domingo, 12 de fevereiro de 2023

Garantia da vida plena assente na observância da lei ao jeito de Cristo

 

A Liturgia da Palavra do 6.º domingo do Tempo Comum no Ano A concita a reflexão sobre a atitude a assumir, face ao desígnio de Deus para levar o homem à vida plena, a vida eterna,

A 1.ª leitura (Sir 15,16-21; 15-20, na Vulgata latina) sublinha, contra a fatalidade dos mentores do judaísmo, que o homem é livre de escolher entre a proposta de Deus (a da felicidade) e a autossuficiência do homem (que desemboca na desgraça, na morte), o que vem explícito no Salmo n.º 1, o das duas vias: a dos justos, bem-sucedida; e a dos pecadores, que leva à perdição.

Para ajudar o homem que escolhe a vida, Deus dota-o dos mandamentos da Aliança que vinculam o Povo e o ser humano e servem de sinais com que Deus delimita a vereda que leva à salvação.

O Livro de Ben Sirah, designado na Bíblia Católica por Eclesiástico, é livro sapiencial, ou seja, livro cujo escopo é apresentar indicações práticas, a partir da reflexão e da experiência, sobre a arte de viver bem, de ser feliz – temática da reflexão sapiencial no Médio Oriente. O autor é Jesus Ben Sirah, judeu tradicional, cônscio de que a Torah (Lei) dada por Deus é a súmula da sabedoria.

Estamos no início do século II a.C., quando a cultura grega, instalada na Palestina desde 333 a.C., quando Alexandre da Macedónia venceu Dario III, em Issos, e se apossou da Palestina e do Egito, minava a cultura, a fé, os valores de Israel. Os jovens abandonavam a fé dos pais, atraídos pelo brilho superior da cultura helénica, cultura universal. E Ben Sirah, escrevendo para ajudar os israelitas a perceber a singularidade da sua fé e da sua cultura, e para não se perder a identidade do Povo de Deus, apresenta, uma síntese da religião e da sabedoria de Israel, mostrando que a cultura judaica nada fica a dever à cultura grega.

Os capítulos 14 e 15 contêm uma reflexão sobre como encontrar a felicidade. Dirigindo-se aos concidadãos, seduzidos pela cultura grega, Ben Sirah sugere a rota da verdadeira felicidade e insta a percorrê-la. O tema da opção entre dois caminhos – o da vida e da felicidade e o do caminho da desgraça e da morte – é caro à teologia de Israel. Para os deuteronomistas, esta é a questão que determina o sentido da vida e da história: se o homem elege a via de orgulho e de autossuficiência, à margem de Deus e dos mandamentos, prepara para si e para a sua comunidade um futuro de desgraça; mas se escolhe viver no temor de Deus e no respeito pelos mandamentos de Javé, constrói para si e para o seu Povo um futuro de felicidade, de bem-estar, de abundância, de paz. Este problema está explícito em Dt 30,15-20. E a reflexão sapiencial mantém-se na mesma linha. Os sábios de Israel perceberam (a partir da experiência que a história da nação lhes propiciou) que, respeitando as indicações de Deus, o Povo constrói uma sociedade fraterna, livre e solidária, onde todos se respeitam e têm o necessário para viver de forma equilibrada; mas, quando o Povo opta por caminhos à margem de Javé, menosprezando a Palavra de Deus, constrói egoísmo, exploração e divisão e, por conseguinte, sofrimento e morte.

No trecho em referência, Ben Sirah põe os contemporâneos – sobretudo os que oscilavam entre a fé e a cultura dominante – diante da opção que a liberdade lhes oferece: vida ou morte.

Deus respeita, em absoluto, a liberdade do homem, que não é uma marionete nas mãos de Deus, ou um robô que Deus liga e desliga com telecomando. O homem, como ser livre, faz as suas escolhas (que lhe determinam o futuro) e tem nas mãos o próprio destino. Deus indica-lhe o caminho para chegar à vida; mas, depois, respeita as opções que o homem faz. Resta ao homem fazer escolhas e construir o seu destino: com Deus ou contra Deus. Porém, nunca pode culpar Deus pelos erros em que incorre na sua impiedade, escudado na sua vontade livre.

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No Evangelho (Mt 5,17-37), aprofunda-se a reflexão do Bem Sirah, sobre a atitude de base com que o homem deve abordar o caminho balizado pelos mandamentos. Não se trata de cumprir só regras externas, respeitando a letra da lei, mas de assumir a verdadeira atitude interior de adesão a Deus, com real correspondência em todos os passos da vida.

