segunda-feira, 17 de julho de 2023

O semeador de mão cheia, que não escolhe terreno

 

A parábola mateana do Reino que versa o caso do semeador que sai a semear a sua semente constitui a alegoria do perfil missionário de Jesus Cristo. O Reino dos Céus é semelhante ao semeador, não àquele que se mete em casa; que sai percorrendo o terreno da semeadura, não aquele que se coloca num determinado sítio e age a partir daí; a semear, não a deixar cair ou a colocar no terreno que se vai trabalhando, mas distribuindo por todo o terreno; a sua semente, não a alheia; a semente, não a raiz, o caule, o ramo, a folha, a flor ou o fruto.

Este perfil de Cristo deve ser replicado por todos os discípulos, desde logo pelos que se tornaram discípulos pelo Batismo, na certeza de que a emente é a palavra de Deus, não a nossa, mas a de Deus, que nós assumimos como nossa. Não se escolhe terreno, mas dirige-se a todos, porque de todos de espera acolhimento e germinação até dar fruto e nova semente. Temos de ser semeadores de mão cheia. E, como não se força ninguém, é natural que o terreno se apresente em tipos diversos. E, embora compreendendo os diverso tipos de terreno em que a semente não germina, congratulamo-nos com a existência do bom terreno, sem julgarmos os outros e respeitando a sua situação e as suas opções, já que se trata de pessoas com inteligência e com coração. 

A este respeito, vem o passo evangélico (Mt 13,1-23) proclamado na Liturgia da Palavra do 15.º domingo do Tempo Comum no Ano A.

A linguagem parabólica, que não foi inventada por Jesus, é habitual na literatura do Médio Oriente, cujo génio, mais do que falar através do discurso lógico, frio racional, típico da civilização ocidental, instrui através de imagens, de comparações e de alegorias,

A parábola é imagem ou comparação, pela qual se ilustra determinada mensagem ou ensinamento. A sua linguagem tem vantagens, porque a imagem ou comparação é muito mais rica em força comunicativa e em poder evocativo do que a simples exposição teórica: é mais profunda, mais carregada de sentido, mais evocadora, pelo que mexe mais com os ouvintes. Por outro lado, é excelente arma de controvérsia, já que pode levar o interlocutor a admitir certos pontos que, de outra forma, nunca teriam a sua concordância. Além disso, é um método pedagógico, que ensina as pessoas a refletir e a encontrar soluções para os dilemas da vida: estimula a curiosidade, incita à busca, convida à descoberta da verdade.

Assim, no capítulo 13 do seu Evangelho, Mateus apresenta sete parábolas, pelas quais Jesus revela aos discípulos a realidade do Reino: são as “parábolas do Reino”. Destas sete, três procedem da tradição sinótica (o semeador, o grão de mostarda, o fermento) e quatro (o trigo e o joio, o tesouro escondido, a pérola preciosa, a rede) não constam nem em Marcos, nem em Lucas. Certamente, são originárias da antiga fonte dos “ditos” de Jesus, que Mateus usou abundantemente na composição do seu Evangelho.

A preocupação do evangelista é a vida da comunidade. Nestas parábolas e na sua interpretação, percebe-se a preocupação do pastor que exorta, anima, ensina e fortalece a fé dos destinatários.

A parábola do semeador de mão cheia é uma das mais emblemáticas das parábolas de Jesus. No entanto, o texto do Evangelho desta dominga vai além da parábola. Apresenta a parábola, um conjunto de “ditos” sobre a função das parábolas e a explicação da parábola.

O quadro da parábola propriamente dita (vv. 1-9) pressupõe as técnicas agrícolas então usadas na Palestina: o agricultor lança a semente à terra; e passa a arar o terreno. Assim, compreende-se porque é que uma parte da semente pode cair “à beira do caminho”, outra em “sítios pedregosos onde não havia muita terra” e outra “entre os espinhos”.

As diferenças do terreno significam, na comparação, as diferentes formas como é acolhida a semente. Porém, o mais significativo é a espantosa quantidade de frutos que a semente lançada na “boa terra” produz. Considerando que, à época, a colheita de sete por um era farta, os cem, sessenta e trinta por um pareceriam aos ouvintes de Jesus algo de surpreendente, de milagroso.

