quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

São Leonardo de Galafura (à proa de um navio de penedos)

 

À proa dum navio de penedos,

A navegar num doce mar de mosto,

Capitão no seu posto

De comando,

S. Leonardo vai sulcando

As ondas

Da eternidade,

Sem pressa de chegar ao seu destino.

Ancorado e feliz no cais humano,

É num antecipado desengano

Que ruma em direção ao cais divino.

 

Lá não terá socalcos

Nem vinhedos

Na menina dos olhos deslumbrados;

Doiros desaguados

Serão charcos de luz

Envelhecida;

Rasos, todos os montes

Deixarão prolongar os horizontes

Até onde se extinga a cor da vida.

 

 

 

Por isso, é devagar que se aproxima

Da bem-aventurança.

É lentamente que o rabelo avança

Debaixo dos seus pés de marinheiro.

E cada hora a mais que gasta no caminho

É um sorvo a mais de cheiro

A terra e a rosmaninho!

 

Durante trinta anos, Miguel Torga tentou o retrato poético do Santo, que sempre se lhe escapava. Mas, num dia, o instantâneo surgiu. Para a figura do Santo está transporta a apetência telúrica do poeta, pois, o Santo, a caminho do Paraíso, como capitão “à proa dum navio de penedos,/A navegar num doce mar de mosto” (a paisagem duriense), não tem pressa “de chegar ao seu destino”, porque “feliz no cais humano/É num antecipado desengano/Que ruma em direção ao cais divino”. Isto, porque sabe que lá os seus olhos não se deslumbrarão com os socalcos e vinhedos do Douro, com os montes, com tudo o que deixa, e tudo o que vai encontrar “São charcos de luz/Envelhecida/ (...) Até onde se extinga a cor da vida”. A viagem no barco rabelo é lenta, para poder prolongar o prazer de sorver mais um pouco o cheiro da terra e do rosmaninho.

Estimulado pelo tema do telurismo, o poeta idealiza a navegação vagarosa de São Leonardo, ao longo da terra duriense, num antecipado “desengano” do que será o “cais divino”, já vergado às saudades da terra que vai deixar. É a metáfora da vida do homem sobre a terra que ama e deixa.

O poema desenvolve-se numa estrutura externa de irregularidade formal, com três estrofes, correspondentes a cada uma das três partes da estrutura interna. A primeira é formada por 11 versos, a segunda por nove e a terceira por sete – decréscimo que simbolizará a aproximação da viagem do santo do seu destino, uma viagem que se vai aproximando do seu término.

A métrica, irregular, alterna versos longos e curtos, o que sugere a irregularidade do percurso.

A nível da estrutura interna, o poema progride de forma circular em três partes.

Na 1.ª parte (1.ª estrofe), emerge a realidade imaginada. O poeta imagina S. Leonardo “à proa de um navio de penedos”, similar de um barco rabelo, a navegar, sem pressas, num “doce mar de mosto” que o prende à terra, em direção à eternidade, mas arrependido de deixar o “cais humano”, que é a terra duriense, “num antecipado desengano” da vida que está para lá do “cais divino”. Destaca-se o recurso ao presente do indicativo (“ruma”, “avança”) e à construção verbal complexa “vai sulcando” e “a navegar”, sugerindo a realização gradual, o lento desenrolar da viagem, sugerido também pelo particípio “ancorado” e pelos advérbios “devagar” e “lentamente”.

Na 2.ª parte (2.ª estrofe) entrevê-se o motivo da lentidão e do desengano do Santo. Na eternidade, não haverá socalcos, vinhedos, água do Douro e montes, mas “charcos de luz / Envelhecida”; os montes serão todos rasos, estendendo-se o horizonte até se extinguir a cor da vida. Predomina o futuro do indicativo (“terá”, “serão”, “deixarão”), para descrever a realidade para que se caminha.

Na 3.ª parte (3.ª estrofe) evidencia-se o egresso à imagem descritiva da primeira estrofe. O santo navega cada vez mais lentamente em direção à eternidade, aproveitando os últimos momentos de contemplação da paisagem duriense para sorver o “cheiro a terra e a rosmaninho”, isto é, para que se prolongue a permanência na terra. O emissor lírico, que imagina o Santo a navegar, na primeira estrofe, não em barco celestial, mas num navio de penedos (alusão às serranias transmontanas), agora vê-o a deslizar num barco rabelo (típico do rio Douro para transporte do vinho do Porto). E predomina, de novo, o presente do indicativo com o mesmo escopo da primeira estrofe.

