domingo, 16 de julho de 2023

ONU receia novo genocídio no Sudão após escalada de guerra civil

 

Três meses de guerra civil entre dois generais que disputam a presidência do Sudão ocasionaram a brutal degradação da situação humanitária e o aumento da diversidade de armamento, pelo que os delegados da Organização das Nações Unidas (ONU) temem a repetição do primeiro genocídio deste século, no Darfur, devido a milícias árabes e não-árabes que, em combate de fações opostas, alimentam o ódio étnico.

Um fluxo internacional de armas atravessa o território. Segundo o israelita Eli Cohen, ministro das Relações Exteriores, “o Irão contrabandeia para o Sinai e para a Faixa de Gaza, pelo Sudão”. As Forças Armadas têm produções legítimas de foguetes, de aeronaves, de tanques e de armas ligeiras, bem como de drones turcos “Bayrakdar” e de aviões russos de combate “MiG”, beliscados pelas antiaéreas das RSF.

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Darfur, que significa “terra dos Furis”, é uma região do Oeste do Sudão, na fronteira com a Líbia, com o Chade, com a República Centro-Africana (RCA) e com o Sudão do Sul. Divide-se em três Estados federais sudaneses: Garb Darfur (Darfur Ocidental), Djanub Darfur (Darfur do Sul) e Shamal Darfur (Darfur do Norte). Com a área de 503180 km² e com a população de cerca de sete milhões de habitantes, carateriza-se pelo baixo nível de desenvolvimento. Frequentam a escola 44,5% das crianças do sexo masculino e 33,3% das crianças de sexo feminino. Predominam três etnias: Furis, que dão o nome à região, massalites e zaguas, em geral negros muçulmanos ou seguidores de outras religiões africanas.

A região é cenário de disputas entre as populações árabes e as não árabes, na franja sul do Deserto do Saara. Os não Árabes, separatistas, são alvos de ação de extermínio empreendida por milícias árabes denominadas janjauidis, acusadas de receberem apoio do governo sudanês. O conflito já fez mais de 200 mil mortos e cerca de dois milhões de refugiados desde 2001, em quatro anos de inércia diplomática entre os países do Mundo. Segundo Ban Ki-Moon, além das causas sociais, económicas e políticas, o conflito e a subsequente grave crise humanitária têm sido intensificados por alterações climáticas que provocam períodos alternados de grande seca e de chuvas, com inundações no Sul do Sudão, a partir da década de 1970. A República Popular da China (RPC) vem sendo alvo de críticas de organizações da sociedade civil, em muitos países, por defender, na ONU e em outros fóruns internacionais, a não intervenção nos assuntos internos do Sudão, mas com o comércio entre os dois países a crescer exponencialmente.

O Sudão tem a segunda maior zona económica do Mar Vermelho, atrás da Arábia Saudita. Aprovou, no início de 2023, uma base naval russa de até 300 militares e quatro navios. A Arábia Saudita, apoiante das milícias no Darfur, inviabiliza outras parcerias de Al-Burhan, enquanto o maior exército da África Central, no Chade, é um aliado chave da presidência.

A 23 de abril de 2007, foi instituída a Autoridade Regional de Transição do Darfur (Transitional Darfur Regional Authority), para supervisão do referendo no Dafur, em 2010.

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Desde abril de 2023, há duas fações em contenda intensiva: as Forças Armadas do general Fattah Al-Burhan (que instaurou a lei marcial e pediu aos jovens que se alistassem no exército) e as Forças de Apoio Rápido (RSF), do general Hemetti. Ambas dispõem de armamento pesado: canhões, tanques, aviões e drones. O conflito, que eclodiu no Norte de Cartum, alastrou para as províncias de Kurdufan, de Darfur e de Omdurman. Segundo a Organização Internacional para as Migrações, no Egito, no Chade, no Sudão do Sul, na Etiópia e na África Central, há destruição de infraestruturas, centenas de civis mortos, 700 mil refugiados e 2,3 milhões de deslocados.

