segunda-feira, 31 de julho de 2023

Ao invés da Europa, decresce a armazenagem de GNL em Portugal

 

As sanções económicas impostas à Rússia pela União Europeia (UE) e por outros países, como o Reino Unido, abrangem o petróleo, mas não o gás natural. E, apesar de a UE ter instado os Estados-membros à poupança de gás, os países europeus foram, por diversas vias, reforçando as suas reservas, enquanto Portugal, crente em que a energia verde estava à porta, foi consolidando a ideia da descarbonização e a hipótese de prescindir dos combustíveis fósseis.

A GALP – grupo de empresas portuguesas no setor de energia, que detém a Petrogal e a Gás Portugal, sendo um grupo integrado de produtos petrolíferos e de gás natural, com atividades que vão da exploração e produção de petróleo e gás natural à refinação e distribuição de produtos petrolíferos, à distribuição e venda de gás natural e à geração de energia elétrica – disse que não importaria mais produtos energéticos da Rússia. Porém, agora sente-se “muito desapontada” com a Venture Global, fornecedor de gás natural liquefeito (GNL) com sede nos Estados Unidos da América (EUA), com o qual assinou contrato de fornecimento a 20 anos.

O parceiro norte-americano não estará a cumprir com o acordado. “Estamos claramente muito desapontados”, indicou Rodrigo Vilanova, membro do conselho de administração executivo da GALP responsável pela Gestão de Energia.

A declaração foi proferida a analistas, na apresentação dos resultados semestrais, em que a administração foi questionada acerca deste fornecedor, visto que foi recentemente noticiado pela Reuters que a BP e a Shell estavam com problemas de incumprimento por parte daquela empresa norte-americana, pelo apresentaram, separadamente, uma queixa legal contra o fornecedor, por falha no cumprimento da entrega de cargas contratualizadas.

Como anunciou, a 31 de julho, a GALP aumentou o lucro em 21% nos primeiros seis meses, para 508 milhões de euros, o que atribui ao “forte desempenho operacional” ainda que em “contexto menos favorável em termos de petróleo, de gás, de eletricidade e de refinação”.

De acordo com informação publicamente disponível, Rodrigo Vilanova frisou a Venture Global produziu e vendeu mais de 170 carregamentos de GNL, entendendo a GALP que “todos estes carregamentos foram vendidos em mercados de curto prazo, a seja quem for que pague mais, em vez de respeitarem os contratos de longo prazo assinados com clientes fundadores como a GALP”. Por isso, a petrolífera portuguesa está em conversações com a Venture Global para que sejam respeitados os seus “direitos contratuais”. Com efeito, a GALP assinou, em 2018, um acordo com a Venture Global para a aquisição, durante 20 anos, de um milhão de toneladas por ano de GNL, a partir do terminal de exportação de Calcasieu Pass, localizado em Cameron Parish, no Estado norte-americano Louisiana.

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Em linha com a UE, Portugal fechou o período inicial do esforço de redução do consumo de gás natural cumprindo o objetivo para este inverno. Os Estados-membros acordaram, em 2022, reduzir em 15% o consumo de gás entre agosto desse ano e março de 2023, face à média dos cinco anos anteriores. O acordo contemplava uma regra de redução obrigatória de 15%, que pode ser ativada pela Comissão, em caso de emergência. Mas alguns países, como Portugal, procuraram garantir exceções atendendo às suas especificidades (como a menor capacidade de interligação com o resto da Europa). Nesses casos excecionais, em caso de alerta, a redução obrigatória de consumo será de apenas 7%.

Em Portugal, segundo a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), a redução foi de 14,8%. Com efeito, o consumo nacional de gás natural, de agosto de 2022 a março de 2023, fixou-se em 37.923 gigawatt hora (GWh), menos 14,8% do que os 44.491 GWh do valor de referência, isto é, o consumo médio em agosto/março dos cinco anos anteriores.

O relatório da DGEG mostra que a principal fatia da redução de consumo veio da procura industrial e residencial, que encolheu 22,7%. O consumo de gás para produção de eletricidade desceu 1,2%, face à média dos cinco anos anteriores.

Portugal importa gás natural, sobretudo através do terminal que a REN – Redes Energéticas Nacionais, que opera em Sines, segundo o qual, no primeiro trimestre, o gás consumido em Portugal foi importado, na sua maior parte, dos EUA e da Nigéria e, em menor escala, da Rússia, por navio, e de Espanha, por gasoduto. Ao invés do petróleo e do carvão, o gás natural não foi objeto de sanções ou embargos da UE, em relação à Rússia, tendo os 27 apenas acordado em procurar outras fontes de abastecimento, para reduzirem, progressivamente, as compras de gás àquele país. A pequena redução do consumo de gás para a produção de eletricidade explica-se pela seca de 2022, que obrigou a elevado recurso às centrais de ciclo combinado a gás natural, para compensar a reduzida disponibilidade hidroelétrica.

No final de 2022, houve uma maior produção hídrica, mas, em fevereiro e março de 2023, a geração hidroelétrica voltou a recuar, obrigando a maior recurso às centrais a gás, o que teve impacto nos números globais de consumo deste combustível. Considerando somente o bimestre de fevereiro e março, Portugal teve uma redução do consumo de gás de 9%, face à média dos cinco anos anteriores, resultado da combinação do aumento de 28,3% na procura de gás para a produção de eletricidade e da descida de 22,7% no consumo convencional (empresas e famílias). Porém, globalmente, os últimos oito meses tiveram o mais baixo consumo de gás natural em Portugal dos últimos seis anos.

A DGEG sustenta que nos outros setores, que não o da produção elétrica, “continuou a tendência de redução do consumo de gás”, mas “será importante continuar a monitorizar o desenvolvimento deste consumo para avaliar o caráter estrutural desta redução”. E observa que as temperaturas amenas reduziram a necessidade de consumo de gás nos setores classificados como ‘outros usos’.

No final de março, a UE acordou prolongar os esforços de redução de gás por um ano, até março de 2024, estipulando que o consumo de gás natural, nos próximos 12 meses, será 15% inferior à média dos cinco anos, até março de 2022. Ao aprovar essa extensão, revelou que a redução média do consumo de gás a nível europeu nos seis meses de agosto de 2022 a janeiro de 2023 foi de 19,3%. Portugal ficou aquém da média, apresentando um recuo de 16,4%.

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Para obviar ao défice de armazenamento de GNL, o navio Vladimir Vize, um metaneiro de quase 300 metros de comprimento, trará a Portugal, ao porto de Sines, mais uma carga oriunda do porto de Sabetta, na península de Yamal, no Norte da Rússia. É a terceira entrega de gás russo deste ano, e acontecerá no mês de agosto, mais propriamente no dia cinco.

Os dados de navegação do Vladimir Vize, disponíveis em plataformas como Vesselfinder, mostram que o navio saiu de Sabetta, a 27 de julho, e navega a norte da Noruega, sem identificação concreta do destino. Porém, o site da Administração do Porto de Sines revela que o navio chegará a Portugal na noite de 5 de agosto, atracando em Sines, um dia depois de um outro metaneiro, o LNG Cross River, chegar ali, proveniente de Bonny, na Nigéria, um dos principais mercados fornecedores de gás a Portugal.

O Vladimir Vize já descarregou GNL, em Portugal, por várias vezes, ao abrigo do contrato de longo prazo que a espanhola Naturgy (dantes, Gas Natural Fenosa) firmou com a russa Yamal LNG. E foi este navio que fez a primeira entrega de gás russo a Portugal, depois da invasão da Ucrânia pela Rússia. Fê-lo a 4 de março de 2022.

A Naturgy é uma das empresas que usam o terminal da REN, em Sines, para introduzir gás em Portugal, tal como o fazem a GALP, a EDP e a Endesa, embora com cargas de outras origens, principalmente Nigéria e EUA.

Conforme os dados publicados pela REN, Portugal tem tido um volume crescente de importações de GNL, via Sines, desde o início do ano, com o domínio da Nigéria e EUA como fornecedores, e a Rússia em terceiro lugar. No primeiro semestre deste ano, Portugal só importou gás, por via marítima, dessas três origens, mas houve alguma importação por via terrestre, pelos gasodutos que ligam Portugal a Espanha.

Embora os números da REN mostrem que Portugal, no segundo trimestre, importou mais gás, via Sines, do que no primeiro trimestre, no complexo de armazenamento subterrâneo da REN no Carriço, em Pombal, o nível de gás tem vindo a descer nos últimos meses, em contraciclo com a tendência europeia de reforçar as suas reservas gasistas, para o inverno.

A plataforma AGSI – Aggregated Gas Storage Inventory mostra que a Europa está, neste ano, com níveis de armazenamento de gás superiores aos do ano passado. Está, agora, está preenchida 85% da capacidade europeia, o que compara com 68% do final de julho de 2022.

