quinta-feira, 27 de julho de 2023

Professores: diploma vetado, diploma reeditado com emendas

 

De acordo com o respetivo comunicado, o Conselho de Ministros (CM), a 27 de julho, “na sequência da devolução, sem promulgação”, pelo Presidente da República (PR), no dia anterior, “reapreciou o decreto-lei que estabelece os termos de implementação dos mecanismos de aceleração de progressão na carreira dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário”, tentando incorporar as sugestões presidenciais.

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Efetivamente, uma nota publicada na página da Presidência da República, a 26 de julho, dava conta da decisão do PR de devolver, sem promulgação, “o decreto que estabelece os termos de implementação dos mecanismos de aceleração de progressão na carreira dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário, reconhecendo aspetos positivos – alguns dos quais resultantes de aceitação de sugestões da Presidência da República –, mas apontando a frustração da esperança dos professores, ao encerrar definitivamente o processo, ademais criando uma disparidade de tratamento entre o Continente e as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira”.

A referida nota publicou também a carta que o chefe de Estado endereçou ao chefe do Governo, em que reconhece que, para lá de “outras justas reclamações”, algumas das quais “parcialmente satisfeitas”, sobressai a que é “central” no reconhecimento do “papel cimeiro” dos professores na sociedade portuguesa, a “recuperação do tempo de serviço suspenso, sacrificado pelas crises económicas vividas ao logo de muitos anos e muitos governos”.

Em torno da questão, surgiram duas soluções diferentes: nas Regiões Autónomas e no Continente.   

As Regiões Autónomas estão a recuperar a contagem integral, de modo faseado e gradual, do tempo de serviço de todos os professores: na Madeira, por iniciativa do XII Governo Regional apoiado pelo Partido Social Democrata (PSD), com o Decreto Legislativo Regional n.º 23/2018/M, de 28 de dezembro, aprovado com os votos favoráveis dos diversos partidos com assento no respetivo parlamento; e, nos Açores, por iniciativa, do XII Governo Regional apoiado pelo Partido Socialista (PS), com o Decreto Legislativo Regional n.º 15/2019/A, de 16 de julho, aprovado com os votos favoráveis dos diversos partidos com assento no respetivo parlamento.  

No Continente, optou-se por solução diferente, com tratamento diferenciado de professores, sendo aplicável, a alguns, “uma certa antiguidade de serviço para progressão na carreira, em circunstâncias específicas, e não a outros, que a teriam ou viriam a ter no futuro, se a contagem do tempo de serviço não tivesse sido suspensa”.

Como aponta carta do PR, esta situação “criou uma clara desigualdade de tratamento entre professores da escola pública no Continente e nas Regiões Autónomas”. E, no Continente, se for por diante, criará “novas desigualdades”.

Porém, o chefe de Estado, não se contentando com isto, deixa ao Governo uma suposta lição de democracia.

“Os professores, tal como os profissionais de saúde, têm e merecem ter uma importância essencial na nossa sociedade e em todas as sociedades que apostam na Educação, no Conhecimento, no Futuro”. E “países exemplos de liderança na Educação o foram, porque escolheram os melhores e lhes pagaram aquilo que não pagavam a tantos outros e respeitáveis trabalhadores do setor público, mesmo de carreiras especiais”.

Portanto, a aposta na Educação vai além do “curto prazo”, da sorte de “pessoas”, de “situações”, de “instituições”, do “passado próximo ou do presente” e de cálculo de “dividendos políticos”. Exige pensar nos sucessivos anos letivos e, sobretudo, naqueles/as que queremos melhores em termos absolutos e relativos, os estudantes, assim como exige “pensar na mobilização de todos, mas, dentro de todos, daquelas e daqueles que serão os seus educadores, formadores e felizmente, em muitos casos, os seus inspiradores, os professores”.

Mais refere o PR que “todas as escolas e todos os professores são e devem ser relevantes: os da escola pública, os da escola privada e os da escola social e cooperativa”.

Depois de apontar números – mais de 130 mil professores do setor público e cerca de 25 mil dos restantes setores – o chefe de Estado faz a apologia da Escola Pública como “insubstituível” e como “coluna vertebral do sistema escolar”. E sustenta que, por isso, acompanhou “o longuíssimo período de encontros entre governo e sindicatos de professores” e que registou “o facto de o Governo ter optado por flexibilizar posições governativas – de governos anteriores ou suas –, quanto à recuperação do tempo dos professores”, bem como o facto de ter sido “um anterior governo, mas com o mesmo primeiro-ministro, que levantou a suspensão da contagem do tempo de serviço dos professores”.

Admite que “houve um esforço dos últimos governos, no quadro financeiro e económico geral destes tempos de incerteza” e “uma abertura de sindicatos e, mais amplamente, da maioria esmagadora dos professores, para não almejarem, de imediato, tudo o que ambicionavam, entendendo as restrições financeiras existentes”.

O diploma em causa surge na sequência do longo “período de encontros, de expetativas, de frustrações, de luta laboral e de gestão governamental”. Porém, após esta narrativa de factos, vem mais uma pitada de gestão da democracia: “não há nem pode haver comparação entre o estatuto dos professores, tal como o dos profissionais de saúde, e o de outras carreiras, mesmo especiais”. E mais ainda: “Governar é escolher prioridades. E Saúde e Educação são e deveriam ser prioridades se quisermos ir muito mais longe como sociedade desenvolvida e justa.”

