segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

A perda da cauda por parte no ser humano no seu processo evolutivo

 

Os seres humanos já tiveram cauda (ou rabo) e perderam-na por duas vezes. A última e definitiva perda de cauda pelo ser humano aconteceu quando ele passou a bípede.

Os nossos antepassados, que andavam em quatro patas, tinham longa cauda, o que não surpreende. A novidade, apontada em estudo publicado pela revista Current Biology, é que foram duas as vezes em que o ser humano deixou a cauda. E o cóccix é o vestígio que sobra da perda definitiva da cauda, a qual nos catapultou para o bipedismo.

Porém, muito antes, houve outra ocasião em que os nossos maiores perderam a cauda, como atesta uma pesquisa da paleobióloga Lauren Sallan, do Departamento de Ciências da Terra e do Meio Ambiente da Universidade da Pensilvânia, que analisou o fóssil, de 350 milhões de anos, do Aetheretmon valentiacum, peixe de duas caudas, uma sobre a outra: uma era carnosa, ligada à vertebra do animal; a outra, mais flexível, funcionava como nadadeira.

A pesquisa prova que os descendentes do peixe que permaneceram animais aquáticos mantiveram o rabo flexível, suprimindo o carnoso, e os que saíram da água, originando os tetrápodes, fizeram a rota oposta, desenvolvendo a cauda carnosa. A símul, o rabo flexível transformou-se nos membros (pernas e braços), levando à perda da cauda flexível, pela primeira vez.

Para a cientista Tábita Hünemeier, professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP), “provavelmente, o rabo carnoso nos teleósteos [peixes modernos] perdeu-se por seleção natural, já que sobreviveram os que eram mais rápidos na água.” E os animais que passaram do ambiente aquático para o terrestre precisavam de outra habilidade, pois a estabilidade, adquirida com rabo carnoso, era mais importante do que a rapidez.

A segunda perda de cauda sucedeu quando os primatas transitaram para o bipedismo, isto é, passaram a andar eretos. Observa Hünemeier que a cauda humana terá sido eliminada por estar a ser excluída a par de outras caraterísticas. O andar ereto é mais importante do ponto de vista evolutivo. E a perda da cauda pode ter ocorrido à boleia.

Danilo Vicenssoto,  professor de arqueologia na Universidade Federal do Rio Grande, diz que o estudo agrega novidades relevantes, mormente na biomecânica, que explica a evolução da movimentação dos animais de quatro patas, vincando que  toda a novidade em pesquisa evolutiva é bem-vinda, porque temos um quebra-cabeça de 10 milhões de peças, quando a nossa caixinha só comporta mil peças. Por isso, qualquer peça que surja é muito importante.

Jan Simek, professor de Antropologia na Universidade do Tennessee, nos Estados Unidos da América (EUA), observa que a forma dos ossos de um corpo e o seu modo de encaixe podem contar a história de como ele se movia, quando estava vivo e que os antropólogos encontrar outras evidências na paisagem, por exemplo, que indicam como os povos antigos caminhavam.

Em 1994, foram encontrados na Etiópia os primeiros fósseis de um hominídeo desconhecido. Os antropólogos descreveram os restos mortais como sendo de mulher adulta e decidiram chamar-lhe a espécie de Ardipithecus ramidus, apelidada de Ardi. Ao longo dos 10 anos seguintes, foram encontrados e datados mais de cem fósseis dessa espécie, entre 4,2 milhões e 4,4 milhões de anos.

Ao examinarem os ossos, os cientistas identificaram caraterísticas indicativas do bipedismo. O pé tinha uma estrutura que permitia dar passos com o impulso dos dedos, o que os símios que andam em quatro patas não fazem. A forma dos ossos pélvicos, o modo de posição das pernas sob a pélvis e o modo como os ossos das pernas se encaixavam, também sugeriam que andavam eretos.

Pode ser que Ardi não andasse exatamente como o fazemos hoje, mas o bipedismo, como forma normal de movimento, parece ser uma característica desses fósseis de 4,4 milhões de anos atrás.