De facto, a estratégia europeia de resposta à guerra na Ucrânia surtiu efeito: se, em março de 2022, a Europa tinha 25% das suas reservas de gás preenchidas, neste ano, o valor mínimo das reservas rondou os 55%, também em março. Esta estratégia, mais prudente, permitiu à Europa atingir esses 85% de armazenamento, patamar que, em 2022, só tinha sido atingido um mês e meio mais tarde, em meados de setembro. Todavia, Portugal tem tido, nos últimos dois meses, uma trajetória inversa, com o nível de armazenamento subterrâneo a recuar, enquanto a Europa reforça o seu aprovisionamento. Desde o final de junho de 2022 que a REN teve o complexo do Carriço totalmente cheio, situação que durou até 31 de maio de 2023. De lá para cá aquelas instalações têm libertado mais gás para o consumo do país do que o que vêm recebendo.

Não obstante, o país continua a cumprir os compromissos assumidos perante a UE, que previam o mínimo de 70%, em fevereiro e em maio, e de 80%, em julho, patamares que ainda não estão em causa, nem se prevê que o venham a estar.

A REN diz que as variações do volume armazenado “resultam exclusivamente das decisões de natureza logística e comercial que os agentes de mercado tomam no sentido de cumprir as suas obrigações contratuais de abastecimento do mercado”. Ou seja, esta infraestrutura é usada como ferramenta de flexibilidade para resposta à variabilidade do consumo total de gás. Assim, a 30 de junho, verificava-se um decréscimo na procura nacional de gás, em 2023, de cerca de 21% em relação a 2022. E a REN anota que a meta de enchimento do armazenamento subterrâneo para 1 de novembro, de 90%, é compatível com as obrigações de constituição de reservas de segurança e de outras reservas. Além disso, o elevado nível de aprovisionamento de GNL previsto para o agosto, na ordem dos 6,5 TWh (terawatt hora), antecipa a possibilidade de se iniciar alguma reposição das existências por transferências entre Sines e o Carriço.

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Por sua vez, o governo britânico anunciou, a 31 de julho, centenas de novas licenças de exploração de petróleo e de gás no Mar do Norte – um abrandamento da abordagem do primeiro-ministro Rishi Sunak ao aquecimento global. Porém, explica: “É mais vital do que nunca fortalecermos a nossa segurança energética e capitalizarmos essa independência para levar energia mais acessível e limpa para residências e empresas.”

Aduzindo que a Rússia instrumentalizou a energia, interrompeu o fornecimento e paralisou o crescimento em todo o Mundo, Rishi Sunak promete que, mesmo quando o país atingir a meta de carbono neutro até 2050, um quarto das suas necessidades de energia virá de petróleo e gás. 

E, reagindo à promessa do governo britânico, a organização ambiental Greenpeace denunciou a “cínica manobra política para semear a divisão”, da qual “o clima é um dano colateral”.

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Enfim, os objetivos ambientais já estavam difíceis de atingir. Com a guerra e as suas consequências, maior dificuldade se nos apresenta. E a vida não pode parar. Países destruídos têm de ser recuperados, bem como a biodiversidade desequilibrada.

2023.07.31 – Louro de Carvalho

Busca, descoberta, alegria, acolhimento e discrição – marcam o Reino

 

No Evangelho do 17.º domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 13,44-52), recorrendo à linguagem das parábolas, Jesus exorta os discípulos que façam do Reino de Deus a sua prioridade fundamental, devendo todos os outros valores e interesses passar para segundo plano, face a esse tesouro supremo que é o Reino. E isto leva-nos a repensar as nossas prioridades de vida e os valores sobre os quais a fundamentamos, na certeza de que o cristão deve construir a vida sobre os valores assumidos por Jesus.

Com esta perícopa evangélica, conclui-se a leitura do capítulo dedicado às “parábolas do Reino” (cf Mt 13), em que, recorrendo a imagens e comparações simples, sugestivas e questionantes, Jesus apresenta o mundo novo de vida e de liberdade que oferece aos homens, sob o signo de Reino de Deus ou Reino dos Céus.

Em concreto, o trecho em apreço apresenta-nos três parábolas exclusivas de Mateus, pois não constam dos outros três evangelhos canónicos, embora apareçam num texto não canónico – o Evangelho de Tomé – mas com variantes em relação à versão mateana. São elas a do tesouro que um homem encontrou, a do negociante que, procurando pérolas preciosas, encontrou uma de grande valor e a da rede que, lançada ao mar, apanha toda a espécie de peixes.

Para melhor entendimento da mensagem de Mateus, é de ter em conta o contexto da comunidade destinatária deste Evangelho: arrefecimento do entusiasmo inicial e iminência dos tempos difíceis de perseguição e de hostilidade. Por isso, Mateus sente que é preciso renovar o compromisso cristão e chamar a atenção dos crentes para o Reino, para as suas exigências, para os seus valores.

O trecho evangélico desta dominga pode ser dividido em três partes, convindo relevar, em cada uma, aspetos e questões que são marcas do Reino, que não é de pompa e de poderosos exércitos, com cavalos e carros de combate (tanques, aviões, fragatas, submarinos, mísseis, bombas e drones), mas do rei que entra, manso e pacífico, na sua cidade montado num jumentinho obediente, aclamado por crianças e pessoas simples.

Na primeira parte, as parábolas do tesouro e da parábola da pérola (vv. 44-46) desenvolvem o mesmo tema e apresentam ensinamentos semelhantes. O núcleo ideativo é, aqui, o da busca e da descoberta do essencial do Reino de Deus e do seu valor e importância. Ambas as parábolas sugerem que o Reino pregado por Jesus (mundo de paz, de amor, de fraternidade, de serviço, de reconciliação) é um tesouro precioso, que os seguidores de Jesus abraçam, acima de qualquer outro valor. Andando à procura, encontram o tesouro, acolhem-no, reservam-no zelosamente, desfazam-se de tudo o que se lhe oponha e adquirem-no. Daí, a alegria que se sente e se partilha! 

Os cristãos são, antes de mais, os que encontraram algo de único, de fundamental, de decisivo: o Reino. E, encontrando um tesouro como este, elegem-no como a riqueza mais preciosa, o fim último da própria existência, o valor fundamental pelo qual se renuncia a tudo o resto e pelo qual se está disposto a pagar qualquer preço. Mateus sugere, pois aos cristãos a quem destina o Evangelho (adormecidos na fé morna, inconsequente) que é preciso redescobrir esse valor mais alto, que dá sentido às suas vidas, e optar decisivamente por ele. O cristão, confrontado, “pari passu”, com muitos valores e opções, deve sentir que o Reino é o valor mais importante.

Na segunda parte, surge a imagem da rede que, lançada ao mar, apanha diversos tipos de peixes (vv. 47-50). Na versão mateana, a parábola apresenta um ensinamento semelhante ao da parábola do homem que semeou do trigo no seu campo e do inimigo que lá semeou joio, pela calada da noite. O Reino não é condomínio fechado, onde só há gente escolhida e santa, mas realidade onde as pessoas são acolhidas com alegria, correndo-se o risco de o mal e o bem crescerem a par. Deus não tem pressa de condenar e de destruir. Porque não quer a morte do pecador, dá-lhe o tempo necessário e suficiente para amadurecer as suas opções e para fazer as suas escolhas.

O Evangelho de Tomé dá à parábola uma coloração diferente: um pescador sábio que pesca vários peixes fica só com o maior e lança ao mar os demais. Aí a parábola contém mensagem alinhada com as duas parábolas da primeira parte, pelo que alguns estudiosos sustentam que a versão do Evangelho de Tomé é a versão primeva da parábola da rede e dos peixes. Porém, a nova referência mateana ao juízo final constitui uma forma de exortação aos irmãos da sua comunidade, no sentido de escolherem decididamente o Reino e porem em prática a Palavra de Jesus.

A parábola na versão mateana distingue peixes maus e bons que se apanham simultaneamente. E, enquanto se recolhem para os cestos os bons, jogam-se fora os que não prestam. Porém, tiveram de se recolher todos na rede, caso contrário muitos dos bons ficariam a pairar no mar. E essa operação de discernimento (avaliação, decisão de exclusão), que se seguiu à operação de inclusão, não se faz “de ânimo leve”, à pressa, mas “sentando-se”.

Paralelamente, transportando a parábola para as pessoas, é de advertir que não cabe aos homens fazer a destrinça de bons e maus, mas aos anjos; não agora, mas no fim do Mundo.  

Na terceira parte, Mateus apresenta um breve diálogo entre Jesus e os discípulos (vv. 51-52), no qual temos a conclusão de todo o capítulo. Assim, o discípulo é aquele sábio ou escriba instruído no Reino dos Céus, comparável ao pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas. Assim, o discípulo compreende, acolhe o ensinamento de Jesus, presta-lhe atenção e compromete-se com ele. Os cristãos são, pois, convidados a descobrir o Reino, a entender as suas exigências, a comprometerem-se com os seus valores. A referência ao escriba, que “tira do seu tesouro coisas novas e velhas”, refere-se aos Judeus, conhecedores do Antigo Testamento (AT), o “velho”, que são convidados a refletir essas velhas promessas à luz da Palavra de Jesus, o “novo”. É nessa dialética exigente e questionante que o discípulo encontra o caminho para o Reino; e, depois de o encontrar, deve comprometer-se com ele, de forma decisiva, exigente, empenhada.