Gillian Kitley, diretora do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos no Sudão, recolhe testemunhos das violações do Direito Internacional Humanitário e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde o início do confronto entre os generais. Ambas as fações cometeram atrocidades. E Kitley, culpando as RSF pela maioria, sustenta: “A utilização de áreas civis para fins militares, a extorsão de habitações, a ocupação de escolas, de hospitais e de infraestruturas críticas, transformaram Cartum numa cidade inabitável.”

Há injustificáveis homicídios, detenções incomunicadas e arbitrárias, ataques aéreos contra áreas residenciais sem interesse militar, de que resultaram vítimas civis. Sobressai o sequestro de 500 apoiantes do presidente Al-Burhan. E, com 100 mil soldados e bases em todo o país, as RSF libertaram individualidades da ditadura militar, como Ahmad Haroun, ex-ministro do Interior, acusado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de 20 crimes contra a humanidade e de 22 crimes de guerra. Os cadáveres acumulam-se nas ruas, sem intervalos entre confrontos. São constantes as pilhagens a bancos, a empresas e a domicílios. E Abdelmagid, cônsul honorário de Portugal no Sudão, refere que os Sudaneses perderam depósitos bancários e propriedades privadas e que cerca de 70% da capital não tem água, nem eletricidade.

A 11 de julho, pelo menos 30 pessoas morreram, quando o exército sudanês bombardeou um mercado em Omdurman, a cidade mais populosa do país no Estado de Cartum. É o pior incidente com civis mortos desde o início do conflito. A maioria das vítimas deste ataque ao mercado de Shaabi eram mulheres e crianças. Fontes médicas dizem que as bombas foram disparadas da base militar de Karri, controlada pelo exército do Sudão, em intensos combates com RSF.

No dia 8 de julho, morreram 38 pessoas na cidade, num dos mais mortíferos ataques aéreos até ao momento, que atingiu o bairro de Dar es Salaam.

A situação degrada-se, mas a ajuda humanitária é bloqueada. Antes da guerra, eram deslocados internos 3,8 milhões e o país acolhia 1,1 milhões de refugiados do Sudão do Sul. “Falta comida, água, segurança”, expõe Clementine Salami, representante de António Guterres no país, em entrevista à Al-Arabiya. Metade dos sudaneses, 24,7 milhões, dos quais “13 milhões são crianças”, carece de ajuda humanitária. Porém, apesar dos 62 milhões de euros dos fundos de emergência e de apoio humanitário para a mitigação do conflito, anota-se a escassez de ajuda internacional e de mediatismo. E Gillian Kitley, vincando que “o serviço de ação humanitária continua, após os assaltos aos armazéns e aos escritórios da ONU”, descreve assim a situação que se vive na capital: “Os tiroteios e os bombardeamentos não cessam, as ruas foram tomadas por militares. Há muitos mortos inocentes.”

A Human Rights Watch acusa Hemetti de execuções sumárias e de violações em massa, num conflito que extravasa o Darfur. Os seus homens são pagos para combaterem pela Arábia Saudita contra os Houthi, no Norte do Iémen. A Unidade de Combate à Violência contra Mulheres, do Ministério do Desenvolvimento Social, culpa os rebeldes por 88 episódios de abuso sexual em Cartum, em Niyala e em El Geneina. Segundo a ONU, é difícil verificar todos os casos, mas as vítimas identificam homens que vestem uniformes das RSF. Os estupros decorrem nas ocupações de propriedade, contra civis em fuga, quando são parados nas barricadas, e a população é alvejada nas ruas. E, como refere Abdelmagid, sobre os hipotéticos massacres que atemorizam os observadores da ONU, não há jornalistas no Darfur, pelo que ninguém sabe a gravidade da situação. Porém, incendiaram cidades e vilas e há assassínios em massa. A RSF controla metade da província de Darfur, na fronteira do Chade e da RCA.

Considerando muito preocupante “a erupção de violência étnica no Darfur”, a diretora do Alto Comissariado de Direitos Humanos evidencia os ataques das RSF, apoiados por milícias árabes, as “Janjaweed”, contra comunidades africanas não-árabes na cidade de El Geneina e na região ocidental do Darfur. Vê no “discurso de ódio” um indicador de perigo máximo, pois “assiste-se em vídeos e mensagens online contra grupos não-árabes”.

