sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Mais perigoso do que Vladimir Putin é o “putinismo”

 

É o padre ortodoxo Cyril Hovorun, ex-secretário de Cirilo, o patriarca de Moscovo e de todas as Rússias, que fala de putinismo e o define como um conjunto de crenças convergentes na ideia fundamental de que “a Rússia é uma civilização especial favorecida por Deus”. E, à luz dessas crenças, conclui-se que a Rússia é “o país eleito”, o que legitima todo o tipo de violações e de violência, como está a acontecer, de facto, na Ucrânia.

Sustentando que “é necessário desmantelar o putinismo como se fez com o nazismo”, Hovorun explica a sua posição em entrevista publicada pelo jornal espanhol La Vanguardia, a 21 de fevereiro, precisamente, no primeiro aniversário da decisão do presidente russo de proceder a uma “operação militar especial” na Ucrânia, para desnazificar o regime e “libertar” o seu povo, tendo a operação – diga-se invasão – vindo para o terreno, passados três dias.

O padre ortodoxo é ucraniano, é professor de Teologia e foi, durante dez anos, secretário do patriarca Cirilo. Um ano após a invasão da Rússia ao seu país, assegura que o mais perigoso não é Vladimir Putin, mas o que chama de “putinismo”, fortemente suportado na Igreja Ortodoxa Russa. Com efeito, como adverte, “Putin pode ser derrotado com armas, mas o putinismo só com ideias”. E, se não se acabar com ele, todo o resto da Europa pode estar em perigo real.

Segundo Cyril Hovorun, “Putin tem um problema para explicar esta guerra aos russos e a si próprio, em termos racionais”. E, como “tal explicação é simplesmente impossível”, fica sem outra opção “senão recorrer a explicações metafísicas ou quase religiosas”. Para isso, “necessita da Igreja Ortodoxa Russa”, onde encontrou um forte aliado.

Assim, “o Kremlin e o Patriarcado de Moscovo fabricaram uma mitologia que doutrina a população russa e a faz aprovar a guerra” – explicita o professor de Teologia. “Esta mitologia não é nova”, diz, e pode encontrar-se “nas religiões dualistas do passado, que viam o Mundo dividido em partes boas e más”. Na ótica do presidente russo, o Ocidente é a parte malvada, enquanto a Rússia é a parte boa. Nos termos desta doutrina, a Ucrânia está ocupada pelas forças do mal do Ocidente e Putin diz acreditar que libertará a Ucrânia destas forças do mal. E a maioria dos russos acredita nisso mesmo. Por consequência, como os cruzados medievais eram impelidos pelas ideias similares de “libertação” (dos Lugares Santos, na Palestina, e das vias que para lá convergiam), sem contarem as vítimas dos seus esforços de “libertação”, também os Russos, no século XXI, não contam as vítimas da sua agressão, onde quer que seja necessário.

O discurso de Vladimir Putin no Parlamento de Moscovo, no mesmo dia em que era publicada a entrevista a Hovorun, reforça esta teoria. Na sua alocução anual sobre o estado da nação, o presidente russo, preocupado com a saúde espiritual das crianças russas, desferiu fortes críticas contra o Ocidente, onde considera ter-se instalado a decadência: “Vejam o que eles fazem com os seus próprios povos: a destruição das famílias, das identidades culturais e nacionais, a perversão e os maus-tratos de crianças, até a pedofilia são declarados como sendo a norma [….]. E os padres são obrigados a abençoar os casamentos homossexuais.”

Aduzindo argumentos usados por Cirilo, recorreu à Bíblia para “defender a família tradicional”. “A família é uma união entre um homem e uma mulher” e isso é algo que “aparece nas escrituras sagradas de todas as religiões”. Porém “os textos sagrados, atualmente, são questionados” pelo Ocidente, frisou, revelando particular preocupação com a saúde mental e espiritual das crianças russas: “temos que proteger os nossos filhos da degradação e da degeneração, e fá-lo-emos”.

A este respeito, é de recordar que, por ocasião do septuagésimo aniversário do líder do Kremlin, a 7 de outubro de 2022, o patriarca russo o felicitou, elogiando o papel do chefe de Estado na “transformação da imagem” do país.

Em mensagem dirigida a Vladimir Putin, Cirilo destacou a figura do líder “pelo reforço da soberania e das capacidades defensivas e da defesa dos interesses nacionais”. “Deus colocou-o a si no poder para que pudesse levar a cabo uma missão com uma importância particular e de uma grande responsabilidade para o destino do país e do povo que vos foi confiado”, acrescentou o líder da Igreja Ortodoxa Russa, que fez votos por que o chefe do Estado, no poder há 22 anos, tenha “capacidades físicas e morais para mais anos” e apelou aos fiéis a que rezassem por ele naquele dia, em todo o país. Putin conquistou a reputação de um líder nacional, leal à pátria, que o ama com sinceridade e que lhe dá forças”, vincou Cirilo. “Que a sua força não falhe e que a ajuda de Deus seja grande”, concluiu.