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A 1.ª leitura (1 Rs 3,5.7-12) apresenta-nos o exemplo de Salomão, rei de Israel. Ele é o protótipo do homem sábio – testemunha da sabedoria de Deus, em que participa por concessão, e precursor do discípulo que saboreia o mistério do Reino de Deus –, pois consegue perceber e escolher o que é importante, não se deixando seduzir por valores efémeros. Na verdade, o Senhor apareceu em sonhos a Salomão e disse-lhe: “Pede o que quiseres”. E Salomão, orante, confessando que fora colocado no lugar do pai, no meio do povo escolhido, e não sabendo como proceder, pediu um coração inteligente, para saber distinguir o bem do mal.

A súplica agradou ao Senhor, que lhe disse: “Já que não pediste longa vida, nem riqueza, nem a morte dos teus inimigos, mas sabedoria para praticar a justiça, satisfarei o teu desejo. Dou-te um coração sábio e esclarecido, como não houve antes de ti, nem haverá depois de ti.”

O rei David morreu por volta de 972 a.C., após longo e fecundo reinado, ocupado a expandir as fronteiras do reino, a consolidar a união entre as tribos do Norte e do Sul e a conquistar a paz e a tranquilidade para o Povo de Deus. Sucedeu-lhe o filho, Salomão, com trabalho meritório na estruturação do reino. Organizou a divisão administrativa do território, dotou-o de grandes construções (a mais emblemática é o Templo de Jerusalém), fortificou as cidades importantes, potenciou o intercâmbio cultural e comercial com os países da zona, incentivou e apoiou a cultura e as artes. Preocupado com a constituição de uma classe política preparada para as tarefas da governação, recrutou sábios estrangeiros, sobretudo egípcios, para a corte e rodeou-se de homens que se distinguiam pelo saber, pela justiça e pela prudência, e que, além de aconselharem o rei, preparavam os futuros funcionários para desempenharem funções no aparelho governativo.

A corte tornou-se, pois, um viveiro de sabedoria. Os sábios coligiram provérbios, redigiram máximas de caráter sapiencial, deram instruções sobre as virtudes que deviam ser cultivadas para ter êxito e para ser feliz. Redigiram-se crónicas sobre os reinados anteriores e publicaram-se textos sobre as tradições dos antepassados. Terá sido então que a escola javista deu à luz algumas das tradições que terão lugar fundamental no Pentateuco. Não admira que Salomão tenha ficado na memória histórica de Israel como o protótipo do rei sábio, “cuja sabedoria excedia a todos os orientais e egípcios” (1Rs 4,30).

Salomão é, historicamente, o primeiro rei que herda o trono. Os seus predecessores não chegaram ao trono por herança, mas receberam-no das mãos de Deus, segundo a visão dos catequistas bíblicos. Os teólogos de Israel sacralizam o poder de Salomão e demonstram que, se governou o Povo de Deus, não foi só por direito hereditário (contestável), mas pela vontade de Deus.

O trecho em referência pressupõe este contexto. O “sonho de Gabaon” (cf 1Rs 3,5) é ficção literária dos teólogos deuteronomistas (grupo que reflete a vida e a história na linha das grandes ideias teológicas do Deuteronómio) com dupla finalidade: apresentar Salomão como o escolhido de Javé e justificar a sua proverbial “sabedoria”.

No AT, o sonho aparece, com frequência, como a forma privilegiada de Deus comunicar com os homens e de lhes indicar os seus caminhos. Aqui, há também um sonho: os catequistas deuteronomistas usam este recurso literário para apresentar Salomão como o escolhido de Deus, a quem Javé comunica o seu desígnio e a quem confia a condução do seu Povo. Este sonho está estruturado na forma de diálogo entre Deus e Salomão. Começa por uma interpelação de Deus, a que se segue a resposta de Salomão: consciente da grandeza da sua tarefa e das suas limitações, o rei pede a Deus um coração sábio para governar com justiça. A prece é atendida e Deus concede a Salomão uma sabedoria inigualável, a que alia os dons da riqueza, da glória e da longa vida (estes não constam da perícopa em referência).

Antes de mais, o texto deixa claro que, em Israel, o rei é o instrumento de Deus, o intermediário entre Deus e o seu Povo. É através da pessoa do rei que Deus governa, que intervém na vida do seu Povo e o conduz pela História. Mais esclarece que Salomão não concebeu o seu papel como um privilégio pessoal que podia usar em benefício próprio, mas como um ministério que lhe foi confiado por Deus, à maneira dos carismas neotestamentários, que Paulo entende como dons concedidos a uma pessoa para o bem da comunidade. Salomão estava cônscio de que a autoridade é um serviço a exercer com sabedoria e cujo objetivo final é a realização do bem comum.

Além disso, os autores deuteronomistas sublinham a qualidade da resposta de Salomão: não pede riqueza nem glória, mas as aptidões necessárias e a capacidade para cumprir bem a missão que Deus lhe confiou, surgindo como o arquétipo do homem que sabe escolher as coisas importantes e que não se deixa distrair por valores efémeros. E dizer que a súplica de Salomão “agradou ao Senhor” é exortar os israelitas a optarem por valores eternos, duradouros e essenciais.

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A 2.ª leitura (Rm 8,28-30) convida-nos a seguir o caminho de Jesus. Esse é o valor mais alto, que deve sobrepor-se a todos os outros. O projeto de Jesus não é acontecimento casual, mas algo que, desde sempre, está previsto no plano de Deus. É o Reino de Deus presente no meio de nós, apesar de não ser deste Mundo.

Aos que o acolhem, Deus chama-os a identificarem-se com o seu filho Jesus, liberta-os do egoísmo e do pecado e fá-los, com Jesus, chegar à vida nova e plena (justificação).

Neste sentido, o apóstolo fala “daqueles” que Deus “conheceu” de antemão, que “predestinou” para viverem à imagem de Jesus, que “chamou”, “justificou” e “glorificou”. Não obstante, estes versículos não devem ser entendidos no sentido de que a salvação que Deus oferece se destina só a um grupo de predestinados, que Deus escolheu de entre os homens de acordo com critérios que nos escapam. A teologia paulina é clara: o desígnio salvador de Deus está aberto a todos aqueles que O querem acolher. O que Paulo sublinha aqui é que se trata de dom gratuito de Deus, previsto desde toda a eternidade.

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Assim, urge que acolhamos o Reino que está disponível para nós, não fechado e exclusivista, mas campo aberto, universal, disponível para a descoberta, para a procura, para o acolhimento, para a alegria e para discrição sábia.

2023.07.30 – Louro de Carvalho

domingo, 30 de julho de 2023

Setor bancário teve, em 2022, a maior rentabilidade desde 2007

 

 

Enquanto as famílias e as empesas deitam as mãos à cabeça por causa da subida dos juros, a banca ufana-se dos lucros, não admitindo que sejam excessivos ou escandalosos. Para lá das taxas para tudo e para todos (Será?), a demora em subir o juro do depósito, em contraste com a pressa em subir o do crédito, deu aos bancos ganhos maiores em pelo menos 20 anos; e o diferencial entre o juro médio cobrado no crédito e o juro pago no depósito está no valor mais alto desde 2003.  

Há pelo menos 20 anos – desde que há dados comparáveis – que a banca não fazia tanto dinheiro com a diferença entre o que cobra pelo crédito e o que paga pelo depósito.

Não é surpreendente que o negócio bancário tenha vindo a beneficiar com essa diferença, mas o enquadramento na história recente foi feito agora pelo Banco de Portugal (BdP). “O aumento da margem financeira ocorreu num contexto em que as taxas de juro dos empréstimos tiveram uma resposta mais rápida à subida dos juros nos mercados interbancários do que as taxas de juro dos depósitos. No final de 2022, esse diferencial era de 3,3 pontos percentuais [pp], o valor mais elevado desde 2003, ano inicial das séries de taxas de juro hoje divulgadas”, indica o destaque sobre as séries longas do setor bancário, divulgado pelo BdP, a 26 de julho.

Esse diferencial encontrava-se, no fim de 2021, ligeiramente abaixo dos 2 pontos. E foi em torno dessa faixa que se situou desde 2015. Só em 2007, antes de se sentirem os efeitos da crise financeira global, é que a taxa estava acima de 3 pontos, mas abaixo dos 3,3 pp de diferença entre juro pago no crédito e juro pago no depósito.

Os créditos são atualizados automaticamente, por estarem indexados às taxas Euribor, que têm disparado em antecipação e em reação à subida da taxa de juro diretora do Banco Central Europeu (BCE). A cada três, seis ou 12 meses, os prazos mais contratualizados em Portugal, há atualização da prestação. Já os depósitos continuam com juros baixos; os juros nos novos depósitos estavam próximos de zero, em 2022, e ainda estão pouco acima de 1%. É um diferencial recorde, sobretudo do lado dos depósitos. A taxa média da carteira de empréstimos até subiu dos 2% para mais de 3,3%, mas continua abaixo dos mais de 5%, de 2008. Porém, não houve mexidas relevantes nos juros dos depósitos e, como permaneceram perto de zero, no fim de 2022, chegou-se ao diferencial de 3,3 pontos, revelado pelo BdP.