O discurso de Jesus no cimo do monte ou sermão da montanha transporta-nos ao Sinai, o monte da Lei, onde Deus Se revelou e deu ao seu Povo a Lei; agora, é Jesus que, numa montanha, oferece ao novo Povo a nova Lei que deve guiar todos os interessados em aderir ao Reino. E o evangelista, agrupando um conjunto de ditos de Jesus, oferece à comunidade a nova Lei, novo código ético, para guiar os discípulos na sua marcha pela história.

Na década de 80, quando surge o Evangelho de Mateus, as questões da comunidade são as relativas à obrigação de cumprir a Lei de Moisés ou à eventual abolição da Lei antiga por Jesus.

É de anotar que, no momento da transfiguração (cf Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36), Pedro, ante a visão de Jesus transfigurado a falar com Moisés (antonomásia da Lei) e com Elias (antonomásia da Profecia), propôs-se fazer ali três tendas: uma para Jesus, outra para Moisés e outra para Elias. E observa Frederico Lourenço que Pedro não sabia o que estava a dizer, pois não estava a dar conta de que Jesus é superior a Moisés e a Elias, cabendo-lhe assumir, mas também reformar e interiorizar a Lei e a Profecia e, sobretudo dar-lhe novo sentido, para que dela nada se perca.  

Mateus pretende conciliar as tendências e as respostas dos vários grupos que, no contexto da sua comunidade cristã, eram dadas a estas questões. Contudo, marca uma linha de rumo precisa.

Na primeira parte do trecho em referência (vv 17-19), Mateus sustenta que Cristo não veio abolir a Lei que Deus ofereceu ao Povo no Sinai, a qual mantém toda a validade de eternidade. Todavia, é preciso assumi-la, não como um conjunto de prescrições externas, que obrigam o homem a certos procedimentos, no contexto de situações particulares, mas como expressão concreta de adesão total a Deus, que requer a totalidade do homem e que está para lá desta ou daquela situação concreta. Assim, enquanto os fariseus (cuja doutrina era dominante no judaísmo do pós-destruição de Jerusalém), caídos na casuística da Lei, pensavam que a salvação passava pelo cumprimento de certas normas externas, Mateus considera que a proposta de Jesus vai mais além, passando pela assunção da atitude interior de compromisso total com Deus.

Na segunda parte (vv 20-37), Mateus refere quatro exemplos desta nova forma de entender a Lei.

No respeitante às relações fraternas, a Lei de Moisés exige, simplesmente, não matar (cf Ex 20,13; Dt 5,17); mas Jesus, que não se atém ao estrito cumprimento da letra da Lei, exige nova atitude interior. Assim, não matar implica evitar qualquer tipo de dano ao irmão. Com efeito, são muitas as formas de destruir o irmão: palavras ofensivas, calúnias demolidoras, gestos de desprezo que excluem, confrontos que põem fim à relação. Ora, os discípulos do Reino não podem limitar-se a cumprir a letra da Lei, mas têm de assumir uma atitude mais abrangente, que os leve a um respeito absoluto pela vida e pela dignidade do irmão. E Mateus apresenta à comunidade uma catequese sobre a urgência da reconciliação (cortar relações com o irmão, afastá-lo da relação, marginalizá-lo são forma de matar). A reconciliação com o irmão deve sobrepor-se ao culto, pois é mentirosa a relação com Deus de alguém que não ama os irmãos. Não basta não ter nada contra o irmão: importa que ele nada tenha contra nós.

Depois, a Lei de Moisés exige não cometer adultério (cf Ex 20,14; Dt 5,18); mas, segundo Jesus, é preciso ir mais além e atacar a raiz do problema, que é o coração do homem, onde nascem os desejos de apropriação do que não lhe pertence. Portanto, a esse nível, impõe-se uma conversão. A referência a arrancar o olho, que é ocasião de pecado (o olho é, nesta cultura, o órgão que dá entrada ao desejo), ou a cortar a mão, que é ocasião de pecado (a mão é o órgão da ação, pelo qual se concretizam os desejos), encerra expressões fortes (ao gosto da cultura semita) para dizer que é preciso atuar onde as ações más do homem têm origem e eliminar, na fonte, as raízes do mal.