Em artigo sob o título “Por que e como o ser humano perdeu o rabo na evolução?”, publicado no site da BBC News Brasil, a 17 de outubro de 2012, Daniel Gonzalez Cappa considera que olhar para a parte traseira do corpo humano e perguntar pela cauda, longe de ser uma piada, é assunto sério para os cientistas, pois, se o ser humano é, biologicamente, parecido com o macaco, é de questionar por que ele tem cauda e nós não a temos. Assim, Bo Xia, estudante de pós-graduação em biologia de células-mãe na Escola de Medicina Grossman, da Universidade de Nova Iorque, reconhece que essa é uma boa questão.

A cauda pode ter múltiplos benefícios no mundo animal. Desde que surgiram nos primeiros seres vivos, há mais de 500 milhões de anos, a cauda assumiu vários papéis. Aos peixes, ajuda na propulsão dentro de água; aos pássaros, na realização do voo; aos mamíferos, no equilíbrio. Pode servir como arma de defesa, como no caso dos escorpiões, ou como sinal de advertência, como fazem as serpentes do tipo cascavel. Nos primatas, a cauda adapta-se a uma variedade de ambientes. Os macacos-uivadores, nativos das Américas do Sul e Central, por exemplo, têm cauda larga e preênsil (adaptada a prender e segurar coisas) que os ajuda a agarrar galhos ou alimentos quando estão sobre as árvores. Porém, os hominídeos, família de primatas que inclui os seres humanos e os grandes símios, como orangotangos, chimpanzés e gorilas, não têm cauda.

O desaparecimento da cauda na evolução dos hominídeos, segundo os cientistas, parece resultar de uma mutação genética, recém-descoberta, que afetou os genes que davam forma à cauda dos hominídeos, há uns 25 milhões de anos. A alteração sobreviveu ao longo do tempo e foi passando de geração para geração, mudando a locomoção dos hominídeos, o que estará conexo com o facto de os humanos caminharem sobre duas pernas. Tudo isso parece estar relacionado e ter ocorrido em torno do mesmo período evolutivo. Ora, este é um dos pontos evolutivos cruciais que nos distingue como humanos. E, a comprová-lo, Bo Xia aplicou a mutação em camundongos (os musculi, pequenos roedores domésticos da família dos ratos, que pesam cerca de 1,5gr).

Com efeito, os camundongos desenvolveram formas diferentes de caudas. Alguns tinham caudas mais curtas, enquanto noutros não cresceu cauda alguma.

O naturalista britânico Charles Darwin, em A Origem do Homem (1871), obra em que explicava que a sua teoria da evolução era aplicável à espécie humana, dizia que o Homo sapiens (a espécie humana atual) tinha parentesco com o macaco de cauda. Afinal, o homem sempre estabeleceu distância entre a sociedade moderna e o mundo animal: vive em casas, a pele é diferente e usa o cérebro para resolver dilemas complexos.

Darwin já tinha balançado as estruturas da ciência da época com A Origem das Espécies, em 1859, mas a explicação sobre a origem do ser humano foi revolucionária, já que a maioria dos cientistas ocidentais compartilhava a ideia de que Deus concebera todas as criaturas do planeta.

Entretanto, os humanos compartilham mais de 98% do ácido desoxirribonucleico (ADN) com os chimpanzés, com quem têm ancestrais em comum. Os primeiros hominídeos, surgidos há 20 milhões de anos, já não tinham cauda. Então, se a cauda está relacionada com a evolução de símios e de humanos e influenciou na locomoção e na forma de andar, cabe a pergunta: O que ocorreu primeiro, o desaparecimento da cauda ou a locomoção sobre duas pernas? É questão similar à de quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha.

É impossível conhecer, com exatidão, os acontecimentos iniciais que fizeram com que nossos antepassados ficassem de pé, sobre duas patas, e saber se isso tem a ver com a ausência de cauda, ou invés, se não temos cauda porque ficamos de pé e com isso é mais fácil mantermos o equilíbrio sobre as pernas, não precisando de cauda. Precisaríamos de uma máquina do tempo para o saber. E, como não a temos, poderíamos dizer que não sabemos e findaria a discussão. Não obstante, é oportuno falar disso. E os dois processos são discutidos conjuntamente ou interferem um no outro. Ou seja, não podemos falar da evolução humana sem referência à cauda ou à locomoção bípede (sobre duas pernas), independentemente do que veio (ou aconteceu) primeiro.

