sexta-feira, 7 de julho de 2023

Constituição desatualizada face ao terrorismo e ao crime organizado

 

Carlos Blanco de Morais, professor catedrático de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) defende a necessidade de introduzir alterações à Constituição, mas critica a revisão constitucional “alargada” que, atualmente, está em curso.

Em declarações ao Diário de Notícias (DN), o constitucionalista disse que as constituições não são “figurinos de moda que possam ser alterados, são normas estáveis”. “São consensos de Estado e de regime que, de alguma forma, devem primar pela estabilidade. Portanto, não podem estar sujeitas a modificações permanentes”, explanou.

Estas asserções foram produzidas no contexto do XI Fórum Jurídico de Lisboa, que decorreu na FDUL, de 26 a 28 de junho, em torno do tema principal “Governança digital” – iniciativa conjunta do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP/FDUL) – ou Lisbon Public Law (o único centro de investigação na área do Direito classificado como excelente pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia) – e do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV).

FGV é a sigla da Fundação Getúlio Vargas, instituição de referência em ensino e em pesquisa no Brasil e no Mundo, para estimular o desenvolvimento socioeconómico.

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Académicos, juristas, autoridades e representantes da sociedade civil organizada, do Brasil e da Europa, reuniram-se para dialogar sobre desafios, visões e diferentes aplicações de tecnologias como fator estratégico de governança para gerar conhecimento e inovação, com vista a melhorias na qualidade de vida da sociedade. Com efeito, o Fórum vem ocorrendo, anualmente, como uma grande oportunidade de discussão, com o intuito de debater grandes questões do Direito no Estado contemporâneo. E, nesta edição, foi abordado um panorama de temas sobre a relação entre os principais aspetos associados à gestão pública e à democracia, bem como aos princípios, às plataformas, às metodologias, aos processos e às tecnologias digitais. Com temáticas transversais, busca-se maior compreensão do debate sobre a avaliação dos impactos socioeconómicos gerados pelo avanço tecnológico, conjuntamente com as mudanças sociais.

A importante colaboração entre os três organizadores visa o desenvolvimento de atividades nas respetivas áreas de domínio, votadas ao aperfeiçoamento de instituições públicas e privadas no Brasil, em Portugal e noutros países.

Nesse sentido, a cooperação e o diálogo buscam: a promoção conjunta de atividades voltadas para o aprimoramento de modelos organizacionais e de gestão, principalmente no tocante à governança de instituições públicas e privadas, visando a simplificação administrativa e logística; o incentivo ao intercâmbio de conhecimento, à busca por inovação e à produção de novas metodologias para projetos e políticas públicas; a organização e a implementação de programas de difusão, bem como a discussão sobre temas de interesse em comum, metodologias e conceitos desenvolvidos nas três instituições; e a atuação conjunta em atividades académico-científicas e de pesquisa, além de diagnosticar ou amenizar os impactos da globalização e das mudanças sociopolíticas nos campos da gestão de crises, da governabilidade, da tributação, da saúde, entre outros.

Além disso, a 11.ª edição do Fórum Jurídico de Lisboa, em parceria com a Future Carbon Group, realizará ação inédita, ao neutralizar as suas emissões de carbono e ao tornar-se um evento carbono neutro. Do seu lado, a Future Carbon calculará a pegada de carbono do evento, produzindo um inventário de emissões e doando a quantidade equivalente em créditos de carbono provenientes de projetos de conservação florestal da Amazónia. São projetos desenvolvidos, do início ao fim, pela Future Carbon, em áreas privadas de conservação florestal na Amazónia, aprovados pelas certificadoras internacionais Verified Carbon Standard (VERRA), anteriormente Voluntary Carbon Standard (VCS), e Padrões de Clima, Comunidade e Biodiversidade (CCB).

Após a Sessão de Abertura, Dieter Grimm, um dos maiores catedráticos de Direito Público e Constitucional alemão e juiz do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, Gilmar Ferreira Mendes, Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, e Miguel Nogueira de Brito, advogado e professor auxiliar da UL, abordaram o tema nevrálgico “Como salvar a Democracia Constitucional”.

Em cada um dos três dias, foi tratado um eixo temático, com temas desenvolvidos em painéis e em mesas-redondas.

Assim o eixo temático 1: “Estado democrático de direito e defesa das instituições” desdobrou-se nos painéis temáticos: “Riscos para o Estado de Direito e defesa da democracia”; O papel das forças armadas no Estado Democrático de Direito”; e “Novas formas de populismo e relações de tensão com o Estado democrático”. E as mesas-redondas abordaram os temas: “Mecanismos de aprimoramento das investigações criminais: reflexões sobre o poder de investigar”; Segurança pública, força policial e liberdade de reunião: desafios democráticos”; “Desafios do ensino superior após a pandemia: inovação e qualidade”; “Mudanças climáticas e desastres naturais”; “Saúde, governança, sustentabilidade e inclusão social; “Responsabilidade social: uma emergência”; e Interpretação dos contratos na era digital”.

O eixo temático 2: “Estado Democrático de Direito e defesa das instituições” desdobrou-se nos painéis temáticos: “Inteligência artificial e governança algorítmica: desafios regulatórios”; “Efeito Bruxelas: as novas regulações europeias para economia digital (DMA: Direct Memory Access;  e DSA: Desenvolvimento de Sistemas de Automação) e suas influências no Brasil e em Portugal”; “Políticas públicas de inclusão digital e digitalização das relações entre a administração e os cidadãos”; “Responsabilidade das plataformas por conteúdos ilícitos e riscos sistémicos”; e Plataformização do trabalho e gig-workers”. E as mesas-redondas abordaram os temas:Inteligência artificial e (in)justiça: como lidar com o potencial discriminatório de decisões automatizadas”; “Impacto do mundo digital no direito penal”; “Reforma tributária no mundo digital: o governo, o judiciário e o contribuinte”; Governança digital e as inovações legislativas tokenização: o impacto digital na atividade cartorária”; e “Meios alternativos de resolução de conflitos”.