Estes dados são do fim de 2022, mas a banca têm, desde aí, reduzido incentivos para subir, de forma significativa, a remuneração dos depósitos (incentiva o investimento em fundos, que comportam riscos), quando as prestações dos créditos são revistas em alta, à medida que os indexantes contratados chegam à maturidade. E o Governo anunciou novas medidas para ajudar famílias com crédito à habitação para conter o impacto.

Outros dados do supervisor bancário mostram que só em junho foi estancada a fuga de depósitos que se vinha a sentir desde dezembro, tendo em conta a reduzida remuneração paga. Foi esta margem com juros que ajudou as contas dos bancos, em 2022: “O aumento dos resultados líquidos de 1151 milhões de euros está, sobretudo, relacionado com o incremento de 1381 milhões de euros da margem financeira e com a diminuição de cerca de 600 milhões de euros dos custos com a constituição de imparidades e de provisões”, diz o BdP.

Entre 2011 e 2017, a rendibilidade do setor tinha sido negativa, com exceção de 2015, ano em que foi virtualmente nula. Os resultados de 2022, que corresponderam a 0,7% do ativo, foram os mais elevados desde 2007, ano anterior ao início da crise financeira internacional. Não só 2022 foi um ano com lucros expressivos, como a primeira metade deste ano foi rica em resultados positivos, acima de anos anteriores, para o setor bancário. Têm sido tão significativos os lucros que a banca até antecipa a desaceleração desse crescimento no segundo semestre do ano.

Os banqueiros frisam a importância destes resultados – não excessivos ou “escandalosos” – e defendem que só com rentabilidade conseguem fazer investimentos e atrair capital de qualidade, para pagarem os dividendos aos seus acionistas. E, nos custos, os bancos continuam o ajustamento, encerram agências e dispensam trabalhadores. E, segundo o BdP, a tendência verifica-se na atividade doméstica e na internacional, embora com maior força na primeira.

“Em 2022, o número de agências bancárias reduziu-se de 4820 para 4626. O número de balcões relacionados com a atividade doméstica tem vindo a diminuir, de forma ininterrupta, desde 2010, totalizando menos 3090 balcões (48%). Já o decréscimo nas agências relacionadas com a atividade internacional foi de 450 balcões (26%), em relação ao valor máximo observado em 2012”, indica a autoridade bancária. E, a nível de trabalhadores, “havia mais 119 trabalhadores no setor bancário” no fim de 2022, totalizando 58.978. E houve um caso especial de subida, contrária à tendência de redução de trabalhadores, observada nos últimos anos, que é explicada pelo aumento de trabalhadores de um banco que, embora localizado em Portugal, tem a atividade orientada para a prestação de serviços à escala global. É o BNP Paribas, que tem vários serviços de apoio (backoffice) concentrados no país.

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Em suma, o resultado líquido dos cinco maiores bancos a operar no país ascendeu a quase dois mil milhões de euros, até junho. Os juros altos renderam 4,2 mil milhões na margem financeira, que catapultou mais de 70% em termos homólogos. O banco do Estado, a caixa Geral de Depósitos (CGD) voltou a encabeçar os ganhos, depois de registar mais de metade dos lucros obtidos em 2022, mas foi o BCP o que mais cresceu, multiplicando o resultado por sete.

Prosseguindo a trajetória ascendente iniciada em 2022, os ditos cinco maiores bancos obtiveram um resultado líquido consolidado de 1,9 mil milhões de euros nos primeiros seis meses de 2023, tendo lucrado cerca de 11 milhões por dia até junho, o que, comparando com o igual período de 2022, reflete melhoria de quase 60%.

Mais uma vez, a CGD, o banco do Estado, voltou a ser a protagonista na tabela dos ganhos, ao somar 607,8 milhões de euros, um valor que não só reflete uma subida de 25% face aos 485,6 milhões registados no semestre homólogo, como também representa mais de metade dos lucros obtidos em todo o exercício anterior (843 milhões) – com a margem financeira a triplicar. Contudo, o maior crescimento deu-se no BCP, cujo resultado líquido foi multiplicado por sete, passando de 62,2 milhões de euros, em junho de 2022, para 423 milhões, nesse mesmo mês, em 2023. A evolução foi de 580% – ou 361 milhões de euros, em termos absolutos –, apesar dos encargos de 399 milhões gerados pelo polaco Bank Millennium, detido em 50% pelo grupo.

O Novo Banco (NB), que viu dar por concluído, em fevereiro, o processo de reestruturação, conquistou o terceiro, alcançando lucros consolidados de 373,2 milhões de euros, resultantes da subida de praticamente 40% em relação ao final do sexto mês de 2022.

No Santander, o crescimento do resultado líquido fixou-se nos 38%, o que permitiu encaixar mais 96,4 milhões de euros em relação ao período homólogo – no total, o banco lucrou 333,7 milhões. Já o BPI foi o que, ao nível absoluto, menos cresceu, somando, mesmo assim, 53 milhões de euros, que perfizeram 256,2 milhões de euros, mais 26% face a junho de 2022.

Estes bancos viram o produto bancário crescer nos primeiros seis meses do ano. E aponta-se o dedo a Christine Lagarde ou ao conselho de governadores do BCE, firme na estratégia de arrefecer a economia e conter a inflação, pelas subidas consecutivas na taxa de juro.

Esta escalada, que vem agravando as prestações pagas aos bancos, sobretudo no crédito à habitação, conjugada com o facto de os depósitos a prazo, em Portugal, remunerarem abaixo do expectável – em maio, a taxa de juro média dos novos depósitos até um ano fixou-se nos 1,18% –, fez com que a margem financeira conjunta das cinco instituições catapultasse.

Assim, a diferença entre juros cobrados em empréstimos e juros pagos em depósitos rendeu à banca mais de 4,2 mil milhões de euros até junho, disparando quase 74% face ao semestre homólogo, quando foram embolsados 2,4 mil milhões de euros provindos desta rubrica.

O BCP foi, à semelhança do sucedido no primeiro trimestre, o que mais beneficiou da subida das taxas de juro, ao encaixar 1,37 mil milhões de euros de margem financeira, desde o início do ano, numa subida compreendida em 39,5%. Seguiu-se a CGD, com 1,31 mil milhões e o maior crescimento dos cinco: 127,7%. O Santander, apesar de não atingir o terceiro lugar dos maiores ganhos, tomou essa posição na tabela da margem financeira, somando 586,5 milhões de euros – acréscimo de 58,4% em relação ao igual período de 2022. Seguiu-se o NB, com um crescimento de 95,5%, para 524 milhões de euros, e o BPI, com o aumento de 81%, para 438,6 milhões.

Amortizações antecipadas e menor procura de financiamento, por parte das famílias e das empresas, foram as principais explicações para que a carteira de crédito consolidada dos cinco bancos sofresse um decréscimo de 0,7% no primeiro semestre de 2023.

O abrandamento, especialmente no mercado de crédito hipotecário, já vinha a ser notado desde o início do ano, e levou a que, no final de junho, o stock de empréstimos concedidos pelo BPI, pela CGD, pelo BCP, pelo NB e pelo Santander totalizasse 208,06 mil milhões de euros, montante que compara com os 209,5 mil milhões homólogos. Excetuando o NB e o BPI, que apresentaram evoluções positivas de 1% e 3,8%, respetivamente, todas as outras instituições sofreram perdas. O Santander assumiu a maior, de menos 3,8% para 41,9 mil milhões de euros, seguindo-se o BCP (-1,3%) e a CGD (-0,8%). E o decréscimo da atividade creditícia impactou também as receitas obtidas por meio de comissões cobradas aos clientes. Até junho, reduziram 1,7% para 1,19 mil milhões de euros, enquanto no primeiro semestre de 2022 o valor obtido por esta via foi de 1,22 mil milhões. O BCP foi o banco que mais ganhou ao nível do comissionamento (387 milhões), sucedendo-se a Caixa Geral de Depósitos (289,1 milhões) e o Santander (231,2).

Desde que o ano arrancou, os cinco bancos viram sair quase sete mil milhões de euros dos seus cofres, provenientes da atividade doméstica e internacional. Os depósitos agregados do BPI, da CGD, do BCP, do NB e do Santander, somavam, até junho, cerca de 247,9 mil milhões de euros, o que, comparativamente com o igual período do ano passado, traduz uma queda superior a 2,7%. A aposta nos Certificados de Aforro – que até junho, pela subscrição da série E, remuneravam a um máximo de 3,5% (a série F, que lhe sucedeu, remunera a 2,5%) – e os reembolsos antecipados da dívida da casa terão sido as principais explicações. O Santander foi o mais penalizado, com as perdas a chegarem quase aos 9%, e o BCP foi o único a acumular mais poupanças (+2,9%).

Aqueles não foram os únicos recursos a conhecer um corte. Os cinco bancos fecharam os primeiros seis meses de 2023 com menos 439 trabalhadores e 75 balcões, em Portugal, comparativamente com igual período de 2022. A CGD liderou a saída de trabalhadores (-293) e o fecho de dependências (-24), seguindo-se o BPI (-83/18), o NB (-35/-12) e o Santander (-30/-8 agências). O BCP, embora tenha encerrado 12 sucursais no país, foi o único banco que não registou perdas, somando até mais duas pessoas.