O evangelista situa a parábola num contexto em que a proposta de Jesus parece condenada ao malogro. As cidades do lago (Corozaim, Betsaida, Cafarnaum) tinham rejeitado a sua pregação; os fariseus atacavam-No por não respeitar o sábado e queriam matá-Lo; acusavam-No, de agir, não pelo poder de Deus, mas pelo poder do príncipe dos demónios; não acreditavam nas suas palavras e exigiam Lhe sinais. Enfim, o Reino anunciado sofria enorme contestação e parecia encaminhar-se para um rotundo fracasso.

Terá a parábola sido apresentada por Jesus neste contexto de crise. Aos que manifestavam desânimo e desconfiança em relação ao êxito do projeto do Reino, Jesus fala do grandioso resultado final e incita os discípulos desiludidos à coragem, pois, apesar do aparente fracasso, o ‘Reino’ é uma realidade imparável e o resultado final será algo de surpreendente, de inimaginável.
Nos ditos sobre as parábolas (vv. 10-17), o ponto de partida é a questão que os discípulos colocam: Porque fala Jesus em parábolas?

Mateus vê nelas a ocasião para que apareçam, com nitidez, o acolhimento e a recusa da mensagem, pois apresentam o dinamismo do Reino em linguagem sugestiva, concreta e questionante. Tornam tudo claro. Por isso, após escutar a mensagem, só não a aceita quem tiver o coração endurecido e não estiver interessado nela. Quem acolher a mensagem receberá mais e “terá em abundância”, ou seja, irá entrando, cada vez mais, na dinâmica do Reino; ao invés, quem não a acolher está a rejeitar o Reino e a possibilidade de integrar a comunidade da salvação. Nos que rejeitam Jesus, cumpre-se a profecia: o profeta fala de um povo de coração endurecido, que quanto mais ouve a pregação profética, mais se irrita, agravando a sua culpa (cf Is 6,9-10).

Ora, os discípulos são os que escutam o jeito do Reino e se dispõem a acolhê-lo. Compreendem as parábolas e aceitam a realidade que elas exprimem. São felizes, porque abriram o coração a Jesus, escutaram a sua Palavra, viram e entenderam os seus gestos e sinais; são felizes, pois, ao contrário dos que endureceram o coração e fecharam os ouvidos a Jesus, integram o Reino.

Na explicação da parábola (vv. 18-23), alguns indícios levam a pensar que a explicação, de início, não fazia parte da parábola, mas que se trata de adaptação posterior a aplicar à vida cristã.

A explicação desloca o centro de interesse. A parábola deixa de ser apresentação da grandiosa forma como o Reino se manifesta e passa a reflexão sobre as diversas atitudes com que a comunidade acolhe a Palavra. É a grande preocupação das comunidades cristãs.

Na ótica do catequista, o acolhimento do Evangelho não depende da semente, nem do semeador, mas da qualidade do tereno. E a qualidade do terreno espelha a qualidade dos corações humanos face à proclamação da Palavra.

Há o coração duro como o chão de terra batida do caminho: a Palavra não penetra aí, pelo que não dará fruto. Há o coração inconstante, capaz de se entusiasmar, mas também de desanimar ante as dificuldades: a Palavra não cria aí raiz. Há o coração materialista, que prioriza sempre a riqueza e os bens deste Mundo: a Palavra é aí facilmente sufocada por esses interesses dominantes. E há o coração disponível e bom, aberto ao desafio de Deus: a Palavra é aí acolhida e dará muito fruto.

Os verdadeiros discípulos (a “boa terra”) identificam-se com os que escutam as parábolas, as entendem e acolhem o Reino. Temos aqui, portanto, uma exortação aos cristãos no sentido de acolherem a Palavra, sem deixarem que as dificuldades, os acidentes da vida, os outros valores a asfixiem e a tornem semente estéril. Com efeito, pela sua importância decisiva, a Palavra tem de ganhar a centralidade da vida dos crentes.