O patriarca Cirilo, líder dos ortodoxos russos desde 2009, pôs a Igreja Russa ao serviço de Vladimir Putin, que chegou a classificar como “um milagre” em 2012. Os dois homens partilham a ambição de uma Rússia conservadora e dominadora e o chefe da Igreja ortodoxa apoiou a nova campanha militar contra a Ucrânia. Em particular, concordam que se verifica “uma decadência moral e declínio no Ocidente”, nomeadamente pela tolerância em relação à comunidade LGBT, o que significa o advento do “ satanismo”.

Cirilo, como é conhecido Vladimir Mikhailovitch Goundiaiev, sucedeu a Alexandre II, tem 75 anos, nasceu em Leninegrado (hoje São Petersburgo), em 1946 e, tal como Putin, foi agente do KGB, a polícia política da ex-União Soviética.

Além de Cirilo, outras personalidades felicitaram o chefe de Estado russo  pelo seu aniversário. O líder checheno, Kadyrov, postou uma mensagem na rede Telegram felicitando “o líder de todo um povo”, uma das personalidades mais influentes e excecionais do mundo contemporâneo. E o presidente da Câmara Baixa do Parlamento, Viatcheslav Volodine, difundiu, através das redes sociais, um retrato do presidente com a legenda: “Se existe Putin, então a Rússia existe.”

Cyril Hovorun recorda que o Papa Francisco apelidou Putin de “acólito de Cirilo” e defende que “do ponto de vista de Cirilo, Putin é que é o seu acólito”. Na opinião do padre ortodoxo ucraniano, Putin e Cirilo não gostam muito um do outro, mas precisam um do outro. Se, para o presidente russo, a Igreja é “um dos principais provedores da sua legitimidade” e ajuda a fabricar argumentos de apoio à sua guerra, para Cirilo “Putin é a sua principal fonte de riqueza e prestígio”. Como consequência deste “casamento de conveniência”, haverá pesadas faturas. A Igreja na Rússia está a ser desacreditada pelo apoio que vem dando à guerra, com os Russos que ainda a apoiam cada vez mais a crerem que não é função da Igreja dar-lhe suporte. Assim, quando a guerra acabar, haverá um grande fiasco pessoal para Cirilo e para a Igreja russa. E, para encontrar, por si mesma, um novo lugar na nova Rússia, esta Igreja terá de se arrepender do que fez sob Putin, mas sem ser capaz de evitar que a sociedade russa se torne ainda mais secularizada.

Quanto às diversas Igrejas locais independentes que compõem a Igreja ortodoxa, apenas algumas condenaram explicitamente a agressão russa. Muitas não se atrevem a avaliar a guerra. Isto significa, para Hovorun, que a guerra dividiu a “Ortodoxia global” e que só pode reconciliar-se depois de condenar unanimemente a guerra e o seu perpetrador: a Rússia de Putin.

Em todo o caso, Hovorun considera que, para haver “uma paz duradoura na Europa”, a vitória “deveria ser ucraniana e não russa”. Com efeito, se a Rússia sente que ganhou a guerra, continuará a tentar a sua sorte, invadindo o Ocidente, ou seja, fazendo estender ainda mais a guerra ao continente europeu, como uma gangrena. E não se pode parar uma gangrena, a não ser que se remova cirurgicamente. Por isso, conclui o sacerdote que “é indispensável “desmantelar o putinismo, tal como se desmantelou o nazismo na Alemanha depois da morte de Hitler”.

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As suspeitas sobre o passado do patriarca ortodoxo russo circulavam há anos e dois jornais suíços, que cederam a arquivos desclassificados dos respetivos serviços secretos, confirmaram-nas a 5 de fevereiro. Cirilo trabalhou para a principal organização de serviços secretos da então União Soviética, o KGB, durante os anos que viveu na Suíça, na década de 1970.

De acordo com o Le Matin Dimanche e o Sonntagszeitung, a ficha policial de Cirilo, atual líder espiritual da Igreja Ortodoxa Russa que tem apoiado assumidamente a invasão russa à Ucrânia, “confirma que ‘Monsenhor Kirill’, como é chamado no documento, pertence ao KGB”.

No início dos anos 70, o patriarca foi morar para Genebra, para representar o Patriarcado de Moscovo no Conselho Ecuménico de Igrejas (CEI). A missão de Cirilo, cujo nome de código era Mikhailov, seria influenciar a instituição, para que denunciasse os Estados Unidos e aliados e moderasse as críticas à falta de liberdade religiosa na União Soviética. Porém, contactado por ambos os jornais, o CEI afirmou não ter “nenhuma informação” sobre este assunto.

Entretanto, Mikhail Gundiaev, um sobrinho que o substituiu como representante do Patriarcado de Moscovo em Genebra declarou ao Le Matin Dimanche que o tio “não era um agente, apesar de estar sob o ‘estrito controlo’ do KGB”, o que “não afetou a honestidade do seu compromisso no trabalho ecuménico com outras igrejas”.

As declarações de Mikhail Gundiaev não desvinculam Cirilo da sujeição ao KGB e muito menos o papel do Líder da Igreja Ortodoxa Russa na consolidação do nefasto putinismo.

2023.02.24 – Louro de Carvalho

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