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Apesar dos lucros registados, como se deixou entreler, há perdas, sobretudo da diminuição dos depósitos a prazo e da supressão de muitos. É o que dá a teimosia em não os remunerar decentemente e o incitamento a investir em fundos e em obrigações. O volte-face nos certificados de aforro não é significativo. É certo que, no final de junho de 2023, o stock de depósitos de particulares nos bancos residentes totalizava 174,9 mil milhões de euros, mais 1,2 mil milhões de euros do que em maio. Foi o primeiro aumento mensal em 2023, mas representa um decréscimo de 3%, face a junho de 2022. Desde dezembro, em que havia mais de 182 mil milhões de euros aplicados em depósitos, vinha a registar-se uma quebra do montante depositado: as baixas taxas de juro pagas pela banca, que demoraram a subir e a reagir à subida do juro diretor do BCE, levaram à retirada dos depósitos, a invés do que sucede na Zona Euro.

Assim (nada agradável), os principais bancos perdem 7,4 mil milhões de euros em poupanças. Veremos se invertem a tendência ou se oneram ainda mais os serviços que prestam.

2023.07.30 – Louro de Carvalho

sábado, 29 de julho de 2023

BCE anunciou, a 27 de julho, nova subida de juros

 

Era de esperar, de acordo com as expectativas enunciadas e explicadas por Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), que o regulador bancário da Zona Euro agravasse, a 27 de julho, as três taxas diretoras de juros, pela nona vez consecutiva, em mais 25 pontos base, com aplicação a 2 de agosto. Efetivamente, considera que a “inflação continua a descer, mas que ainda se espera que permaneça demasiado elevada durante demasiado tempo”. 

Esta nona subida consecutiva fixa a nova taxa nos 4,25%, 4,50% e nos 3,75%, respetivamente para as operações de refinanciamento, para a facilidade permanente de cedência de liquidez e para a facilidade permanente de depósito. A taxa de facilidade permanente de depósito (3,75%) assume o valor mais elevado dos últimos 22 anos e a diretora principal, a de refinanciamento, chega ao maior valor (4,25%) desde 2008 (15 anos).

Esta decisão do regulador bancário da Zona Euro vem em linha com a tomada nos mesmos valores percentuais, horas antes, pela Reserva Federal dos Estados Unidos da América (FED), também com efeitos a partir de 2 de agosto, embora, nos Estados Unidos da América (EUA), segundo alguns economistas, os juros já ultrapassem a taxa da inflação.

O BCE reconhece, em comunicado, que a inflação tem vindo a cair desde outubro de 2022, quando atingiu um pico de mais de 10%, mas continua acima da meta de 2%, definida pelo regulador, sendo provável que se mantenha “demasiado elevada durante demasiado tempo”.

Os aumentos anteriores dos juros estão lentamente a ter um impacto na economia, esfriando os aumentos dos preços das casas e dos empréstimos a empresas. Porém, o núcleo da inflação, que exclui os preços voláteis dos combustíveis e dos alimentos, continua alto. Por isso, o BCE deixou a porta aberta a novo aumento dos juros, em setembro, embora aumente o risco de recessão na Zona Euro.

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Esta medida tem, necessariamente, impacto na carteira dos cidadãos portugueses, famílias e empresas, com destaque especial para os custos do crédito à habitação. 

Como a Euribor a 12 meses está, atualmente, a 4% e os aumentos do BCE podem ser de 0,25% por duas vezes (uma foi desta vez), deve esperar-se, com algum grau de certeza, que a Euribor suba até perto dos 4,5% até ao fim do ano.

Assim, com um spread de 1%, poderá o cliente, durante vários meses, vir a pagar 5,5% de juro ao banco, a que acresce o prémio do seguro de vida. É uma brutalidade que representa o aumento de algumas centenas de euros mensais, em relação ao que pagava há um ano.

Se o cliente com a Euribor a 12 meses, tiver a renovação no pico da Euribor em dezembro ou em janeiro, pode ter um gasto suplementar com o crédito à habitação de vários milhares de euros no ano que vem, ou seja, em 2024. Com efeito, vários analistas apontam o pico da Euribor para janeiro de 2024, não se sabendo se ultrapassará os 4,5%. Depois, a partir de janeiro, as várias taxas Euribor deverão começar a descer. Baixarão dos 4%, mas, em 2024 e em 2025, deverão continuar a rondar os 3,5% e manterão a tendência de descida até chegar talvez aos 2,75%, em 2026, devendo continuar nesse patamar (com altos e baixos) até 2030.

É claro que se trata de previsões, podendo tudo mudar. Mas é importante ter estes valores como orientação. Por exemplo, uma taxa fixa de 4% até ao fim do contrato de empréstimo parece um valor exagerado, face às previsões. Resta saber se essa estabilidade compensa o preço alto a pagar. Já uma taxa mista a 2 anos, entre os 3 e os 4%, pode ser decisão sensata, se for suportável para o cliente, por exemplo, se beneficiou de tempo em que a Euribor foi negativa. Ao invés, casos houve em que se chegou a pagar, em tempos não longínquos, um juro de 5,5%.

O importante é aguentar o ano de 2023 no “olho do furacão”, pois é cedo para garantir que, depois, os juros baixarão, até porque não se sabe quanto tempo durará a guerra na Ucrânia ou como evoluirá as crises energética e alimentar, nomeadamente quanto ao acesso ao mercado dos cereais.

Em caso de risco de incumprimento, sempre é melhor vender a casa do que entregá-la ao banco.

Deixar correr e não pagar as prestações é que não é solução. Porém, há outras hipóteses, como: renegociar o spread, se for superior a 1,2%; transferir o crédito à habitação para outro banco; mudar para taxa fixa ou mista; amortizar o máximo que se puder o crédito à habitação; usar o plano de poupança reforma (PPR) para pagar a prestação ou para amortizar o crédito; pedir ao banco a bonificação dos juros pelo Estado e outros benefícios que o ministro das Finanças diz estarem em equação; negociar o alargamento do prazo do empréstimo; consolidar os créditos; renegociar o seguro de vida; acionar, junto do banco, o plano de ação para o risco de incumprimento (PARI); e pedir ajuda à Associação de Defesa do Consumidor (DECO) ou a uma instituição da Rede de Apoio ao Cliente Bancário (RACE). 

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Enquanto o spread é uma componente da taxa de juro, definida pelo banco, contrato a contrato, ao conceder o empréstimo (o lucro do banco no empréstimo), a Euribor (acrónimo de EurInterbank Offered Rate ou taxa interbancária oferecida em euros) é uma das principais taxas de referência do mercado monetário da Zona Euro, indicando a taxa média de juro dos empréstimos interbancários sem garantia da Zona Euro. Considera as taxas dos 32 principais bancos europeus, excluindo os valores extremos: os 15% mais altos e os 15% mais baixos.

Criada com o euro, a 1 de janeiro de 1999, a sua primeira taxa foi definida a 30 de dezembro de 1998, com validade a partir de 4 de janeiro de 1999. Porém, antes, publicava-se taxa semelhante, a Aibor (Amsterdam Interbank Offered Rate), também publicada diariamente, para lá de taxas de juros locais, como a Lisbor (Lisbon Interbank Offered Rate), taxa interbancária em escudo.

A Euribor é calculada diariamente pela European Banking Federation (EBF) e publicada pela Reuters. A divulgação acontece às 11h00 (hora Central Europeia e é rapidamente difundida pela imprensa. É usada como taxa de referência para os empréstimos bancários e como taxa base para diversos produtos de taxas de juros (derivados). Encontram-se como exemplos, futuros de taxas de juros, swap de taxas de juros e contratos de garantias de taxas. É bastante usada como taxa de referência em empréstimos hipotecários e em contas poupança. Em Portugal, as taxas Euribor são os indexantes mais recorrentes em empréstimos à habitação, tendo grande impacto quando estas taxas caem, visto que permitem que o custo do crédito diminua, assim como fazem subir os encargos, quando aumentam. No caso dos depósitos, a remuneração destes também tende a refletir as oscilações destas taxas, mas, por vezes, não proporcionalmente. A prática corrente, em Portugal, entre as instituições de crédito à habitação, é estabelecer dois tipos de taxas: fixa e variável. É na taxa variável que entra a Euribor, já que esta taxa lhe está indexada.

No crédito à habitação, a taxa Euribor funciona em conjunto com o spread, formando estes dois fatores a taxa de juro do crédito. De valores mínimos e até negativos, tendo reduzido o custo do crédito habitação, a Euribor passou, graças ao aumento sucessivo das taxas de juro diretoras, pelos bancos centrais (nomeadamente FED e BCE), a valores que se tornam quase insuportáveis, sem que as pessoas e as empresas se tenham precavido para tal situação.

Com efeito, a oscilação das taxas de juros Euribor é alinhada pelo volume de oferta e de procura. É apenas uma taxa de juro do mercado que é formada por um grande número de bancos diferentes (painel de bancos). Contudo, outros fatores externos podem influenciar, em boa escala, o nível da taxa de juro Euribor, como por exemplo o crescimento económico e o nível da inflação. Regra geral, as taxas Euribor evoluem de acordo com a taxa de referência praticada pelo BCE.