E o eixo temático 3:Políticas públicas, desenvolvimento, responsabilidade fiscal e socioambiental” desdobrou-se nos painéis temáticos: “Desenvolvimento e responsabilidade socioambiental na economia globalizada”; “Contas públicas e equilíbrio fiscal”; “Integridade, diversidade e governança esg [sustentabilidade e ambiente]: setor privado como instrumento de políticas públicas”; e “Defesa da democracia e liberdades fundamentais”. E as mesas-redondas abordaram os temas:Turismo, infraestrutura, governança e perspetivas”; Políticas de infraestrutura e crescimento económico: entre desestatização e re-estatização; “Sustentabilidade e o marco legal do saneamento básico no Brasil”; Recuperação de empresas – a eficácia do modelo brasileiro”; Compromisso público e privado na descarbonização; “As recentes alterações no sistema de precatórios”; e “A nova regulamentação de fundos de investimento no Brasil – perspetivas.

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No final do XI Fórum Jurídico de Lisboa, Carlos Blanco de Morais, em conversa com o DN, mostrou-se crítico do processo de revisão constitucional em curso e fez um balanço do encontro que decorreu na FDUL, onde é professor de Direito Constitucional.

Considerando as constituições como “consensos de Estado e de regime, que, de alguma forma, devem primar pela estabilidade”, sustenta que “não podem estar sujeitas a modificações permanentes. Não obstante, aponta duas áreas cuja revisão lhe parece importante: os metadados e a criação de um “instituto [legal]” que permita, em caso de necessidade, introduzir restrições por motivos sanitários, como pandemias.

Quanto aos metadados, julga fundamental que exista a possibilidade com a intervenção das autoridades judiciárias de, para efeitos de combate à criminalidade e para defesa do Estado democrático e [para] segurança pública, se escrutinar, não os conteúdos, mas o tráfego da comunicação de pessoas que estejam a ser investigadas”. Isto, como defende, é “fundamental” como “elemento preventivo” e como elemento “probatório”, devendo ser “salvaguardados os efeitos passados” e evitando mexer em processos judiciais já terminados. É, por isso, crítico da decisão do Tribunal Constitucional (TC) em declarar inconstitucional a norma que previa a conservação destes dados para efeitos de eventual investigação criminal.

Sobre a hipótese da criação de eventual figura de lei específica para motivos sanitários, vê espaço para mexidas no artigo 27.º da Constituição (“Direito à liberdade e à segurança), onde pode ser aberta “a possibilidade de se restringir a liberdade de circulação e de se poder fixar cidadãos em certas zonas do território, devido a cercas sanitárias”, o que não está previsto.

E, além destas duas áreas – da agenda da Comissão Eventual de Revisão Constitucional e que parecem reunir consenso entre o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD) –, aponta outra onde podia haver alterações: a lei das entidades reguladoras. Para o professor – que foi consultor de Assuntos Constitucionais da Casa Civil da Presidência de Cavaco Silva –, as entidades reguladoras deviam ter os membros dos órgãos executivos propostos pelo governo e designados pelo Presidente da República.

Além disso, com a guerra na Europa, Blanco de Morais vê espaço para mexer noutro aspeto: as Forças Armadas. “Devido à lei Freitas do Amaral, de 1982, [Lei n.º 29/82, de 11 de dezembro, artigos 17.º e 18.º] as missões foram quase exclusivamente focadas na defesa militar do Estado contra agressões externas”, diz, considerando que as Forças Armadas precisam “de ter meios para poderem defender, com o uso da força, as infraestruturas militares: quartéis, comboios militares, por exemplo”. Face a “uma ameaça terrorista ou indeterminada sobre infraestruturas, como [as de] abastecimento de eletricidade, de água, telecomunicações, as Forças Armadas deviam poder assegurar, transitoriamente, a guarda dessas infraestruturas”. Por isso, o artigo 275.º da Constituição devia ser clarificado. É, sobretudo nisto – diz o constitucionalista – que “a Constituição está um pouco desatualizada, face a estas novas ameaças do terrorismo e da criminalidade organizada”.

Sobre o encontro na FDUL, em que, além do exposto, houve intervenções de figuras como Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República, Michel Temer, ex-presidente do Brasil, ou ainda Flávio Dino, ministro da Justiça brasileiro, o balanço feito por Blanco de Morais é positivo. “Deu-se um passo em frente na discussão científica das relações entre novas tecnologias e Direitos Fundamentais”, considerou, anunciando que as intervenções serão transformadas em artigos científicos, a publicar, depois, em livro. “Foi talvez o melhor fórum destes 11 já realizados. […] De facto, até pela quantidade de mesas e pela qualidade dos oradores, acho que este fórum excedeu todas as expectativas”, afiançou.

E revelou que, para garantir a mais alta qualidade e integridade dos créditos, as ações vão além da preservação da floresta e da biodiversidade: parte da receita será aplicada em projetos de impacto social, em particular, em iniciativas de concretização dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), que mostram o compromisso e potencial do Brasil como protagonista na agenda de descarbonização.

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Estes debates são relevantes. Já os casinhos devem ser resolvidos administrativa ou judicialmente.

2023.07.07 – Louro de Carvalho

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