Bo Xia mergulhou no tema da cauda nos seres humanos desde que machucou o cóccix – osso da parte inferior da coluna – numa viagem de carro. O cóccix, do Latim coccyx, é a última peça da coluna vertebral, formado por quatro vértebras fundidas, e representa o vestígio do que foi uma cauda, há milhões de anos. Em imagens de embriões humanos, é possível ver uma cauda, que é absorvida pelo embrião após algumas semanas para dar forma à coluna vertebral. E o cóccix, que suporta os glúteos, está localizado no ponto onde outros animais possuem a cauda.

É preciso ter muitos conceitos sobre o desenvolvimento, sobre emendas alternativas, a genómica comparada. E Bo Xia mostrou que, se entendermos esses conceitos, poderemos mirar o genoma, dar-lhe sentido e ver o que existe nele. A mutação que ele identificou consiste em 300 letras genéticas no meio de um gene conhecido como TBXT, uma seção do ADN, praticamente igual em humanos e em símios. A provar a relação entre essa mutação e a cauda, Bo Xia manipulou geneticamente camundongos com a mesma mutação. Ele e os colegas observaram que a cauda não crescia nos camundongos manipulados, como acontecia normalmente com o animal.

Porém, tal descoberta é só a primeira de muitas outras, para se entender o papel das mutações genéticas nos nossos ancestrais. Os cientistas dizem que há mais de 30 genes envolvidos na formação da cauda em animais, e os pesquisadores de Nova Iorque falam só de um deles.

Todos os humanos têm o cóccix muito semelhantes entre si, mas, no caso dos camundongos, as caudas tinham tamanhos diferentes ou estavam completamente ausentes. Isto quer dizer que houve uma série de mutações que afetaram diferentes genes nos hominídeos, há 25 milhões de anos, o que foi alterando a nossa evolução. Essa pode ter sido uma mutação crucial, mas não tenha terá sido a única responsável pela evolução.

Os cientistas sabem como o ancestral do ser humano perdeu a cauda, há milhões de anos, mas não as razões pelas quais essa mutação sobreviveu por tanto tempo. Sabe-se que as mutações ocorrem, lentamente, durante o tempo todo. Umas são positivas, outras negativas, dependendo do ambiente.

Uma mutação negativa pode ser prejudicial para o hóspede, fazendo com que ele adoeça ou morra. Por isso, essa mutação não sobrevive ao longo do tempo. Porém, a mutação que traga vantagens evolutivas manter-se-á nos indivíduos mais bem adaptados, fazendo com que seja passada de geração a geração. Assim, a perda de cauda pode ter trazido vantagens evolutivas significativas aos hominídeos, o que explica a sua permanência ao longo do tempo. A vantagem pode não ter sido manter o equilíbrio sobre as árvores, mas uma melhor locomoção sobre duas pernas ou a utilização das mãos para a manipulação de objetos. Porém, isto não significa que a perda da causa tenha trazido só coisas boas. Bo Xia e a equipa viram que os camundongos exibiram más formações na coluna vertebral, semelhantes aos defeitos no tubo neural que afetam um em mil recém-nascidos humanos. Tais más formações, conexas com uma espinha dorsal bífica (partida em duas), significam que a coluna vertebral do feto não fecha totalmente, o que danifica os nervos e pode originar paralisia. Por isso, não se dirá que as mutações são boas ou más, mas que ocorrem. E isso postula analisar o genoma, o que pode contribuir para a compreensão, por meio do genoma, de outros eventos que ocorreram no nosso passado biológico.

Enfim, é de continuar a perscrutar a rota da evolução para melhor se perceber o ser humano, enormemente enigmático ou misterioso.

2023.02.06 – Louro de Carvalho

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