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Por fim e porque a inflação é invocada como justificação para decretar a subida de juros e, segundo Christine Lagarde, é motivada, em grande parte, pela subida de salários, quando todos nos queixamos da perda de salário nominal e, sobretudo, de salário real, conveniente revisitar o conceito e a realidade da inflação.

A inflação é a taxa de aumento dos preços dos bens de consumo, dos serviços e do custo de vida, determinável por vários meios, sendo o mais comum o índice de preços ao consumidor (IPC), que mede a variação média dos preços pagos, ao longo do tempo, pelos consumidores urbanos por um cabaz de mercado de bens e de serviços ao consumidor, o que leva a identificar tendências de preços dentro da economia.

Existem vários fatores. Um deles é a disposição e a capacidade das pessoas de pagarem preço mais alto por bens e por serviços, o que leva a aumento em custos de produção de matérias-primas e, por isso, ao aumento de preços. Isso não ocorre imediatamente, mas, durante um período de tempo em que as mudanças de preço parecem pequenas, no início. Os produtos e serviços de maior necessidade ou procura são propensos à inflação. Os de necessidade incluem itens essenciais, como comida, imóveis, serviços públicos e saúde, enquanto os outros incluem itens de luxo desejados, como joias e carros. Outros fatores configuram várias modalidades de inflação.

A inflação de procura resulta do rápido crescimento na procura agregada de bens e de serviços de consumo, levando a aumento dos preços. Numa economia forte, os custos aumentam, porque as empresas impulsionam a oferta para atenderem a nova procura. Assim, forte crescimento económico causa problemas, se ocasiona inflação alta. Pessoas com salários altos ajustam-se; as outras, não. A inflação de custos resulta do aumento dos custos de mão-de-obra e de fabrico (salários e matérias-primas), causando preços elevados de bens e serviços de consumo. Há queda na oferta de bens e de serviços, mas a procura permanece estável. Os consumidores suportam o aumento do custo de produção, quando pagam preços mais elevados pelo produto ou serviço final. E a inflação do mercado mobiliário resulta do aumento da procura de casas numa economia em expansão. Como o mercado de ações, o mercado imobiliário tem visto volatilidade recentemente. À medida que mais consumidores buscam “equity” na forma de propriedade, os compradores esperam um aumento subsequente nos preços dos imóveis, o que também se aplica a produtos auxiliares relacionados com a construção, como madeira, aço, cimento, etc.

Os economistas (sobretudo os da FED e os do BCE) olham atentamente para a variação percentual dos preços e ajustam as taxas para criar mais estabilidade de preços. No entanto, não podem definir os preços: só podem esperar que as mudanças de taxa os ponham em ação.

A inflação preocupa os consumidores, porque o dinheiro ganho e economizado perde valor ao longo do tempo e as pessoas perdem poder de compra.

Uma das grandes causas da inflação são os grandes acontecimentos mundiais. Por exemplo, a pandemia de covid-19 desencadeou um aumento errático. A procura estava branda, na fase inicial, mas cresceu, especialmente com mais pessoas comprando online. A esse aumento associou-se a crise na cadeia de suprimentos: armazéns sobrecarregados, portos de embarque bloqueados a impedir a entrega de mercadorias e rarefação nos stocks. Além disso, os preços da habitação aumentaram em imóveis para venda e para arrendamento. Muitas empresas exploraram o momento, para desfrutarem dos benefícios do aumento do consumismo e dos gastos dos consumidores. E isto acontece na presente crise, apesar dos apoios dos governos, como em muitas outras crises, exceto no tempo da troika portuguesa e em casos similares.

A inflação afeta os preços ao consumidor e o custo de vida. À medida que a inflação aumenta, aumentam os preços dos produtos e serviços de consumo, como mantimentos, serviços públicos, saúde e imóveis. Esse aumento podia reduzir a despesa do consumidor, já que muitas famílias orçamentam parte considerável do rendimento familiar para esses itens necessários.  

Um dos efeitos da inflação é o impacto global nos salários. Embora muitas indústrias, como a hotelaria, mostrem uma recuperação lenta, mas constante, após as perdas sofridas pela pandemia, os salários não acompanham o ritmo da inflação, o que se agravou com a guerra.

Não culpam a especulação: acentuam a necessidade de salários baixos. Triste condição!

2023.07.29 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 28 de julho de 2023

D. Américo Aguiar é contestado, mas está na rota evangélica

 

A 6 de julho, o bispo auxiliar de Lisboa D. Américo Aguiar, que preside à Fundação JMJ, entidade promotora da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), a decorrer em Lisboa, de 1 a 6 de agosto, em entrevista à RTP 1, declarou não pretender converter ninguém a Cristo e à Igreja com este evento. Tal declaração, retirada do contexto, basicamente uma das suas provocações retóricas, mas assente em boa antropologia teológica, suscitou um coro de contestação da parte de setores católicos conservadores, aliás na sequência de algum incómodo sentido por setores políticos de alguma direita e de alguma esquerda.  

O aspeto político das críticas tem a ver com algo que ele próprio revelou de que antes de ser padre, fora autarca (deputado municipal) proposto por lista de um partido de que não gostam os setores mais conservadores, como se isso tivesse de marcar, indelevelmente, a personalidade do, mais tarde, sacerdote e, agora, bispo. Por outro lado, não reparando que fora eleito para o episcopado (bispo titular de Dagno e auxiliar do Patriarcado), apontaram como exibicionismo e acorrentamento ao poder político vigente o facto de algumas figuras gradas do governo (incluindo o primeiro-ministro) e da autarquia lisboeta terem estado presentes na sua ordenação episcopal, na Igreja da Trindade, no Porto, e também o abraço trocado entre o bispo e o presidente do Futebol Clube do Porto (FCP). Todavia, esquecem-se de anotar o facto dramático que aconteceu no referido dia: da parte da amanhã, o ainda bispo eleito teve de participar no funeral da mãe, que falecera inesperadamente; e, à tarde, ocorreu a celebração da sua ordenação episcopal, das mãos do cardeal D. Manuel Clemente, patriarca de Lisboa, de cuja iniciativa partiu a decisão papal da nomeação do novo bispo auxiliar de Lisboa e que tinha sido bispo do Porto.

Por outro lado, o presidente da JMJ foi envolvido nas acusações dirigidas ao governo e aos autarcas de Lisboa e de Loures, pelo custo excessivo de alguns equipamentos que sustentam a logística da JMJ, não acreditando que o responsável eclesiástico não soubesse do monte das despesas orçamentadas. Não se reparou que o bispo tentou pôr algum cobro ao excesso (até se disse, erradamente, que os equipamentos ficaram mais baratos, quando a verdade é que os equipamentos diminuíram de volume e de área) e dispensou a autarquia lisboeta do encargo com o palco do Parque Eduardo VII, cujos encargos ficaram por conta da Fundação JMJ. Com efeito, este parque não é um novo equipamento municipal, não havendo dali nada que resulte em mais-valia significativa para o futuro, ao invés do Parque Trancão-Tejo.

A crítica teológica a uma asserção descontextualizada reduz-se a três itens: pretensa incoerência em relação ao magistério do Papa Francisco – se não é para converter os jovens, é de perguntar que vem fazer à JMJ o Papa Francisco, que até premiou este bispo com um barrete cardinalício; desviante entendimento da fraternidade humana desenvolvida na encíclica Fratelli tutti; e formulação antievangélica da tarefa evangelizadora. Nestes termos, há uma crítica é explícita ao bispo, que pretende, sob a capa do fazer pontes, ficar de bem com todos, não percebendo que “fora da Igreja não haverá salvação” (“Extra Ecclesiam non erit salus”), e uma crítica velada ao próprio Sumo Pontífice, que faz más escolhas.             

Entretanto, para que não restem dúvidas, o futuro cardeal D. Américo Aguiar, que será criado como tal no Consistório (reunião do Sacro Colégio) do próximo dia 30 de setembro, prestou esclarecimentos à ACI Digital, de que o site da Aletheia fez eco.  “A JMJ é um convite a todos os jovens do Mundo para uma experiência de Deus”, disse o bispo auxiliar de Lisboa e presidente da Fundação JMJ Lisboa 2023. “Estas são as minhas convicções que sustentam a frase por vós citada e, naturalmente, isolada do contexto de uma longa entrevista”, disse, explicando à ACI Digital a declaração feita por ele, na referida entrevista à RTP 1, de que a jornada não quer “converter o jovem a Cristo nem à Igreja Católica”: “Nós não queremos converter o jovem a Cristo nem à Igreja Católica, nem nada disso, absolutamente.”

“Nós queremos é que seja normal que o jovem cristão católico diga e testemunhe que o é; que o jovem muçulmano, judeu ou de outra religião também não tenha problemas em dizer que o é e o testemunhe; aquele jovem que não confessa religião nenhuma se sinta à vontade e não se sinta estranho porque é assim ou é de outra maneira, e que todos entendamos que a diferença é uma riqueza. E o mundo será objetivamente melhor, se nós formos capazes de colocar no coração de todos os jovens esta certeza da Frateli tutti, de todos irmãos, que o Papa tem feito um enorme esforço para colocar no coração de todos”, disse o bispo, na entrevista à jornalista Alberta Marques Fernandes, da RTP 1, de 6 de julho. 

