como pecado original (enquanto pecado histórico cometido pelo primeiro homem, que atinge e marca todos os homens). O que é claro é que a intervenção de Cristo na história humana se traduziu num dinamismo de esperança e de vida autêntica. Cristo apresentou à humanidade a via de comunhão com Deus e de obediência ao seu desígnio. E não pode haver serpente que desvie o Homem dessa via.

Para tanto, urge a conversão, urge colocar ou recolocar Deus no centro das nossas vidas.

2023.02.26 – Louro de Carvalho

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