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A 1.ª leitura (Is 55,10-11) garante-nos que a Palavra de Deus é fecunda e criadora de vida. Ela dá-nos esperança, indica-nos os caminhos a percorrer e dá-nos o ânimo para intervirmos no mundo. É sempre eficaz e produz sempre efeito, embora não atue segundo os nossos interesses e critérios.

Estamos na fase final do Exílio (à volta de 550/540 a.C.). A comunidade exilada está saturada de belas palavras e de promessas de libertação que tardam a concretizar-se. A impaciência e a dúvida vão minando a resistência e a fé dos exilados. Parece que as promessas de Deus não se concretizarão. Ele parece demasiado lento, em relação a algo que exige intervenção imediata. É caso para perguntar se Deus se terá esquecido do seu Povo.

Perante este desanimado ceticismo, o profeta garante Deus não se esqueceu do seu Povo. A sua Palavra não deixará de se concretizar, pois Deus é eternamente fiel às suas promessas. A Palavra de Deus é eficaz, transformadora, geradora de vida. Nunca falha.

Para expressar a ideia da eficácia da Palavra de Deus, o profeta serve-se do exemplo da chuva e da neve: tal como a chuva e a neve que descem do céu fecundam a terra e multiplicam a vida nos campos, assim a Palavra do Senhor não deixará de se concretizar e de gerar vida para o Povo de Deus. A imagem, extremamente sugestiva, lembra aos judeus exilados na Babilónia as chuvas que caem no Norte de Israel e as neves do monte Hermon. A água caída do céu alimenta o Jordão, que, por seu turno, corre por toda a terra de Israel, deixando um rasto de vida e de fecundidade. Assim, a Palavra de Deus é como a água caída do céu que, inevitavelmente, gera o alimento da vida do Povo de Deus.

Isaías não coloca a questão da diversidade de terrenos, pois, ao tempo, todos estavam unidos no sofrimento, no desânimo e na necessidade de consolação. Agora, com o reino messiânico entre nós, Jesus giza as condições propícias para a frutificação da Palavra, conforme a disponibilidade ou a indisponibilidade face ao Reino – problema e prerrogativa da liberdade humana.

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Por fim, a 2.ª leitura (Rm 8,18-23), que parece não estar relacionada com a temática da Palavra, mostra, subliminarmente, que é ela que determina os critérios de ação em conformidade com a adesão ao dinamismo do Reino, que tivemos o discernimento e a ousadia de assumir.    

Na perspetiva de Paulo, o homem não é o único interessado na opção pela vida “segundo o Espírito”, que nos abre para a Palavra, no-la interpreta, nos facilita o discernimento e nos dá a ousadia. Toda a criação está dependente das escolhas que o homem faz.

Como resultado do pecado do homem, a criação inteira ficou submetida ao império do egoísmo e da desordem e está atreita à finitude e à caducidade. Se o homem aderir a Cristo e viver segundo o Espírito, superará o destino de maldição e de morte em que o pecado o tinha lançado; e toda a criação será libertada, nascendo o novo céu e a nova terra. É o tema da solidariedade entre o homem, os outros animais e a natureza, recorrente na Bíblia.

Por isso, toda a criação aguarda, com ânsia jubilosa, que o homem escolha a vida segundo o Espírito. Entretanto, vai nascendo, na dificuldade e na dor, o Homem Novo e o Novo Céu e a Nova Terra com que sonhamos. Isso acontece na dificuldade e na dor, porque a vida segundo o Espírito supõe a renúncia aos interesses mesquinhos e a opção pelo caminho de entrega e de dom da vida a Deus e aos outros. O apóstolo utiliza o exemplo das dores do parto, para iluminar a mensagem que pretende transmitir. O nascimento da criança dá-se na dor; no entanto, a dor é o caminho para o nascimento de uma nova vida.

Vale mesmo a pena viver segundo o Espírito. Padecimentos, renúncias, dificuldades, nada são, em comparação com a felicidade sem fim que espera os crentes no termo do caminho.

2023.07.16 – Louro de Carvalho

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