Aliás, a 2 de julho, em entrevista ao programa “70x7” da RTP 1, o presidente da JMJ tinha feito um conjunto de asserções bem menos polémicas, que não foram, por isso mesmo, comentadas, nem transcritas. Parece que alguns só andam à cata de escândalos.

Ora, porque o bispo foi escolhido, precisamente a pretexto da JMJ, é normal que tenha uma série de entrevistas com os serviços do Vaticano e com o próprio Papa, tal como tenha ido a Kiev e a Jerusalém, a convite de que de direito, para estar com os jovens que não podem vir a Lisboa. Tudo isso dá fotografias e vídeos, que não selfies.  

Explicando-se, D. Américo Aguiar disse que o que se quer, na JMJ: “[…] que todos estes jovens, de todos os países do mundo, regressando às suas geografias e vidas desejem mudar as suas vidas, mudar o Mundo. Queremos que se interroguem sobre as suas vocações… sobre a razão da nossa alegria.” “A JMJ nunca foi, não é, nem deverá ser um evento para proselitismos, antes pelo contrário, é e deve ser sempre, uma oportunidade para nos conhecermos e respeitarmos como irmãos”. Segundo o bispo, “a Igreja não impõe, propõe”: “Que bom estarmos todos disponíveis para dar testemunho de Cristo Vivo e confiar na transformação que só Cristo Vivo consegue operar nas nossas vidas.”

Bento XVI, numa audiência com bispos do Cazaquistão e da Ásia Central, em 2008, disse que “a Igreja não impõe, porém propõe, livremente, a fé católica, sabendo que a conversão é o fruto misterioso da ação do Espírito Santo”. E, numa homilia na solenidade da Epifania do Senhor, em 2019, Francisco disse que “Deus propõe-Se, não Se impõe”. “O que nunca muda é o que Jesus nos pede: acolher o outro como irmão”, disse D. Américo. “A descoberta da presença de Jesus Vivo acontece diariamente no encontro entre todos os que se interrogam sobre Deus.”

Explica o futuro cardeal: “A conversão acontece pelo testemunho, não pela imposição. A conversão acontece no coração, não na razão. Porque assente no mistério maior da Encarnação e na Ressurreição. Falamos de Deus, anunciamos o Filho, experienciamos o Espírito. E todos podemos ser, somos e procuramos ser os discípulos de Jesus que nos continua a dizer para anunciarmos a Sua Palavra, para darmos testemunho do Seu Amor por todos.” “Falar de Cristo é anunciar o Evangelho e anunciar o Evangelho é falar de Cristo. Cada JMJ é um imenso campo, em que é lançada a semente. A semente da Palavra, do testemunho, da alegria, da paz, do encontro, da reconciliação. Acreditamos que a terra é boa e a semente dará fruto”, completou.

***

Na verdade, ninguém converte ninguém. É Deus quem opera em cada pessoa a conversão, respeitando a liberdade de cada um e dando-nos a ideia de que é a própria pessoa que se converte, a qual mais não faz do que disponibilizar-se a aceitar a iniciativa de Deus e a cooperar com Ele de coração e com boas obras. Jesus falava, chamava e testemunhava a Palavra que recebeu do Pai, acolhendo, compadecendo-Se, rezando e, obviamente, repreendendo. Porém, contra os prosélitos, não forçava ninguém, embora visse as multidões como rebando sem pastor (cf Mt 9,36) e clamasse que a messe a grande, mas os operários são poucos. E a receita era: Pedi ao Senhor da messe que manda operários para a sua messe. (cf Lc 10,2).

O pregão da pregação do Reino era: “O Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e acreditai na Boa Nova.” (Mc 1,15). Ou: “Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 4,17). E o recado que os discípulos deviam dar no quadro da sua experiência missionária à ordem de Jesus era: “Dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa. […] Curai os doentes que nela houver e dizei-lhes: ‘O Reino de Deus está próximo de vós’.” (Lc 10,5-9).

Depois, o Ressuscitado declarou os discípulos (agora seus irmãos) enviados para perdoar os pecados, pelo arrependimento de cada pessoa; fê-los testemunhas, desde a Judeia até aos confins do Mundo, do essencial da missão messiânica (pregar o arrependimento e o perdão dos pecados); e enviou-os a fazer discípulos em todos os povos (ensinando a cumprir tudo quanto mandou), a pregar o Evangelho a toda a parte e esperar que as pessoas aceitem o batismo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (cf Jo 20,21.23; Lc 24,47; Mt 28,19-20; Mc 16,15-16).

Nada há no Evangelho que leve os discípulos a pretender operar por si a conversão nos outros. Evangelizar não é fazer proselitismo, hostilizar, excluir. É falar respeitando, testemunhar acolhendo, escutar com paciência e responder com simplicidade.

Dito de outro modo, o apóstolo, integrado na comunidade apostólica ou em nome dela, tem de ser como o semeador evangélico: “sair” a “semear” de mão cheia sem se preocupar com a natureza do terreno (não lhe compete selecioná-lo) e deixar que a semente caia onde lhe aprouver. Deve esperar que ela produza no bom terreno. Obviamente, terá de cuidar de que ela germine e cresça e que os maus terrenos se assemelhem mais ao bom terreno, mas sem forçar a natureza de cada um, e zelar pela manutenção do bom terreno. Deve ter a paciência do homem do Evangelho que semeia o trigo no seu campo e tolera que o inimigo tenha semeado o joio. E a sua paciência, em vez de deixar arrancar o joio, com o risco de perder joio e trigo, dita o crescimento conjunto de trigo e de joio até ao momento da colheita.

Concluindo, a asserção do futuro cardeal revela boa antropologia teológica e sã antropagogia. Quem sabe se não está a ser alvo da inveja e da despiciência que, por vezes, eivam algumas figuras da Igreja e da Sociedade! Estou à vontade, pois não o conheço pessoalmente. A única referência que dele tenho é um conjunto de declarações e de iniciativas que situaram no merecido lugar o antigo bispo do Porto D. António Francisco dos Santos, cujo lema episcopal – “In manus tuas” – assumiu, como homenagem ao antístite de saudosa memória. Porém, dizer que a sua asserção é antievangélica contraria a verdade e a alegria do Evangelho.  

Ademais, a máxima “Extra ecclesiam non erit salus”, enunciada pelos Padres da Igreja, não pode entender-se ao pé da letra, nem mesmo em ambiente de Cristandade. A doutrina da descida do Redentor à morada dos mortos mais não significa do que a extensão da redenção (salvação) a todas as pessoas que dela carecem: as que nasceram e morreram antes de Cristo e as que vivem e morrem em lugares aonde não chega a pregação explícita do Evangelho. Sendo assim, porque, tal como apregoava Justino, o mártir, Cristo, o Verbo seminal (Verbum seminale, em Latim, ou Lógos spermatikós, em Grego) não conhece barreira, nem fronteira, quem agir segundo a sua consciência, a regra máxima das atitudes, e não enjeitar sinceramente a verdadeira Igreja (não a que, por vezes, se lhe apresenta) será salvo. Enfim, como Cristo e a Igreja não se separam, pois formam um só corpo místico (onde age Cristo age a Igreja), pode dizer-se: ““Extra ecclesiam non erit salus”.

E é por isso que todos – e não apenas, como querem dizer alguns, os que receberam o batismo sacramental – somos irmãos. E isto não é retórica, nem invenção do Papa Francisco, embora lhe caiba o mérito de equacionar o problema e o deixar claro e universal.

Já o Papa São Pio X, dito ultraconservador, quando passava por um cemitério judaico, em Roma, rezava e abençoava. E, perante quem lhe manifestava estranheza por esse gesto, respondia: “Eu faço a minha parte; e Deus fará o resto!”    

2023.07.28 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Professores: diploma vetado, diploma reeditado com emendas

 

De acordo com o respetivo comunicado, o Conselho de Ministros (CM), a 27 de julho, “na sequência da devolução, sem promulgação”, pelo Presidente da República (PR), no dia anterior, “reapreciou o decreto-lei que estabelece os termos de implementação dos mecanismos de aceleração de progressão na carreira dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário”, tentando incorporar as sugestões presidenciais.

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Efetivamente, uma nota publicada na página da Presidência da República, a 26 de julho, dava conta da decisão do PR de devolver, sem promulgação, “o decreto que estabelece os termos de implementação dos mecanismos de aceleração de progressão na carreira dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário, reconhecendo aspetos positivos – alguns dos quais resultantes de aceitação de sugestões da Presidência da República –, mas apontando a frustração da esperança dos professores, ao encerrar definitivamente o processo, ademais criando uma disparidade de tratamento entre o Continente e as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira”.

A referida nota publicou também a carta que o chefe de Estado endereçou ao chefe do Governo, em que reconhece que, para lá de “outras justas reclamações”, algumas das quais “parcialmente satisfeitas”, sobressai a que é “central” no reconhecimento do “papel cimeiro” dos professores na sociedade portuguesa, a “recuperação do tempo de serviço suspenso, sacrificado pelas crises económicas vividas ao logo de muitos anos e muitos governos”.