Antes de prosseguir, é de ter em conta: 

S. Leonardo de Galafura é um miradouro do alto da montanha, junto a uma capela, em Galafura, antiga freguesia do concelho da Régua, distrito de Vila Real, hoje unida a Covelinhas. Vista do sopé, dá a imagem de navegar pelo espaço. Os barcos rabelos são barcos à vela, caraterísticos do rio Douro, usados para o transporte das pipas de vinho do Porto, do Alto Douro até Vila Nova de Gaia, onde se situam as principais caves. Mosto é o sumo de uva, antes da fermentação completa. Socalcos são porções de terreno nas encostas dos montes, suportadas por muros de pedra.  

O poema é marcado pelo mito de Anteu, um gigante, filho de Neptuno (Poseidon) e da Terra (Geia), que habitava na Líbia e que obrigava todos os viajantes a lutar. Depois de os ter vencido e levado à morte, enfeitava o templo do pai com os despojos. Enquanto estivesse em contacto com a mãe, Geia, isto é, a Terra, Anteu era invulnerável. Um dia, enfrentou Hércules e, nessa luta, recuperava forças sempre que tocasse o solo e era invencível. Então, Hércules ergueu-o nos braços e sufocou-o sobre os ombros, conseguindo eliminá-lo desta maneira.

Evoca-se este mito quando alguém, estabelecendo contactos com as suas raízes, ou seja, com a origem das suas ideias ou dos seus sentimentos, recupera energias físicas ou psicológicas.

Fazendo a apologia deste mito, Miguel Torga valoriza sobretudo a terra-mãe. Tal como Anteu, o poeta é atacado por forças que o abatem, mas, à semelhança da personagem mítica, retempera as suas energias na sua terra natal, S. Martinho de Anta, terra vizinha de Galafura.

Assim, o poema é o testemunho, de pendor autobiográfico, da afeição telúrica de Miguel Torga pela terra duriense, daí o antecipado desengano do Santo/Torga, pois ama-a e vai abandoná-la. Esta afeição telúrica permite compreender o pseudónimo adotado por Adolfo Correia da Rocha: a escolha de Miguel homenageia o escritor castelhano Miguel de Unamuno (1864-1936), que muito admirava, e Miguel de Cervantes (1547-1616), escritor espanhol, autor de D. Quixote; e Torga é o nome de uma urze transmontana.

Como ficou dito e é caraterístico em Miguel Torga, o poema apresenta uma estrutura circular: começa com a descrição da viagem vagarosa do Santo através do Douro, apresenta a razão dessa lentidão e do desengano, antecipando o que estará “lá” no final do caminho (o futuro), e retorna ao presente e à descrição da lenta viagem em direção à eternidade.

As razões que justificam a lentidão do Santo são as seguintes: no “cais divino”, não haverá socalcos, vinhedos, água do Douro e montes; o Santo é feliz na terra, onde moram a felicidade, a vida e a luz; a viagem é lenta, para que o santo possa prolongar o prazer de sorver “[…] mais de cheiro / A terra e a rosmaninho!” (vv. 26-27).

O estado de espírito do sujeito poético é modelado pelos seguintes dados: está sem pressa de abandonar o “cais humano”, a terra duriense; é feliz neste “cais humano”; mostra-se arrependido de deixar o “cais humano”; sente-se desenganado e desiludido, antecipadamente, da vida que está para lá do “cais divino”; experiencia a profunda saudade da terra duriense.

Estando o poema revestido de notório caráter alegórico, o emissor lírico estabelece um paralelo entre terra e céu, o “cais humano” e o “cais divino”, duas metáforas que superlativizam a terra, indiciando o telurismo de Miguel Torga. Este paralelismo atinge foros de heresia, pois o “cais humano” goza de caraterísticas e de encantos que se sobrepõem ao “cais divino”.

Para a consecução de um poema coerente e arrebatante, o artista lança mão de vários recursos expressivos ao nível fónico, ao nível morfossintático e ao nível semântico.