Antes dos atuais confrontos, a ordem de advogados do Darfur denunciou que os rebeldes queriam “encerrar as instituições estatais e espalhar o anarquismo”. O governador da província, Minni Minnawi, ex-militante do Exército Sudanês de Libertação não-árabe, exortou os residentes a pegarem em armas e a defenderem-se dos ataques. O chamamento dos não-árabes no Darfur para o combate contra as RSF aviva a memória do primeiro genocídio do século XXI, há duas décadas, na região. Agora, ressurgem as notícias de aldeias incendiadas e de deportações forçadas, após o avanço das forças de Hemetti sobre a região ocidental do Darfur. O governador da cidade de El Geneina, Khamis Abakar, apelou a intervenção militar estrangeira que impeça outro “genocídio”, mas foi assassinado, há um mês, um dia após as declarações.

A cidade simboliza o poder negro e é residência da etnia massalit. Civis são mortos aleatoriamente em grande número; as pessoas são atacadas em casa e em campos de refugiados e mortas por causa da sua etnia. Segundo o The New York Times, as milícias árabes que invadiram El Geneina, apoiadas pelas RSF, encontraram forte resistência de combatentes armados, incluindo moradores que receberam armas do exército. Não obstante, foram incendiadas dezenas de mercados, campos de deslocados e unidades de saúde. As milícias foram de porta em porta, para encontrar alvos e para atirar em civis desarmados. Sem comida ou água, milhares começaram a fugir da cidade, mas foram mortos por atiradores, deixando os corpos nas ruas. A cidade está sem eletricidade e sem telecomunicações, sob o controlo das RSF e das milícias árabes. “Há deportações forçadas, centenas de civis assassinados na região ocidental do Darfur e em El Geneina”, assume Kitley, apesar de a única informação disponível advir de refugiados no Chade e de alguns trabalhadores humanitários. “Há sinais alarmantes, como a dimensão étnica do conflito, a capacidade de armamento e de organização dos assassinos – a História do Darfur!”

Este pode ser o começo do segundo genocídio na franja sul do Saara, neste século, com o renascer do ódio entre comunidades negras africanas e muçulmanos. Há 22 anos, não-árabes rebelaram-se, acusando o Governo de discriminação. A ditadura militar de Omar Al-Bashir, para estancar a rebelião, armou milícias árabes, as Janjaweed, que foram acusadas de assassinatos étnicos em massa. A origem das RSF está nas Janjaweed. E, agora, as Forças Armadas sudanesas acusam-nas de atacarem novamente comunidades africanas.

As condenações de Haia pelas violações, pelos crimes de guerra e pelo genocídio no Darfur, não tiveram consequências, perpetuando-se a impunidade. Não há esperança de paz, após os ignorados apelos de cessar-fogo. Quando o conflito eclodiu, Vítor Ângelo, antigo representante da ONU para missões de paz, advertiu que “esta guerra não é feita com fisgas”. E a diversidade de armamento aumentou. A marinha capturou “snipers” e explosivos, no Mar Vermelho. 

Os analistas da “All Eyes on Wagner” notaram atividade mercenária russa no fornecimento às RSF, através da Líbia, sob controlo do general Hafter, apoiado pela Wagner. As armas chegam-lhes da África Central e da Líbia. Apesar de encerradas, as fronteiras são longas e o contrabando é fácil. A Wagner apoia-os em armas e treino no terreno.

Os paramilitares e os rebeldes exploram minas de ouro no país. As produções sob o controlo das RSF funcionam com tecnologia e segurança da Wagner e facultam a exportação para a Rússia. As RSF admitem a capacidade de combate por dois anos, pois as exportações do minério rendem dois mil milhões de euros anuais ao Sudão. E, enquanto a Wagner apoia as RSF, a Realpolitik do Kremlin é pró-Al-Burhan. O vice-chefe do Conselho Soberano, Malik Agar, congratulou-se, ante a agência Sputnik, “com o papel da Rússia em qualquer negociação de paz, visando 40 milhões de dólares russos para causas humanitárias no Sudão. E Sergey Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, declarou-se apto a negociar a paz e a reforçar a cooperação.

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A ONU teme que a guerra civil se torne interminável, mas nós só vemos guerra na Ucrânia!

2023.07.16 – Louro de Carvalho

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