Em torno da questão, surgiram duas soluções diferentes: nas Regiões Autónomas e no Continente.   

As Regiões Autónomas estão a recuperar a contagem integral, de modo faseado e gradual, do tempo de serviço de todos os professores: na Madeira, por iniciativa do XII Governo Regional apoiado pelo Partido Social Democrata (PSD), com o Decreto Legislativo Regional n.º 23/2018/M, de 28 de dezembro, aprovado com os votos favoráveis dos diversos partidos com assento no respetivo parlamento; e, nos Açores, por iniciativa, do XII Governo Regional apoiado pelo Partido Socialista (PS), com o Decreto Legislativo Regional n.º 15/2019/A, de 16 de julho, aprovado com os votos favoráveis dos diversos partidos com assento no respetivo parlamento.  

No Continente, optou-se por solução diferente, com tratamento diferenciado de professores, sendo aplicável, a alguns, “uma certa antiguidade de serviço para progressão na carreira, em circunstâncias específicas, e não a outros, que a teriam ou viriam a ter no futuro, se a contagem do tempo de serviço não tivesse sido suspensa”.

Como aponta carta do PR, esta situação “criou uma clara desigualdade de tratamento entre professores da escola pública no Continente e nas Regiões Autónomas”. E, no Continente, se for por diante, criará “novas desigualdades”.

Porém, o chefe de Estado, não se contentando com isto, deixa ao Governo uma suposta lição de democracia.

“Os professores, tal como os profissionais de saúde, têm e merecem ter uma importância essencial na nossa sociedade e em todas as sociedades que apostam na Educação, no Conhecimento, no Futuro”. E “países exemplos de liderança na Educação o foram, porque escolheram os melhores e lhes pagaram aquilo que não pagavam a tantos outros e respeitáveis trabalhadores do setor público, mesmo de carreiras especiais”.

Portanto, a aposta na Educação vai além do “curto prazo”, da sorte de “pessoas”, de “situações”, de “instituições”, do “passado próximo ou do presente” e de cálculo de “dividendos políticos”. Exige pensar nos sucessivos anos letivos e, sobretudo, naqueles/as que queremos melhores em termos absolutos e relativos, os estudantes, assim como exige “pensar na mobilização de todos, mas, dentro de todos, daquelas e daqueles que serão os seus educadores, formadores e felizmente, em muitos casos, os seus inspiradores, os professores”.

Mais refere o PR que “todas as escolas e todos os professores são e devem ser relevantes: os da escola pública, os da escola privada e os da escola social e cooperativa”.

Depois de apontar números – mais de 130 mil professores do setor público e cerca de 25 mil dos restantes setores – o chefe de Estado faz a apologia da Escola Pública como “insubstituível” e como “coluna vertebral do sistema escolar”. E sustenta que, por isso, acompanhou “o longuíssimo período de encontros entre governo e sindicatos de professores” e que registou “o facto de o Governo ter optado por flexibilizar posições governativas – de governos anteriores ou suas –, quanto à recuperação do tempo dos professores”, bem como o facto de ter sido “um anterior governo, mas com o mesmo primeiro-ministro, que levantou a suspensão da contagem do tempo de serviço dos professores”.

Admite que “houve um esforço dos últimos governos, no quadro financeiro e económico geral destes tempos de incerteza” e “uma abertura de sindicatos e, mais amplamente, da maioria esmagadora dos professores, para não almejarem, de imediato, tudo o que ambicionavam, entendendo as restrições financeiras existentes”.

O diploma em causa surge na sequência do longo “período de encontros, de expetativas, de frustrações, de luta laboral e de gestão governamental”. Porém, após esta narrativa de factos, vem mais uma pitada de gestão da democracia: “não há nem pode haver comparação entre o estatuto dos professores, tal como o dos profissionais de saúde, e o de outras carreiras, mesmo especiais”. E mais ainda: “Governar é escolher prioridades. E Saúde e Educação são e deveriam ser prioridades se quisermos ir muito mais longe como sociedade desenvolvida e justa.”

A primeira versão do diploma consagrava “uma parte limitada das legítimas expetativas” dos professores: limitada, no universo dos professores beneficiários, quando o desejável é que a aceleração da progressão “inclua todos os docentes afetados pela suspensão da contagem do tempo de serviço, estabelecendo-se a justa proporcionalidade em relação ao tempo de serviço efetivamente prestado”; limitada, por manter a desigualdade entre professores da escola pública, nas Regiões Autónomas e no Continente; e limitada, porque o diploma “encerrava o processo quanto a este tema central, ao não contemplar qualquer calendarização ou, mesmo, abertura para medidas ulteriores ou complementares”.

Uma coisa, para o PR, é “não ser viável, num determinado contexto, ir mais além, outra é dar um sinal errado num domínio tão sensível, como o é o da motivação para se ser professor no futuro”.

Por tudo isto e tendo em conta “a importância decisiva do tema para uma classe profissional insubstituível para a educação, a qualificação, o conhecimento, e, portanto, o futuro de Portugal”, o chefe de Estado devolveu o diploma ao Governo, para que o reapreciasse, com ou sem intervenção da Assembleia da República (AR), onde o Governo dispõe de uma clara maioria de apoio, de modo a “figurar, no texto, a ideia de que se não encerra definitivamente o processo”, pensando no futuro e “no papel que nele desempenham os professores em Portugal”.

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Tenho de assentar em que, tal como o fiz noutras ocasiões, os professores têm total razão na reivindicação da contagem integral do tempo de serviço, nos períodos em que tal contagem esteve congelada. Embora, os governos de António Costa hajam procedido ao descongelamento das progressões nas carreiras e à contagem parcial do tempo perdido para efeitos de progressão (é só disso que se trata: não se trata de ir buscar mais dinheiro ou mais tempo de serviço para aposentação/reforma), é impensável que haja uma solução diferente nas Regiões Autónomas e no Continente e que, no Continente, se venham a criar novas situações de desigualdade.

Do ponto de vista orçamental, os encargos anuais com a recontagem integral não passam de um mito conveniente. É óbvio que a recuperação de tempo para a progressão aplica-se a professores que não estejam no último escalão, sendo que, para os outros, implica algum encargo monetário, mas a prazo e não em simultâneo para todos. Grave, em termos orçamentais, seria se fosse exigido ao Estado que repusesse nos respetivos escalões todos os docentes, mesmo os já aposentados e os que rescindiram por mútuo acordo, revalorizando os salários de uns e as pensões de outros. Ora, os professores sabem que não são os ricos que pagam as crises, mas não aceitam que haja dinheiro a rodos para salvar bancos e empresas públicas (remunerações e indemnizações obscenas a administradores da Caixa Geral de Depósitos, da TAP, da CP, etc.) e não o haja para os trabalhadores da Administração Pública.   

A suposta lição de democracia presidencial ao Governo ficaria bem na boca de qualquer membro do Governo ou de qualquer político da praça. Pena é que só agora os opositores ao Governo se tenham dado conta da solução diferente encontrada no Continente e nas Regiões Autónomas. É certo que o PR faz bem em acompanhar o movimento reivindicativo, mas é de questionar o motivo por que o chefe de Estado e tantos outros cidadãos e grupos que sempre estiveram contra a luta sindical estão agora do lado dos reivindicantes. Não faço segundas intenções, mas interrogo-me.   

Embora, desta vez, o PR tenha sido menos explícito na tentativa de influenciar o Governo do que em diploma anterior relativo a concursos e a vinculação de professores, que acabou por promulgar, mesmo assim, lá deixa expressa a notinha de que o diploma tem aspetos positivos, alguns dos quais seguem sugestões do PR. Enfim, não há maneira de o chefe de Estado, ao menos publicamente, preservar a separação dos poderes e ajudar a construir de forma discreta, a interdependência dos mesmos.

Depois, dá uma indicação que podia ser perigosa, se o Governo e o PS fossem teimosos. O Governo podia transformar o texto do diploma em Proposta de Lei e a AR, onde o PS tem maioria absoluta, podia aprovar o diploma, transformando em decreto da AR e, em caso de veto, confirmá-lo por maioria.

Entretanto, o Conselho de Ministros reapreciou o diploma, tentando integrar a recomendação do PR, que se reduz (Tanta retórica na carta para muito pouco!) a colocar a hipótese de, num futuro, se proceder à recontagem de todo o tempo de serviço de todos professores.

A ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, escusou-se a especificar as alterações introduzidas, por se tratar de matéria entre o CM e o PR.

Por fim, suspeito que, se o movimento sindical (e é esse o interlocutor válido em reivindicação) se mantiver parado, o diferendo entre Belém e São Bento acabe por remeter a contagem para as Calendas gregas ou para ocasião em que atinja um número residual de docentes.

E não vejo que os professores queiram constituir-se em exceção, relativamente aos outros trabalhadores da Administração Pública. Apenas querem salário condigno e carreira que os dignifique. De resto, não pode o Estado dar-se ao luxo de induzir o esvaziamento dos seus quadros, deixando que uns emigrem e outros passem para o setor privado, devendo, antes, promover carreiras atrativas, salários justos e condições de trabalho tão propícias quanto possível.      

2023.07.27 – Louro de Carvalho