A primeira versão do diploma consagrava “uma parte limitada das legítimas expetativas” dos professores: limitada, no universo dos professores beneficiários, quando o desejável é que a aceleração da progressão “inclua todos os docentes afetados pela suspensão da contagem do tempo de serviço, estabelecendo-se a justa proporcionalidade em relação ao tempo de serviço efetivamente prestado”; limitada, por manter a desigualdade entre professores da escola pública, nas Regiões Autónomas e no Continente; e limitada, porque o diploma “encerrava o processo quanto a este tema central, ao não contemplar qualquer calendarização ou, mesmo, abertura para medidas ulteriores ou complementares”.

Uma coisa, para o PR, é “não ser viável, num determinado contexto, ir mais além, outra é dar um sinal errado num domínio tão sensível, como o é o da motivação para se ser professor no futuro”.

Por tudo isto e tendo em conta “a importância decisiva do tema para uma classe profissional insubstituível para a educação, a qualificação, o conhecimento, e, portanto, o futuro de Portugal”, o chefe de Estado devolveu o diploma ao Governo, para que o reapreciasse, com ou sem intervenção da Assembleia da República (AR), onde o Governo dispõe de uma clara maioria de apoio, de modo a “figurar, no texto, a ideia de que se não encerra definitivamente o processo”, pensando no futuro e “no papel que nele desempenham os professores em Portugal”.

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Tenho de assentar em que, tal como o fiz noutras ocasiões, os professores têm total razão na reivindicação da contagem integral do tempo de serviço, nos períodos em que tal contagem esteve congelada. Embora, os governos de António Costa hajam procedido ao descongelamento das progressões nas carreiras e à contagem parcial do tempo perdido para efeitos de progressão (é só disso que se trata: não se trata de ir buscar mais dinheiro ou mais tempo de serviço para aposentação/reforma), é impensável que haja uma solução diferente nas Regiões Autónomas e no Continente e que, no Continente, se venham a criar novas situações de desigualdade.

Do ponto de vista orçamental, os encargos anuais com a recontagem integral não passam de um mito conveniente. É óbvio que a recuperação de tempo para a progressão aplica-se a professores que não estejam no último escalão, sendo que, para os outros, implica algum encargo monetário, mas a prazo e não em simultâneo para todos. Grave, em termos orçamentais, seria se fosse exigido ao Estado que repusesse nos respetivos escalões todos os docentes, mesmo os já aposentados e os que rescindiram por mútuo acordo, revalorizando os salários de uns e as pensões de outros. Ora, os professores sabem que não são os ricos que pagam as crises, mas não aceitam que haja dinheiro a rodos para salvar bancos e empresas públicas (remunerações e indemnizações obscenas a administradores da Caixa Geral de Depósitos, da TAP, da CP, etc.) e não o haja para os trabalhadores da Administração Pública.   

A suposta lição de democracia presidencial ao Governo ficaria bem na boca de qualquer membro do Governo ou de qualquer político da praça. Pena é que só agora os opositores ao Governo se tenham dado conta da solução diferente encontrada no Continente e nas Regiões Autónomas. É certo que o PR faz bem em acompanhar o movimento reivindicativo, mas é de questionar o motivo por que o chefe de Estado e tantos outros cidadãos e grupos que sempre estiveram contra a luta sindical estão agora do lado dos reivindicantes. Não faço segundas intenções, mas interrogo-me.   

Embora, desta vez, o PR tenha sido menos explícito na tentativa de influenciar o Governo do que em diploma anterior relativo a concursos e a vinculação de professores, que acabou por promulgar, mesmo assim, lá deixa expressa a notinha de que o diploma tem aspetos positivos, alguns dos quais seguem sugestões do PR. Enfim, não há maneira de o chefe de Estado, ao menos publicamente, preservar a separação dos poderes e ajudar a construir de forma discreta, a interdependência dos mesmos.

Depois, dá uma indicação que podia ser perigosa, se o Governo e o PS fossem teimosos. O Governo podia transformar o texto do diploma em Proposta de Lei e a AR, onde o PS tem maioria absoluta, podia aprovar o diploma, transformando em decreto da AR e, em caso de veto, confirmá-lo por maioria.

Entretanto, o Conselho de Ministros reapreciou o diploma, tentando integrar a recomendação do PR, que se reduz (Tanta retórica na carta para muito pouco!) a colocar a hipótese de, num futuro, se proceder à recontagem de todo o tempo de serviço de todos professores.

A ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, escusou-se a especificar as alterações introduzidas, por se tratar de matéria entre o CM e o PR.

Por fim, suspeito que, se o movimento sindical (e é esse o interlocutor válido em reivindicação) se mantiver parado, o diferendo entre Belém e São Bento acabe por remeter a contagem para as Calendas gregas ou para ocasião em que atinja um número residual de docentes.

E não vejo que os professores queiram constituir-se em exceção, relativamente aos outros trabalhadores da Administração Pública. Apenas querem salário condigno e carreira que os dignifique. De resto, não pode o Estado dar-se ao luxo de induzir o esvaziamento dos seus quadros, deixando que uns emigrem e outros passem para o setor privado, devendo, antes, promover carreiras atrativas, salários justos e condições de trabalho tão propícias quanto possível.      

2023.07.27 – Louro de Carvalho

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