Quanto ao divórcio, a Lei de Moisés permite ao homem o repúdio da sua mulher (cf Dt 24,1); mas Jesus corrige esta norma da Lei: o divórcio não estava no plano inicial de Deus, quando criou o homem e a mulher e os chamou a amarem-se e a partilharem a vida.

No atinente ao julgamento, a Lei de Moisés pede a fidelidade aos compromissos selados com juramento (cf Lv 19,12; Nm 20,3; Dt 23,22-24), mas, para Jesus, a necessidade de jurar assenta num clima de desconfiança adverso ao Reino. Para os que estão inseridos na dinâmica do Reino, deve haver um clima de sinceridade e de confiança, a ponto de bastar o simples “sim” e o simples “não”. Qualquer fórmula de juramento é supérflua e sinal de corrupção da dinâmica do Reino.

A questão essencial é: quem vive na dinâmica do Reino não se limita à letra da Lei, mas assume a nova atitude interior, um compromisso com Deus que envolva o homem todo e lhe transforme o coração. A Lei não é revogável, mas ganha novo sentido e deve ser ensinada com o sentido que jesus lhe pespegou, para sermos grandes no Reino. E não se pode perder tempo a levar a tribunal a relação entre irmãos: além das consequências no foro espiritual e social, é deitar dinheiro fora.

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Na segunda leitura (1Cor 2,6-10), Paulo apresenta o plano salvador (que chama sabedoria de Deus ou mistério) que Deus preparou, desde sempre, “para aqueles que o amam” e que esteve oculto aos olhos dos homens, mas que Jesus Cristo revelou na sua pessoa, nas suas palavras, nos seus gestos e, sobretudo, com a morte na cruz. Aí, no dom total da vida, revelou aos homens a medida do amor de Deus e mostrou ao homem o caminho que leva à realização plena.

Recorde-se que o ponto de partida para a reflexão do apóstolo é a pretensão dos Coríntios em equipararem a fé cristã a um caminho filosófico, a percorrer sob a orientação de mestres humanos (Paulo, Pedro, Apolo…), ao modo das escolas filosóficas gregas, correndo o risco de a fé se tornar uma ideologia, mais ou menos brilhante, conforme as qualidades pessoais ou a elegância do discurso dos mestres que defendiam essas teses. Ao invés, Paulo está consciente de que o único mestre é Cristo e de que a verdadeira sabedoria não é a resultante do brilho e da elegância das palavras ou da coerência dos sistemas filosóficos, mas é a que brota da cruz.

Após denunciar a pretensão dos Coríntios de encontrarem nos homens a verdadeira sabedoria para chegarem à vida plena, Paulo apresenta – de forma mais desenvolvida – a sabedoria de Deus.

Falar da sabedoria de Deus é falar do plano de salvação que Deus preparou para a humanidade (noutros textos, Paulo usa outro conceito para falar do mesmo: “mystêrion” – cf Rm 16,25; Ef 1,3-10; 3,3.4.9; Cl 1,26; 2,2; 4,3). É o plano “que Deus preparou para aqueles que o amam”, no sentido de os levar à vida plena, e que resulta do amor e da solicitude de Deus pelos seus filhos. É um plano que Deus manteve misterioso e oculto durante muitos séculos e que só revelou através do seu Filho, Jesus Cristo, pois, antes da revelação através das palavras, dos gestos, da pessoa de Cristo, dificilmente os homens estariam preparados para compreender o alcance e a profundidade do plano divino, da sabedoria de Deus.

Na leitura paulina da história da salvação, as coisas são claras: Deus escolheu-nos desde sempre, para que, tornando-nos santos e irrepreensíveis, para cheguemos à vida eterna. Por isso, veio ao nosso encontro, fez aliança connosco, indicou-nos as vias da vida e da felicidade; e, na plenitude dos tempos, enviou ao nosso encontro o próprio Filho, que nos libertou do pecado, nos inseriu na dinâmica de amor e de doação da vida e nos convocou à comunhão com Deus e com os irmãos. Na cruz, está bem explícita esta história de amor que vai até ao ponto de o próprio Filho dar a vida por nós. O plano de salvação continua a acontecer na vida dos crentes pela ação do Espírito: é o Espírito que nos anima no sentido de nascermos, no quotidiano, como homens novos, até nos identificarmos com Cristo e sermos compartícipes da sua missão messiânica.

Somos cristãos ao jeito de Cristo. Não cristãos não praticantes, nem praticantes não crentes!

2023.02.12 – Louro de Carvalho

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