Ao nível fónico, temos, como se disse, três estrofes irregulares (11, 9 e 7 versos); a métrica é irregular, havendo versos de duas a 11 sílabas métricas; o ritmo é repousado, sobretudo na última estrofe, em harmonia com o andamento moderado da viagem de São Leonardo e, em termos da rima, além de versos brancos ou soltos nas três estrofes, há rima emparelhada e interpolada (primeira e segunda estrofes), emparelhada e cruzada (última estrofe). Além disso, há rima consoante (“mosto”/”posto”); rima pobre (“mosto”/”posto”) e rica (“comando”/”sulcando”); e rima grave (“mosto”/”posto”). E há transporte, por exemplo vv. 3-4, 5-6, 10-11. Todos estes fatores se conjugam para dar uma ideia de irregularidade do espaço observado.

Os sons dominantes são fechados (.ê, .ô, .â), nasais (.na, .on, .in) e agudos (.i, .u). A alternância de sons coaduna-se com o arrastamento da viagem de quem avança para o futuro, lamentando deixar o presente; simultaneamente, a alternância entre sons abertos e sons fechados traduz, respetivamente, a alegria pelas coisas terrestres e a tristeza por ter de as deixar. A aliteração do fonema /p/ sugere a viagem, e a do fonema /m/ sugere o apego à terra duriense. 

Ao nível morfossintático, ressaltam: as formas verbais no presente do indicativo (“ruma”, “avança”) na primeira e na terceira estrofes, bem como a construção complexa do verbo (“vai sulcando”, “a navegar”); o particípio passado “ancorado”; os advérbios “devagar” e “lentamente”; e a expressão adverbial “sem presa”. Tudo isso sugere o lento desenrolar da viagem do Santo.

O emprego do futuro do indicativo, na segunda parte, exprime a referência à vida eterna para onde o Santo lentamente se dirige.

O número de adjetivos é reduzido e os poucos existentes ligam-se a nomes metafóricos: “doce mar de mosto”, “cais humano”, “rasos os montes”.

Predomina a coordenação: desenrolar da viagem de S. Leonardo, lenta e sequente.

No atinente a orações, a oração conclusiva estabelece uma relação de consequência entre o “desengano antecipado” do Santo e a sua regalada demora ao longo do Douro; e a oração relativa “que gasta no caminho” reforça o apelo ao torrão de Ribadouro.

Ao nível semântico, sobressai a construção alegórica do poema do poema a orientar-se no sentido de enaltecer os encantos da terra e paisagem duriense, traduzindo o apego à terra.

As metáforas – “navio de penedos”, “um doce mar de mosto”, “capitão”, “vai sulcando as ondas da eternidade”, “charcos de luz”, “um sorvo […] de cheiro” – transmitem, hiperbolicamente, a imagem do Santo a navegar lentamente, cheio de saudade das terras durienses, rumo à eternidade, e da qual está, antecipadamente, desiludido, por saber que lá não encontrará as belezas terrenas; e realçam a beleza da terra em socalcos, ante a qual a própria felicidade era um desencanto.

Na 1.ª estrofe, as metáforas  apresentam-nos a imagem do Santo como o capitão dum “navio de penedos” (resta saber se o lugar do capitão é à proa), olhando saudosamente para trás, ao deixar a terra duriense em direção à vida eterna, e, simultaneamente, revelam a atração telúrica de Torga pela terra transmontana, o fulcro da sua inspiração poética; a imagem nos três últimos versos da segunda estrofe deixa antever a eternidade sem montes, o que roubará à vista a cor dos horizontes; e a expressividade dos advérbios “devagar” e “lentamente” e dos três últimos versos da terceira estrofe mostram a morosidade da viagem, mercê do apego de S. Leonardo à terra duriense.

Torga imagina o Santo a navegar não num barco celestial, como as barcas de Gil Vicente, mas “num navio de penedos” (alusão às serranias transmontanas) e, para melhor se identificar com a terra duriense, na última estrofe, o Santo já desliza num “barco rabelo” (embarcação típica do rio Douro, que servia para o transporte do vinho do Porto).

A hipálage “Lá não terá socalcos nem vinhedos na menina dos olhos deslumbrados” mostra que o deslumbramento com a paisagem é do Santo e não dos olhos; e a sinestesia “é um sorvo [paladar] a mais de cheiro” [olfato] insinua o prazer que o Santo sente naquelas terras.

É a dialética da vida espelhada numa paisagem apreciada por quem a conhece e a sabe degustar.

2023.02.01 – Louro de Carvalho

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